O Poder da Fé
TEMPO COMUM. DÉCIMA OITAVA SEMANA. SÁBADO
– A fé é capaz de transportar montanhas. Diariamente acontecem na Igreja os maiores milagres.
– Quanto maiores os obstáculos, maiores as graças.
– Fé com obras.
I. DENTRE UMA IMENSA MULTIDÃO que esperava Jesus, destacou‑se um homem que, lançando‑se de joelhos diante dele, disse‑lhe: Senhor, tem piedade do meu filho...1 É uma oração humilde a deste pai, como se pode inferir dos seus atos e das suas palavras. Não apela para o poder de Cristo, mas para a sua compaixão; não faz valer os seus méritos nem oferece nada: acolhe‑se à misericórdia de Jesus.
Recorrer ao Coração misericordioso de Cristo significa ser sempre ouvido: o filho ficará curado, coisa que os Apóstolos não tinham conseguido anteriormente. Mais tarde, a sós, os discípulos perguntaram ao Senhor por que tinham eles fracassado em curar o garoto endemoninhado. E Jesus disse‑lhes: Por causa da vossa incredulidade. Porque na verdade vos digo que, se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte: Vai daqui para acolá, e ele irá, e nada vos será impossível2.
Quando a fé é profunda, participamos da onipotência de Deus, a tal ponto que Jesus chega a dizer em outro momento: Aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço, e fará outras ainda maiores, porque eu vou para o Pai. Tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, eu o farei, para que o Pai seja glorificado no Filho. Se me pedirdes alguma coisa em meu nome, eu a farei3. E Santo Agostinho comenta: “Aquele que crê em Mim não será maior do que Eu; mas Eu farei coisas ainda maiores do que as que agora faço; farei mais por meio daquele que crê em Mim do que aquilo que agora faço por Mim mesmo”4.
Nesta passagem do Evangelho da Missa, o Senhor, empregando uma expressão proverbial, diz aos Apóstolos que, se tiverem fé, poderão “transportar montanhas” de um lugar para outro; e a palavra do Senhor cumpre‑se todos os dias no seio da Igreja de um modo superior. Alguns Santos Padres sublinham que o ato de “transportar uma montanha” realiza‑se sempre que alguém, com a ajuda da graça, chega aonde as forças humanas não conseguem chegar. Assim acontece na obra da nossa santificação pessoal, que o Espírito Santo vai levando a cabo na alma. É um ato mais sublime do que transportar uma montanha e que se opera todos os dias em tantas almas santas, ainda que passe desapercebido aos olhos da maioria.
Os Apóstolos e muitos santos ao longo dos séculos fizeram admiráveis milagres de natureza física; mas os maiores milagres e os mais importantes foram, são e serão os das almas que, tendo estado imersas na morte do pecado e da ignorância, ou na mediocridade espiritual, renascem e crescem na nova vida dos filhos de Deus5. “«Si habueritis fidem, sicut granum sinapis!» Se tivésseis uma fé do tamanho de um grãozinho de mostarda!...
“– Que promessas não encerra esta exclamação do Mestre!”6 Promessas para a vida sobrenatural da nossa alma, para o apostolado, para tudo aquilo de que precisamos...
II. SENHOR, por que não pudemos nós expulsá‑lo? Por que não pudemos fazer o bem em teu nome? São Marcos7, bem como muitos manuscritos que incluem o texto de São Mateus, acrescentam estas palavras do Senhor: Esta espécie (de demônios) não se pode expulsar senão mediante a oração e o jejum.
Os Apóstolos não puderam libertar esse endemoninhado porque lhes faltou a fé que era necessária, uma fé que deveria ter‑se traduzido em oração e sacrifício. Nós também encontramos pessoas que necessitam desses remédios sobrenaturais para saírem da prostração do pecado, da ignorância religiosa... Acontece com as almas algo de semelhante ao que se passa com os metais, que se fundem a diversas temperaturas. Há casos em que a dureza interior dos corações necessita de meios sobrenaturais tanto mais fortes quanto mais incrustados estiverem no mal. Não deixemos as almas imobilizadas no pecado por falta de oração e jejum.
Uma fé do tamanho de um grão de mostarda é capaz de transportar montanhas, ensina‑nos o Senhor. Peçamos muitas vezes, ao longo do dia de hoje, essa fé que se traduz depois em abundância de meios sobrenaturais e humanos. Esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé8“Diante dela caem as montanhas, os obstáculos mais formidáveis que possamos encontrar no caminho, porque o nosso Deus não perde batalhas. Caminhai, pois, in nomine Domini, com alegria e segurança no nome do Senhor. Sem pessimismos! Se surgem dificuldades, surge também em maior abundância a graça de Deus; se surgem mais dificuldades, o céu envia mais graça de Deus; se surgem muitas dificuldades, chega‑nos muita graça de Deus. A ajuda divina é proporcional aos obstáculos que o mundo e o demônio podem opor ao trabalho apostólico. Por isso, atrever‑me‑ia até a dizer que convém que haja dificuldades, porque desse modo teremos mais ajuda de Deus: Onde abundou o pecado, superabundou a graça (Rom 5, 20)”9.
Os maiores obstáculos a esses milagres que o Senhor também quer realizar agora nas almas, com a nossa colaboração, podem provir sobretudo de nós mesmos: porque, com a nossa visão humana, podemos estreitar o horizonte que Deus abre continuamente na alma dos nossos amigos, parentes, colegas de trabalho ou de estudo. No trabalho apostólico, não podemos dar ninguém por impossível; como tantas vezes demonstraram os santos, a palavra impossível não existe na alma que vive de fé verdadeira. “Deus é o mesmo de sempre. – O que falta são homens de fé; e renovar‑se‑ão os prodígios que lemos na Santa Escritura.
“– «Ecce non est abbreviata manus Domini». – O braço de Deus, o seu poder, não encolheu!”10 Continua a realizar hoje as maravilhas de sempre.
III. “JESUS CRISTO ESTABELECE esta condição: que vivamos da fé, porque depois seremos capazes de remover montanhas. E há tantas coisas por remover... no mundo e, primeiro, no nosso coração! Tantos obstáculos à graça! Portanto, fé. Fé com obras, fé com sacrifício, fé com humildade, porque a fé nos converte em criaturas onipotentes: E tudo o que na oração pedirdes com fé, alcançá‑lo‑eis (Mt XXI, 22)”11.
A fé deve traduzir‑se em obras na vida corrente. Sede, pois, realizadores da palavra, e não ouvintes somente12, exorta‑nos o Apóstolo São Tiago. Não basta assentir à doutrina, é necessário viver as verdades que contém, praticá‑las. A fé deve gerar uma vida de fé, que é manifestação da amizade com Jesus Cristo. Temos de ir a Deus com a vida, com as obras, com as penas e as alegrias..., com tudo!13
Com freqüência, as dificuldades procedem ou agigantam‑se pela falta de fé: porque valorizamos excessivamente as circunstâncias do ambiente em que nos movemos, ou porque damos demasiada importância a considerações de prudência humana, que podem proceder de uma insuficiente retidão de intenção. “Não há coisa alguma, por mais fácil que seja, que a nossa tibieza não apresente como difícil e pesada; como não há nada que seja difícil e penoso que o nosso fervor e a nossa determinação não tornem fácil e leve”14.
A vida de fé produz um sadio “complexo de superioridade”, que nasce de uma profunda humildade pessoal. É que a fé “não é própria dos soberbos, mas dos humildes”, recorda Santo Agostinho15: corresponde à convicção profunda de saber que a eficácia vem de Deus e não de nós mesmos. Esta confiança leva o cristão a enfrentar os obstáculos que encontra na sua alma e no apostolado com moral de vitória, ainda que por vezes os frutos tardem a chegar.
Com a oração e a mortificação, com a nossa alegria habitual, podemos realizar grandes milagres nas almas. Seremos capazes de “transportar montanhas”, de remover barreiras que pareciam insuperáveis, de aproximar os nossos amigos do sacramento da Confissão, de pôr no caminho do Senhor pessoas que iam na direção oposta.
A nossa Mãe Santa Maria ensinar‑nos‑á a encher‑nos de fé, de amor e de audácia diante das tarefas que Deus nos indicou no meio do mundo, pois Ela é “o bom instrumento que se identifica por inteiro com a missão recebida. Uma vez conhecidos os planos de Deus, Santa Maria torna‑os coisa própria; não são algo alheio a Ela. Compromete plenamente na realização cabal desses projetos o seu entendimento, a sua vontade e as suas energias. Em nenhum momento a Santíssima Virgem nos aparece como uma espécie de marionete inerme: nem quando empreende a viagem às montanhas da Judéia para visitar Isabel; nem quando, exercendo verdadeiramente o seu papel de Mãe, procura e encontra o Menino Jesus no templo de Jerusalém; nem quando provoca o primeiro milagre do Senhor, nem quando se situa – sem necessidade de que a convocassem – ao pé da Cruz em que o seu Filho morre... É Ela que livremente, ao dizer Faça‑se, põe em jogo toda a sua personalidade a serviço do cumprimento da missão recebida: uma tarefa que de modo algum lhe é estranha; os interesses de Deus são os interesses pessoais de Santa Maria. Não é que algum objetivo pessoal lhe dificultasse os planos do Senhor: é que, além disso, esses objetivos pessoais eram exatamente os planos divinos”16.
(1) Mt 17, 14‑20; (2) Mt 17, 19; (3) Jo 14, 12‑14; (4) Santo Agostinho, Tratado sobre o Evangelho de São João, 72, 1; (5) cfr. Sagrada Bíblia, Santos Evangelhos, EUNSA, Pamplona, 1983; (6) Josemaría Escrivá, Caminho, n. 585; (7) Mc 9, 29; (8) 1 Jo 5, 4; (9) A. del Portillo, Carta pastoral, 31‑V‑1987, n. 22; (10) Josemaría Escrivá, op. cit., n. 586; (11) Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, n. 203; (12) Ti 1, 22; (13) cfr. P. Rodríguez, Fe y vida de fe, pág. 173; (14) São João Crisóstomo, De compunctione, 1, 5; (15) Santo Agostinho, cit. em Catena Aurea, vol. VI, pág. 297; (16) J. M. Pero‑Sanz, La hora sexta, Rialp, Madrid, 1978, pág. 292.
Fonte: Livro "Falar com Deus", de Francisco Fernández Carvajal
São Domingos de Gusmão
08 de Agosto
São Domingos de Gusmão
Domingos nasceu em 24 de junho de 1170, na pequena vila de Caleruega, na Velha Castela, atual Espanha. Pertencia a uma ilustre e nobre família, muito católica e rica: seus pais eram Félix de Gusmão e Joana d'Aza e seus irmãos, Antonio e Manes. O primeiro tornou-se sacerdote e morreu com odor de santidade. O segundo, junto com a mãe, foi beatificado pela Igreja.
Nesse berço exemplar, o pequeno Domingos trilhou o mesmo caminho de servir a Deus. Até mesmo o seu nome foi escolhido para homenagear são Domingos de Silos, porque sua mãe, antes de Domingos nascer, fez uma novena no santuário do santo abade. E, como conta a tradição, no sétimo dia ele lhe teria aparecido para anunciar que seu futuro filho seria um santo para a Igreja Católica.
Domingos dedicou-se aos estudos, tornando-se uma pessoa muito culta. Mas nunca deixou a caridade de lado. Em Valência, cidade onde se diplomou, surpreendeu a todos ao vender os objetos de seu quarto, inclusive os pergaminhos caros usados nos estudos, para ter um pequeno 'fundo' e, com ele, alimentar os pobres e doentes.
Aos 24 anos, sentindo o chamado, recebeu a ordenação sacerdotal. Foi enviado para a diocese de Osma, onde se distinguiu pela competência e inteligência. Logo foi convidado para auxiliar o rei Afonso VII nos trabalhos diplomáticos do seu governo e também para representar a Santa Sé, em algumas de suas difíceis missões.
Durante a Idade Média, período em que viveu, havia a heresia dos albigenses, ou cátaros, surgida no sul da França. O papa Inocêncio III enviou-o para lá, junto com Diego de Aceber, seu companheiro, a fim de combater os católicos reencarnacionistas. Mas, devido à morte repentina desse caro amigo, Domingos teve de enfrentar a missão francesa sozinho. E o fez com muita eficiência, usando apenas o seu exemplo de vida e a pregação da verdadeira Palavra de Deus.
Em 1207, em Santa Maria de Prouille, Domingos fundou o primeiro mosteiro da Ordem Segunda, das monjas, destinado às jovens que, devido à carestia, estavam condenadas à vida do pecado. Os biógrafos narram que foi na igreja desse convento que Nossa Senhora apareceu para Domingos e disse-lhe para difundir a devoção do rosário, como princípio da conversão dos hereges e para a salvação dos fiéis. Por isso os dominicanos são tidos como os guardiões do rosário, cujo culto difundem no mundo cristão através dos tempos.
A santidade de Domingos ganhava cada vez mais fama, atraindo as pessoas que desejavam seguir o seu modelo de apostolado. Foi assim que surgiu o pequeno grupo chamado 'Irmãos Pregadores', do qual fazia parte o seu irmão de sangue, o bem-aventurado Manes.
Em 1215, a partir dessa irmandade, Domingos decidiu fundar uma Ordem, oferecendo uma nova proposta de evangelização cristã e vida apostólica. Ela foi apresentada ao papa Inocêncio III, que, no mesmo ano, durante o IV Concílio de Latrão, concedeu a primeira aprovação. No ano seguinte, seu sucessor, o papa Honório III, emitiu a aprovação definitiva, dando-lhe o nome de Ordem dos Frades Predicadores, ou Dominicanos. Eles passaram a ser conhecidos como homens sábios, pobres e austeros, tendo como características essenciais a ciência, a piedade e a pregação.
Em 1217, para atrair a juventude acadêmica para dentro do clero, o fundador determinou que as Casas da Ordem fossem criadas nas principais cidades universitárias da Europa, que na época eram Bolonha e Paris. Ele se fixou na de Bolonha, na Itália, onde se dedicou ao esplêndido desenvolvimento da sua obra, presidindo, entre 1220 e 1221, os dois primeiros capítulos gerais, destinados à redação final da 'carta magna' da Ordem.
No dia 8 de agosto de 1221, com apenas 51 anos de idade, ele morreu. Foi canonizado pelo papa Gregório IX, que lhe dedicava especial estima e amizade, em 1234. São Domingos de Gusmão foi sepultado na catedral de Bolonha e é venerado, no dia de sua morte, como Padroeiro Perpétuo e Defensor dessa cidade.
Texto: Paulinas Internet
São Caetano de Thiene
07 de Agosto
São Caetano Thiene
Caetano nasceu em Vicenza, na Itália, em outubro de 1480. Filho do conde Gaspar de Thiene e de Maria do Porto, desde muito jovem mostrava grande preocupação e zelo pelos pobres, abrindo asilos para os idosos e muitos hospitais para os doentes, especialmente para os incuráveis.
Estudou em Pádua, onde se diplomou nas matérias jurídicas, aos 24 anos de idade. Dedicava-se ao estado eclesiástico, mas sem ordenar-se, por considerar-se indigno. Nesse meio tempo, fundou, na propriedade da família, em Rampazzo, uma igreja dedicada a Santa Maria Madalena, que ainda hoje é a paróquia desta localidade.
Em 1506, estava em Roma, exercendo a função de secretário particular do papa Júlio II. Na qualidade de escritor das cartas apostólicas, fez contato e conviveu com cardeais famosos, aprendendo muito com todos eles. Mas a principal virtude que Caetano cultivava era a humildade para observar muito bem antes de reprovar o mal alheio. Para melhor compreender, basta lembrar que ele viveu no período do esplendor renascentista, no qual o próprio Vaticano não primava pelo exemplo de moralidade e nem brilhava pela santidade dos costumes.
Assim sendo, como homem inteligente e preparado, não se retirou para um ermo; ao contrário, encorajou- se para uma ação reformadora, começando por si mesmo. Costumava dizer que 'Cristo espera e ninguém se mexe'. Participou do movimento laical Oratório do Divino Amor, que procurava estudar e praticar as Sagradas Escrituras. Só então, depois de muita reflexão, decidiu-se pela ordenação sacerdotal, em 1516.
Tinha 36 anos de idade quando celebrou sua primeira missa na basílica de Santa Maria Maior. Nesta ocasião, ele mesmo relatou depois, Nossa Senhora apareceu-lhe e colocou-lhe nos braços o Menino Jesus. Foi para Veneza em 1520, onde colaborou na fundação do hospital dos incuráveis. Três anos depois, incansável, voltou para Roma, onde, na companhia dos companheiros do Oratório — Bonifácio Colli, Paulo Consiglieri e João Pedro Carafa, bispo de Chiete —, fundou a Ordem dos Teatinos Regulares, que tinha como objetivo a renovação do clero.
Quando o papa Clemente VII aprovou a congregação, Caetano renunciou a todos os seus bens para dedicar-se única e exclusivamente à vida comum. O mesmo ocorreu com o bispo Carafa, que abdicou também da sua vida episcopal. Anos mais tarde, ele veio a tornar-se o papa Paulo IV, um dos grandes reformadores da Igreja.
A nova congregação começou somente com os quatro, depois passaram para 12, e esse número aumentou bastante em pouco tempo. São os primeiros clérigos regulares. Não são monges, pois são de vida ativa, porém vivendo em obediência: sob uma regra de vida comum, como religiosos, cujos membros renunciam a todos os seus bens terrenos, devendo viver de seu trabalho apostólico e de ofertas espontâneas dadas pelos fiéis, contando apenas com a Providência divina. Carafa foi o primeiro superior geral, embora a ideia da fundação fosse de Caetano de Thiene, que, na sua humildade, sempre se manteve de lado.
Caetano morreu de fadiga, após uma vida de muito trabalho e sofrimento, aos 66 anos de idade, em Nápoles, no dia 7 de agosto de 1547. Foi canonizado em 1671. O seu corpo é venerado no dia de sua morte, na belíssima basílica de São Paulo Maior, mas que é chamada por todos os fieis e peregrinos de basílica de São Caetano, localizada na praça principal da cidade.
Texto: Paulinas Internet
O Amor e a Cruz
TEMPO COMUM. DÉCIMA OITAVA SEMANA. SEXTA‑FEIRA
– A maior demonstração de amor.
– O sentido e os frutos da dor.
– Sacrifícios procurados voluntariamente.
I. UM DIA, JESUS CHAMOU os seus discípulos e estes, deixando tudo, seguiram‑no. Passaram a acompanhar o Mestre pelos caminhos da Palestina, percorrendo cidades e aldeias, compartilhando com Ele alegrias, fadigas, fome, cansaço... Houve ocasiões em que expuseram a vida e a honra por Jesus. Mas essa companhia externa foi‑se convertendo pouco a pouco num seguimento interior, dando lugar a uma transformação das suas almas. Era um seguimento mais profundo, que requeria algo mais do que o desprendimento ou mesmo o abandono efetivo da casa, do lar, da família, dos bens... Assim o manifestou o Senhor, como lemos no Evangelho da Missa de hoje 1: Se alguém quiser vir após mim, negue‑se a si mesmo, tome a sua cruz e siga‑me.
Negar‑se a si mesmo significa renunciar a ser o centro de si mesmo. O único centro do verdadeiro discípulo só pode ser Cristo, a quem se dirigem constantemente os seus pensamentos, anseios e afazeres cotidianos, que se convertem numa verdadeira oferenda ao Senhor.
Tomar a cruz significa que se está disposto a morrer. Aquele que abraça o madeiro e o coloca sobre os seus ombros aceita plenamente o seu destino, sabe que a sua vida terminará nessa cruz.
Toma uma decisão inabalável de imitar o Senhor até o fim, sem limite algum; propõe‑se identificar a sua vontade com a de Cristo, mesmo que isso signifique acompanhá‑lo até o Calvário.
Temos de considerar freqüentemente que a Paixão e a Morte na Cruz são a máxima expressão da entrega de Cristo ao Pai e do seu amor por nós. Certamente, o menor ato de amor de Jesus Cristo, a mais pequena das suas obras, já desde menino, tinha um valor meritório infinito para obter para todos os homens a graça da redenção, a vida eterna e todas as ajudas necessárias para a alcançarem. Mas, apesar disso, o Senhor quis sofrer todos os horrores da Paixão e da Morte na Cruz para nos mostrar quanto amava o Pai, quanto nos amava a cada um de nós.
O Espírito Santo deixou‑nos escrito por meio de São João que Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho Unigênito 2. Jesus entregou voluntariamente a sua vida por amor de nós, pois ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos 3. E manifestou aos seus discípulos toda a urgência com que desejava fazê‑lo: Tenho de receber um batismo; e como me sinto ansioso até que se cumpra! 4
Jesus Cristo revela as ânsias irreprimíveis com que desejava entregar a sua vida por amor. E se queremos segui‑lo, não já externamente, mas profundamente, identificando‑nos com Ele, como é que podemos rejeitar a Cruz, o sacrifício, que está tão intimamente relacionado com o amor e com a entrega? Seguir o Senhor de perto levar‑nos‑á à abnegação mais completa, à plenitude do amor, à alegria mais intensa. A abnegação limpa, purifica, clarifica e diviniza a alma. “Ter a Cruz é ter a alegria: é ter‑te a Ti, Senhor!” 5
II. CONTA‑SE DE UMA ALMA santa que, ao ver como todos os acontecimentos lhe eram contrários e que a uma prova se sucedia outra, e a uma calamidade um desastre ainda maior, voltou‑se com ternura para o Senhor e perguntou‑lhe: Mas, Senhor, que foi que Te fiz?, e ouviu no seu coração estas palavras: Amaste‑me. E encheu‑se de uma grande paz e alegria 6.
Na nossa vida, teremos penas, como todos os homens. “Se vierem contradições, fica certo de que são uma prova do amor de Pai que o Senhor tem por ti” 7. São ocasiões inigualáveis para olhar com amor para um crucifixo e contemplar a figura de Cristo, para compreender que Ele, do alto da Cruz, nos está dizendo: “A ti, amo‑te mais”, “de ti, espero mais”. Talvez tenhamos motivos para dizer‑lhe: “Senhor, que foi que Te fiz?” E Ele nos responderá silenciosamente que nos ama e que nos pede uma entrega sem limites à sua santa vontade, que tem uma “lógica” diferente da lógica humana. Chega o momento da aceitação e do abandono, e então compreendemos todo o bem que recebemos e como devemos dar graças ao Senhor! 8
Muitas vezes, no entanto, encontramos a Cruz em questões sem importância, como é uma dor de cabeça inoportuna, uma entrevista a que a outra pessoa não comparece nem se justifica, a pressa com que temos de resolver um assunto ou concluir um trabalho porque o prazo se esgota, uma pequena humilhação que não esperávamos, e por aí afora... O Senhor também nos espera nessas coisas do dia‑a‑dia. E não pensemos que isso não é a Cruz de Cristo por carecer de importância. Não é verdade que, muitas vezes, é mais difícil vencer sem queixas estéreis, sem mau‑humor, sem rebeldia, essas pequenas contrariedades do que as grandes? Não parecem exigir heroicidade, e sucumbimos por nos apanharem desprevenidos e, no fundo, porque esquecemos que o amor não distingue as coisas pequenas das grandes. Diz Caminho: “Quantos se deixariam cravar numa cruz perante o olhar atônito de milhares de espectadores, e não sabem sofrer cristãmente as alfinetadas de cada dia! – Pensa então no que será mais heróico” 9. E mais adiante, ao tratar da infância espiritual: “Uma picadela. – E outra. – Agüenta‑as, faz favor! Não vês que és tão pequeno que só podes oferecer na tua vida – no teu pequeno caminho – essas pequenas cruzes?
“Além disso, repara: uma cruz sobre outra – uma picadela e outra..., que grande montão!
“– No fim, menino, soubeste fazer uma coisa muito grande: Amar” 10.
A dor, abraçada com amor e por amor, tem imensos frutos: satisfaz pelos nossos pecados, “aprofunda e reforça o nosso caráter e a nossa personalidade. Dá‑nos uma compreensão e uma simpatia pelo nosso próximo que não se pode adquirir de outra maneira. Abre‑nos de verdade a vida interior do próprio Cristo, e ao fazê‑lo une‑nos mais estreitamente a Ele. Com freqüência, o sofrimento profundo é também um ponto decisivo nas nossas vidas e conduz ao princípio de um novo fervor e de uma nova esperança” 11, a uma nova maneira, mais profunda e mais completa, de entender a própria existência.
III. SE ALGUÉM QUISER vir após mim... Não desejamos outra coisa no mundo a não ser seguir Cristo de perto; não amamos nenhuma outra coisa, nem a própria vida, mais do que esta: identificar‑nos com Ele, tornar próprios os seus desejos e os sentimentos que teve aqui na terra. Estamos junto dEle não só quando tudo nos corre bem, mas também quando aceitamos com paciência as adversidades, contentes de poder acompanhar o Senhor no seu caminho para a Cruz 12.
Mas se nos limitássemos apenas a esperar as tribulações, as contrariedades, a dor que não podemos evitar, faltaria generosidade ao nosso amor. Cairíamos na atitude de quem quer contentar‑se com o mínimo. “Seria atuar com uma disposição remissa, que bem poderia expressar‑se com estas palavras: «Mortificação? Bastantes dissabores tem já a vida! Eu tenho preocupações suficientes!» No entanto, a vida interior necessita tanto da mortificação, que temos de procurá‑la ativamente. A mortificação que nos vem trazida pela vida e pelas suas circunstâncias é importante e valiosa, mas não pode ser uma desculpa para recusarmos uma generosa expiação voluntária, que será sinal de um verdadeiro espírito de penitência: Eu te oferecerei um sacrifício voluntário, celebrarei o teu nome, Senhor, porque és bom! (Sl 53, 8)”13.
A Igreja propõe‑nos um dia preciso na semana, a sexta‑feira, para que examinemos o sentido penitencial da nossa vida à luz da Paixão de Cristo. Nesse dia, muitos cristãos consideram com mais vagar os mistérios dolorosos da vida do Senhor, ou praticam o piedoso exercício da Via‑Sacra, ou meditam a Paixão do Senhor... É um bom dia para que examinemos como enfrentamos habitualmente as contrariedades, e com que generosidade, fruto do amor, procuramos essa mortificação voluntária que é complemento indispensável do espírito de amor à Cruz. São sacrifícios pequenos que nem por isso deixam de custar: ser cordiais com todos sem exceção, vencer os estados de ânimo que nos levariam a ser bruscos ou azedos no trato, sorrir quando temos vontade de ficar sérios, cuidar da pontualidade no trabalho ou no estudo, comer um pouco menos do que mais gostamos e um pouco mais do que nos apetece menos, manter habitualmente ordenada a mesa de trabalho, o armário, a estante de livros, o quarto..., mortificar a curiosidade, cuidar de andar pela rua com os sentidos recolhidos, não queixar‑se do calor, do frio ou do excesso de trânsito...
Mas dor e sofrimento não significam tristeza. A Cruz, levada junto com Cristo, enche a alma de paz e de uma profunda alegria no meio das tribulações e dos pequenos sacrifícios. A vida dos santos está cheia de alegria. É um júbilo que o mundo não conhece, e que tem as suas raízes em Deus.
Ao terminarmos hoje estes minutos de oração sobre as palavras de Jesus: Se alguém quiser vir após mim, negue‑se a si mesmo, tome a sua cruz e siga‑me, podemos dizer‑lhe na intimidade da nossa oração:
“Dá‑me, Jesus, uma Cruz sem cireneus. Digo mal: a tua graça, a tua ajuda far‑me‑á falta, como para tudo o mais; sê Tu o meu Cireneu. Contigo, meu Deus, não há prova que me assuste...
“– Mas, e se a Cruz fosse o tédio, a tristeza? – Eu te digo, Senhor, que, Contigo, estaria alegremente triste” 14. “Se eu não Te perco, Senhor, para mim não haverá pena que seja pena” 15.
(1) Mt 16, 24‑25; (2) Jo 3, 16; (3) Jo 15, 13; (4) Lc 12, 50; (5) São Josemaría Escrivá, Forja, n. 766; (6) cfr. R. Garrigou‑Lagrange, O Salvador, pág. 311; (7) São Josemaría Escrivá, op. cit., n. 815; (8) cfr. J. Tissot, La vida interior, pág. 239; (9) São Josemaría Escrivá, Caminho, n. 204; (10) Josemaría Escrivá, op. cit., n. 885; (11) E. Boylan, Amor Sublime, vol. II, pág. 119; (12) cfr. Paulo VI, Const. Paenitemini, 17‑II‑1966, 1; (13) R. M. Balbin, Sacrifício y alegria, 2ª ed., Rialp, Madrid, 1975, pág. 130; (14) São Josemaría Escrivá, Forja, n. 252; (15) ib., n. 253.
Fonte: Livro "Falar com Deus", de Francisco Fernández Carvajal
Transfiguração do Senhor
– O Senhor conforta os seus discípulos na iminência da sua Paixão e Morte.
– O próprio Deus será a nossa recompensa.
– O Senhor está ao nosso lado para nos ajudar a enfrentar as situações mais difíceis e que mais pesam.
Esta festa do Senhor celebrou-se desde os começos nesta mesma data, em muitos lugares do Ocidente e do Oriente. No século XV, o Papa Calixto III estendeu-a a toda a Igreja. A liturgia recorda-nos mais de uma vez durante o ano o milagre da Transfiguração: no segundo domingo da Quaresma, para afirmar a divindade de Cristo, pouco antes da Paixão; e hoje, para festejar a exaltação de Cristo na sua glória. A Transfiguração do Senhor é, além disso, uma antecipação do que será a glória do Céu, onde veremos a Deus cara a cara; em virtude da graça, participamos já nesta terra dessa promessa da vida eterna.
I. QUANDO CRISTO SE MANIFESTAR, seremos semelhantes a Ele, pois o veremos tal como é1.
Jesus tinha anunciado aos seus discípulos a iminência da sua Paixão e os sofrimentos que viria a padecer às mãos dos judeus e dos gentios; e exortara-os a segui-lo pelo caminho da cruz e do sacrifício 2. Poucos dias depois desses acontecimentos, que tiveram lugar em Cesaréia de Filipe, quis confortar-lhes a fé, pois – como ensina São Tomás –, para que uma pessoa ande retamente por um caminho, é preciso que conheça antes de algum modo o fim para o qual se dirige: “como o arqueiro não lança com acerto a seta se primeiro não olha o alvo. E isto é necessário sobretudo quando a via é áspera e difícil e o caminho laborioso... E por isso foi conveniente que o Senhor manifestasse aos seus discípulos a glória da sua claridade, que é o mesmo que transfigurar-se, pois nessa claridade transfigurará os seus” 3.
A nossa vida é um caminho para o Céu. Mas é uma via que passa pela cruz e pelo sacrifício.
Até o último momento, teremos de lutar contra a corrente, e é possível que também passemos pela tentação de querer tornar compatível a entrega que o Senhor nos pede com uma vida fácil e talvez aburguesada, como a de tantos que vivem com o pensamento posto exclusivamente nas coisas materiais. “Não sentimos freqüentemente a tentação de pensar que chegou o momento de converter o cristianismo em algo fácil, de torná-lo confortável, sem sacrifício algum; de fazê-lo conformar-se com as maneiras cômodas, elegantes e comuns dos outros e com o modo de vida mundano? Mas não é assim!... O cristianismo não pode dispensar a cruz: a vida cristã é inviável sem o peso forte e grande do dever... Se procurássemos tirá-lo da nossa vida, criaríamos ilusões e debilitaríamos o cristianismo; transformá-lo-íamos numa interpretação branda e cômoda da vida” 4. Não é esse o caminho que o Senhor indicou.
Quando chegassem os momentos dolorosos da Paixão, os discípulos ficariam profundamente desconcertados. Por isso, o Senhor levou três deles – precisamente aqueles que o acompanhariam na sua agonia no horto de Getsêmani – ao cimo do monte Tabor, para que contemplassem a sua glória. Ali mostrou-se “na claridade soberana que quis tornar visível a esses três homens, refletindo o espiritual de uma maneira adequada à natureza humana. Pois era impossível que, revestidos ainda de carne mortal, pudessem ver ou contemplar aquela inefável e inacessível visão da própria divindade que está reservada aos limpos de coração na vida eterna” 5, aquela que nos aguarda se procurarmos ser fiéis todos os dias.
O Senhor também quer confortar-nos com a esperança do Céu especialmente se alguma vez o nosso caminho se torna íngreme e nos deixamos invadir pelo desalento. Pensar nas coisas que nos esperam ajudar-nos-á a ser fortes e a perseverar. Não deixemos de trazer à memória o lugar que o nosso Pai-Deus nos preparou e para o qual nos dirigimos. Cada dia que passa aproxima-nos um pouco mais do Céu. Para um cristão, a passagem do tempo não é, de maneira nenhuma, uma tragédia; pelo contrário, encurta o caminho que temos de percorrer até recebermos o abraço definitivo de Deus, o abraço há tanto tempo esperado.
II. JESUS TOMOU CONSIGO Pedro, Tiago e João, e levou-os à parte a um monte alto, e transfigurou-se diante deles. E o seu rosto ficou refulgente como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a neve. E eis que lhes apareceram Moisés e Elias e falavam com Ele 6. Esta visão produziu nos Apóstolos uma felicidade irreprimível; Pedro expressa-a com estas palavras: Senhor, é bom estarmos aqui; se queres, façamos aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias 7. Sentia-se tão feliz que nem sequer pensou em si mesmo, nem em Tiago e João, que o acompanhavam. São Marcos, que nos transmite a catequese do próprio São Pedro, acrescenta que o Apóstolo não sabia o que dizia 8. Estando ele ainda a falar, eis que uma nuvem resplandecente os envolveu; e saiu da nuvem uma voz que dizia: Este é o meu filho muito amado, em quem pus todas as minhas complacências; ouvi-o 9.
A lembrança desses momentos no Tabor viriam a ser sem dúvida de grande ajuda para os três discípulos em tantas circunstâncias difíceis e dolorosas pelas quais teriam de passar. São Pedro recordá-los-á até o fim da vida. Numa das suas Epístolas, dirigida aos primeiros cristãos para confortá-los num momento de dura perseguição, afirma que eles, os Apóstolos, não anunciaram Jesus Cristo seguindo fábulas engenhosas, mas depois de termos sido espectadores da sua grandeza. Pois Ele recebeu de Deus Pai honra e glória quando a majestosa glória lhe dirigiu estas palavras: Este é o meu Filho muito amado, em quem pus as minhas complacências; ouvi-o. E nós mesmos ouvimos essa voz vinda do Céu, quando estávamos com ele sobre o monte santo10.
O Senhor, momentaneamente, permitiu que os três discípulos pudessem entrever a sua divindade, e eles ficaram fora de si, cheios de uma imensa felicidade. “A transfiguração revela-lhes um Cristo que não se mostrava na vida cotidiana. Está diante deles como Alguém no qual se cumpre a Antiga Aliança, e sobretudo como o Filho eleito do Pai Eterno, a quem é preciso prestar fé absoluta e obediência total” 11, a quem devemos buscar ao longo da nossa existência aqui na terra.
O que será o Céu que nos espera, onde contemplaremos Cristo glorioso, não num instante, mas numa eternidade sem fim, se formos fiéis? “Meu Deus, quando te amarei a Ti, por Ti? Se bem que, bem vistas as coisas, Senhor, desejar o prêmio imperecível é o mesmo que desejar-te a Ti, que Te dás como recompensa” 12.
III. ESTANDO ELE AINDA A FALAR, eis que uma nuvem resplandecente os envolveu; e saiu da nuvem uma voz que dizia: Este é o meu filho muito amado, em quem pus todas as minhas complacências; ouvi-o 13. Quantas vezes não o teremos nós ouvido na intimidade do nosso coração!
O mistério que hoje celebramos não foi um sinal e antecipação unicamente da glorificação de Cristo, mas também da nossa, pois, como ensina São Paulo, o mesmo Espírito dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus. E, se somos filhos, também herdeiros: herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo; mas isto, se sofrermos com ele, para com ele sermos glorificados 14. E o Apóstolo acrescenta: Porque eu tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a glória vindoura, que se há de manifestar em nós 15. Qualquer padecimento, pequeno ou grande, que padeçamos por Cristo não é nada se o compararmos com a recompensa que nos espera.
O Senhor abençoa com a Cruz, especialmente quando deseja conceder-nos bens muito grandes. Se alguma vez permite que experimentemos mais intensamente a sua Cruz, isso é sinal de que nos considera filhos prediletos.
Podemos padecer humilhações, dores físicas, fracassos, contradições familiares... Não é então o momento de ficarmos tristes, mas de recorrermos ao Senhor e experimentarmos o seu amor paternal e o seu consolo. Nunca nos faltará a sua ajuda para convertermos esses males aparentes em grandes bens para a nossa alma e para toda a Igreja. “Não se carrega já uma cruz qualquer, descobre-se a Cruz de Cristo, com o consolo de que é o Redentor quem se encarrega de suportar o peso” 16. É Ele, o Amigo inseparável, quem carrega os fardos duros e difíceis. Sem Ele, qualquer peso nos esmaga.
Se nos mantivermos sempre perto de Jesus, nada poderá causar-nos verdadeiro mal: nem a ruína econômica, nem a prisão, nem a doença grave..., muito menos as pequenas contrariedades diárias que tendem a tirar-nos a paz se não estamos alerta. O próprio São Pedro recordava-o aos primeiros cristãos: Quem poderá fazer-vos mal, se vós fordes zelosos em praticar o bem? E até se alguma coisa sofreis pela justiça, sois bem-aventurados 17.
Peçamos a Nossa Senhora que saibamos oferecer com paz a dor e o cansaço que cada dia traz consigo, com o pensamento posto em Jesus, que nos acompanha nesta vida e que nos espera, glorioso, no fim do caminho. “E quando chegar aquela hora / em que se fechem meus humanos olhos, / abri-me outros, Senhor, outros maiores, / para contemplar a vossa face imensa. / Seja a morte um maior nascimento!” 18, o começo de uma vida sem fim.
(1) 1 Jo 3, 2; Antífona da Comunhão da Missa do dia 6 de agosto; (2) cfr. Mt 16, 24 e segs.; (3) São Tomás, Suma Teológica, III, q. 45, a. 1 c; (4) Paulo VI, Alocução, 8-IV-1966; (5) São Leão Magno, Homilias sobre a Transfiguração, 3; (6) Mt 17, 1-3; (7) Mt 17, 4; (8) cfr. Mc 9, 6; (9) Mt 17, 5; (10) 2 Pe 1, 16-18; Segunda leitura da Missa do dia 6 de agosto; (11) João Paulo II, Homilia, 27-II-1983; cfr. Audiência geral, 27-V-1987; (12) São Josemaría Escrivá, Forja, n. 1030; (13) Mt 17, 5; (14) Rom 8, 16-17; (15) Rom 8, 18; (16) São Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, n. 132; (17) 1 Pe 3, 13-14; (18) J. Maragall, Canto espiritual, em Antologia Poética, Alianza, Madrid, 1985, pág. 185.
Fonte: Livro "Falar com Deus", de Francisco Fernández Carvajal
Transfiguração do Senhor
06 de Agosto
Transfiguração do Senhor
A festa da "Transfiguração do Senhor" acontece no mundo cristão desde o século V. Ela nos convida a dirigir o olhar para o rosto do Filho de Deus, como o fizeram os apóstolos Pedro, Tiago e João, que viram a Sua transfiguração no alto do monte Tabor, localizado no coração da Galiléia. O episódio bíblico é relatado distintamente pelos evangelistas Mateus, Marcos e Lucas.
Assim, segundo São Mateus 9,2-10, temos: "Jesus tomou consigo a Pedro, Tiago e João, e conduziu-os a sós a um alto monte. E transfigurou-se diante deles. Suas vestes tornaram-se resplandecentes e de uma brancura tal, que nenhum lavadeiro sobre a terra as poderia fazer assim tão brancas. Apareceram-lhes Elias e Moisés, e falavam com Jesus. Pedro tomou a palavra: 'Mestre, é bom para nós estarmos aqui; faremos três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias'. Com efeito, não sabia o que falava, porque estavam sobremaneira atemorizados. Formou-se então uma nuvem que os encobriu com a sua sombra; e da nuvem veio uma voz: 'Este é o meu Filho muito amado; ouvi-O'. E olhando eles logo em derredor, já não viram ninguém, senão só a Jesus com eles. Ao descerem do monte, proibiu-lhes Jesus que contassem a quem quer que fosse o que tinham visto, até que o Filho do homem houvesse ressurgido dos mortos. E guardaram esta recomendação consigo, perguntando entre si o que significaria: Ser ressuscitado dentre os mortos".
A intenção de Jesus era a de fortalecer a fé destes três apóstolos, para que suportassem o terrível desfecho de Sua paixão, antecipando-lhes o esplendor e glória da vida eterna. Também foi Pedro que, depois, recordando com emoção o evento, afirmou: "Fomos testemunhas oculares da Sua majestade" (2 Pd 1, 16).
O significado dessa festa é, e sempre será, o mesmo que Jesus pretendeu, naquele tempo, ao se transfigurar para os apóstolos no monte, ou seja, preparar os cristãos para que, em qualquer circunstância, permaneçam firmes na fé no Cristo. Melhor explicação, só através das inspiradas palavras do papa João Paulo II, quando nesta solenidade em 2002, lembrou-nos que "O rosto de Cristo é um rosto de luz que rasga a obscuridade da morte: é anúncio e penhor da nossa glória, porque é o rosto do Crucificado Ressuscitado, o único Redentor da humanidade que continua a resplandecer sobre nós (cf. Sl 67, 3)".
Somente em 1457, esta celebração estendeu-se para toda a cristandade, por determinação do papa Calisto III, que quis enaltecer a vitória, do ano anterior, das tropas cristãs sobre os turcos muçulmanos que ameaçavam a liberdade na Europa.
Texto: Paulinas Internet
A Virtude da Humildade
TEMPO COMUM. DÉCIMA OITAVA SEMANA. QUARTA‑FEIRA
– A humildade da mulher cananéia.
– Caráter ativo da humildade.
– O caminho da humildade.
I. SÃO MATEUS NARRA no Evangelho da Missa 1 que Jesus se retirou com os seus discípulos para a terra dos gentios, na região de Tiro e Sidon. Ali, aproximou‑se deles uma mulher, que implorava aos brados: Senhor, filho de Davi, tem piedade de mim! Minha filha é cruelmente atormentada pelo demônio. Jesus ouviu‑a, mas não respondeu nada. Santo Agostinho comenta que não lhe fez caso precisamente porque sabia o que lhe reservava: não se calou para negar‑lhe um benefício, mas para que ela o merecesse com a sua perseverança humilde 2.
A mulher deve ter insistido durante um bom tempo, porque a certa altura os discípulos, cansados de tanta persistência, disseram ao Mestre: Atende‑a e despede‑a, porque vem gritando atrás de nós. O Senhor explicou então à mulher que Ele tinha vindo para pregar em primeiro lugar aos judeus. Mas a mulher, apesar da negativa, aproximou‑se e prostrou‑se aos pés dEle dizendo‑lhe: Senhor, ajuda‑me!
Diante dessa insistência, o Senhor repetiu as mesmas razões com uma imagem que a cananéia captou imediatamente: Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá‑lo aos cães. Voltou a dizer‑lhe que fora enviado antes de mais nada aos filhos de Israel e que não devia dar preferência aos pagãos. O gesto amável e acolhedor de Jesus, o tom das suas palavras, excluíam com certeza qualquer acento mais duro que pudesse ferir. Seja como for, a verdade é que as palavras de Jesus aumentaram a confiança da mulher, que disse com grande humildade: Assim é, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos.
Reconheceu a verdade da sua situação, “confessou que eram seus senhores aqueles que Jesus havia chamado filhos” 3. O próprio Santo Agostinho sublinha que aquela mulher “foi transformada pela humildade” e mereceu sentar‑se à mesa com os filhos4. Conquistou o coração de Deus, recebeu o dom que pedia e um grande elogio do Mestre: Ó mulher, grande é a tua fé! Seja‑te feito como queres. E desde aquela hora a sua filha ficou sã. Mais tarde, seria certamente uma das primeiras mulheres provenientes da gentilidade a abraçar a fé, e conservaria sempre no seu coração o agradecimento e o amor ao Senhor.
Nós, que estamos longe de igualar a fé e a humildade desta mulher, pedimos com fervor ao Mestre:
“Jesus bom: se tenho de ser apóstolo, é preciso que me faças muito humilde.
“O sol envolve em luz tudo quanto toca: Senhor, invade‑me com a tua claridade, endeusa‑me: que eu me identifique com a tua Vontade adorável, para me converter no instrumento que desejas... Dá‑me a tua loucura de humilhação: a que te levou a nascer pobre, ao trabalho sem brilho, à infâmia de morrer costurado com ferros a um lenho, ao aniquilamento do Sacrário.
“– Que eu me conheça: que me conheça e que Te conheça. Assim, jamais perderei de vista o meu nada” 5.
I. CONTA‑SE DE SANTO ANTÃO que Deus lhe permitiu ver o mundo repleto de armadilhas preparadas pelo demônio para fazer cair os homens. O santo, depois dessa visão, ficou assombrado e perguntou: “Senhor, quem poderá escapar de tantas armadilhas?” E ouviu uma voz que lhe respondia: “Antão, quem for humilde; pois Deus dá aos humildes a graça necessária, ao passo que os soberbos vão caindo em todos os laços que o demônio lhes prepara; mas às pessoas humildes, o demônio não se atreve a atacá‑las”.
Nós, se queremos servir o Senhor, temos de desejar e pedir‑lhe com insistência a virtude da humildade. E desejá‑la‑emos de verdade se tivermos sempre presente que o pecado capital oposto, a soberba, é o que há de mais contrário à vocação que recebemos do Senhor, o que mais prejudica a vida familiar, a amizade, o que mais se opõe à verdadeira felicidade... É o principal ponto de apoio com que o demônio conta para tentar destruir a obra que o Espírito Santo procura edificar incessantemente na nossa alma.
Mas a virtude da humildade não consiste somente em afastar os movimentos da soberba, do egoísmo e do orgulho. Com efeito, nem Jesus nem a sua Santíssima Mãe experimentaram movimento algum de soberba, e no entanto, tiveram a virtude da humildade em grau sumo. A palavra humildade deriva de humus, terra; humilde, na sua etimologia, significa inclinado para a terra. A virtude da humildade consiste, pois, em inclinar‑se diante de Deus e de tudo o que há de Deus nas criaturas 6. Na prática, leva‑nos a reconhecer a nossa inferioridade, a nossa pequenez e indigência perante Deus. Os santos sentem uma alegria muito grande em aniquilar‑se diante de Deus e em reconhecer que só Ele é grande, e que, em comparação com a dEle, todas as grandezas humanas são ocas e não passam de mentiras.
A humildade baseia‑se na verdade 7, sobretudo na grande verdade de que a distância entre a criatura e o Criador é infinita. Por isso, temos de persuadir‑nos de que todo o bem que há em nós vem de Deus, de que todo o bem que fazemos foi sugerido e impulsionado por Ele, e de que Ele nos deu a graça necessária para realizá‑lo. Não somos capazes de dizer sequer uma única jaculatória senão sob o impulso e a graça do Espírito Santo 8; as deficiências, o pecado e os egoísmos, esses são nossos. “Estas misérias são inferiores ao próprio nada, porque são uma desordem e reduzem a nossa alma a um estado de abjeção verdadeiramente deplorável” 9. A graça, pelo contrário, faz com que os próprios anjos se assombrem ao contemplarem uma alma que resplandece sob a ação desse dom divino.
A mulher cananéia não se sentiu humilhada com a comparação de que Jesus se serviu para indicar‑lhe a diferença que havia entre os judeus e os pagãos; era humilde e sabia qual o lugar que lhe competia em relação ao Povo eleito; e porque era humilde, não teve inconveniente em perseverar e prostrar‑se diante de Jesus, apesar de ter sido aparentemente repelida...
III. “À PERGUNTA: «Como hei de chegar à humildade?» corresponde a resposta imediata: «Pela graça de Deus» [...]. Somente a graça divina nos pode dar a visão clara da nossa própria condição e a consciência da grandeza de Deus que dá origem à humildade” 10. Por isso, temos que desejá‑la e pedi‑la incessantemente, convencidos de que, com essa virtude, amaremos a Deus e seremos capazes de grandes empreendimentos, apesar das nossas fraquezas...
Além de sermos almas de oração, temos de saber aceitar as humilhações, normalmente pequenas, que surgem diariamente por motivos tão diversos: na execução do nosso trabalho, na convivência com os outros, ao notarmos as fraquezas e os erros em que caímos, sejam grandes ou pequenos. Conta‑se de São Tomás de Aquino que, um dia, alguém o advertiu de um suposto erro de gramática que teria cometido enquanto lia; corrigiu‑o conforme lhe indicavam. Depois, os seus companheiros perguntaram‑lhe por que o fizera, se sabia perfeitamente que o texto, tal como o tinha lido, era correto. O Santo respondeu: “Diante de Deus, é preferível um erro de gramática a outro de obediência e humildade”. Percorremos o caminho da humildade quando nos lembramos de que “não és humilde quando te humilhas, mas quando te humilham e o aceitas por Cristo” 11.
Quem é humilde não necessita de pensar em louvores e elogios para cumprir as suas tarefas, porque a sua esperança está posta no Senhor; e Ele é, de modo real e verdadeiro, a fonte de todos os seus bens e a sua felicidade: é Ele quem dá sentido a tudo o que faz. “Uma das razões pelas quais os homens são tão propensos a louvar‑se, a sobrestimar o seu valor e os seus poderes, a ressentir‑se de qualquer coisa que tenda a rebaixá‑los aos seus próprios olhos ou aos olhos dos outros, é não verem outra esperança para a sua felicidade que eles mesmos. É por isso que se mostram freqüentemente tão suscetíveis quando são criticados, tão grosseiros com os que os contradizem, tão insistentes em “dizer a última palavra”, tão ávidos de ser conhecidos, tão ansiosos de louvores, tão decididos a governar o seu ambiente. Apóiam‑se em si mesmos como o náufrago se agarra a uma palha. E a vida prossegue, e cada vez estão mais longe da felicidade...” 12
Quem luta por ser humilde não anda à busca de elogios nem de louvores; e se lhe chegam, procura encaminhá‑los imediatamente para a glória de Deus, que é o Autor de todo o bem. A humildade manifesta‑se não tanto no auto‑desprezo como no esquecimento próprio, mediante o reconhecimento alegre de que não temos nada que não tenhamos recebido de Deus: para Ele toda a glória.
Aprenderemos a ser humildes se meditarmos na Paixão do Senhor, se considerarmos a sua grandeza diante de tanta humilhação, se tivermos presente que se deixou levar ao Calvário como cordeiro ao matadouro, conforme fora profetizado 13; se pensarmos na sua humilhação ao permanecer nos nossos Sacrários, onde nos espera para nos levantar o ânimo depois de um desgosto causado talvez pela nossa soberba...
E aprenderemos também a ser humildes se prestarmos atenção a Maria, a Escrava do Senhor, aquela que sabia não lhe caber mérito algum, mas ao Todo‑Poderoso, pois Ele manifestou o poder do seu braço e dispersou os que se orgulhavam com os pensamentos do seu coração 14. Recorreremos por último a São José, que empregou toda a sua vida em servir a Jesus e a Maria, numa dedicação silenciosa.
(1) Mt 15, 21‑28; (2) cfr. Santo Agostinho, Sermão 154 A, 4; (3) idem, Sermão 60 A, 2‑4; (4) ib.; (5) São Josemaría Escrivá, Sulco, n. 273; (6) cfr. R. Garrigou‑Lagrange, Las tres edades de la vida interior, vol. II; (7) Santa Teresa, Moradas, VI, 10; (8) cfr. 1 Cor 12, 3; (9) R. Garrigou‑Lagrange, op. cit., vol. II, pág. 674; (10) E. Boylan, Amor sublime, vol. II, pág. 81; (11) São Josemaría Escrivá, Caminho, n. 594; (12) E. Boylan, op. cit., pág. 82; (13) Is 53, 7; (14) Lc 1, 51.
Fonte: Livro "Falar com Deus", de Francisco Fernández Carvajal
O Otimismo Cristão
TEMPO COMUM. DÉCIMA OITAVA SEMANA. SEGUNDA‑FEIRA
– Ser sobrenaturalmente realista é contar sempre com a graça do Senhor.
– O otimismo cristão é conseqüência da fé.
– Otimismo fundamentado também na Comunhão dos Santos.
I. UMA GRANDE MULTIDÃO seguiu Jesus afastando‑se cada vez mais de lugares habitados1. Seguem‑no sem se preocuparem com as distâncias, porque precisam muito dEle e sentem‑se acolhidos. Estão pendentes das palavras que lhes dirige e que dão sentido às suas vidas, e até se esquecem de levar provisões para comer. Não parecem preocupados com isso, nem eles nem Jesus. Mas os discípulos percebem a situação e, ao cair da tarde, aproximam‑se do Mestre e dizem‑lhe: Este lugar é deserto, e a hora é já adiantada; despede essa gente, para que, indo às aldeias, compre de comer. Era uma realidade evidente. Mas Jesus conhece uma realidade mais alta, umas possibilidades que os discípulos mais íntimos parecem ignorar. Por isso, responde‑lhes: Não têm necessidade de ir; dai‑lhes vós de comer. Mas eles, conhecedores da dificuldade em que se encontravam, dizem‑lhe: Não temos aqui senão cinco pães e dois peixes.
Os discípulos vêem a realidade objetiva: são conscientes de que, com aqueles alimentos, não podiam dar de comer a uma multidão. O mesmo acontece conosco quando nos pomos a calcular as nossas forças e possibilidades: as dificuldades da vida e do meio ambiente ultrapassam as nossas forças. Mas essa objetividade humana, que por si só nos levaria ao desalento e ao pessimismo, faz‑nos esquecer o otimismo radical que é inerente à vocação cristã e que tem outros fundamentos.
A sabedoria popular diz: “Quem deixa a Deus fora das suas contas, não sabe contar”; essas contas não batem, não podem bater, porque se esquece precisamente a parcela de maior importância. Os Apóstolos fizeram bem os cálculos, contaram com toda a exatidão os pães e os peixes disponíveis..., mas esqueceram‑se de que Jesus, com o seu poder, estava ao lado deles. E esse dado mudava radicalmente a situação; a verdadeira realidade era outra, muito diferente. “Nos empreendimentos de apostolado, está certo – é um dever – que consideres os teus meios terrenos (2 + 2 = 4). Mas não esqueças – nunca! – que tens de contar, felizmente, com outra parcela: Deus + 2 + 2...”2 Esquecer essa parcela seria falsear a verdadeira situação. Ser sobrenaturalmente realista significa contar com a graça de Deus, que é um “dado” bem real.
O otimismo do cristão não se baseia na ausência de dificuldades, de resistências e de erros pessoais, mas em Deus, que nos diz: Eu estarei sempre convosco3. Com Ele, podemos tudo; vencemos..., mesmo quando aparentemente fracassamos. A Santa de Ávila repetia, com bom humor e sentido sobrenatural: “Teresa sozinha não pode nada; Teresa e um maravedi, menos ainda; Teresa, um maravedi e Deus podem tudo”4. E o mesmo acontece conosco. “Lança para longe de ti essa desesperança que te produz o conhecimento da tua miséria. – É verdade: pelo teu prestígio econômico, és um zero..., pelo teu prestígio social, outro zero..., e outro pelas tuas virtudes, e outro pelo teu talento... Mas à esquerda dessas negações está Cristo... E que cifra incomensurável não resulta!”5
Como mudam as forças disponíveis à hora de empreendermos uma iniciativa apostólica ou quando nos decidimos a lutar na vida interior, ou mesmo a enfrentar as realidades da vida humana, apoiados no Senhor!
II. O OTIMISMO DO CRISTÃO é conseqüência da sua fé, não das circunstâncias. O cristão é consciente de que o Senhor preparou tudo para o seu maior bem, e de que Ele sabe tirar fruto até dos aparentes fracassos, ao mesmo tempo que nos pede que utilizemos todos os meios humanos ao nosso alcance, sem deixar de lado nem um só: os cinco pães e os dois peixes. O milagre virá.
O Senhor faz com que os fracassos na ação apostólica (uma pessoa que resiste ou nos vira as costas, outra que se nega reiteradamente a dar um passo muito pequeno que a pode aproximar de Deus, um filho que se recusa a acompanhar‑nos à missa de domingo...) nos santifiquem e acabem por santificar os outros; nada se perde. O que não pode dar fruto são as omissões e os atrasos, o cruzar os braços porque parece ser pouco o que podemos fazer e grande a resistência do ambiente. Deus quer que ponhamos à sua disposição os poucos pães e peixes que sempre temos, e que confiemos nEle. Uns frutos chegarão em breve prazo; outros, o Senhor os reserva para o momento oportuno, que Ele conhece muito bem; mas sempre chegarão. Temos de convencer‑nos de que não somos nada e de que nada podemos por nós mesmos, mas que Jesus está ao nosso lado, e “Ele, a cujo poder e ciência estão submetidas todas as coisas, nos protege através das suas inspirações contra toda a estultícia, ignorância ou dureza de coração”6.
O otimismo do cristão robustece‑se poderosamente através da oração: “Não é um otimismo meloso, nem tampouco uma confiança humana em que tudo dará certo. É um otimismo que mergulha as suas raízes na consciência da liberdade e na certeza do poder da graça; um otimismo que nos leva a ser exigentes conosco próprios, a esforçar‑nos por corresponder em cada instante às chamadas de Deus”7, a estar atentos ao que Ele deseja que realizemos. Não é o otimismo do egoísta, que só procura a sua tranqüilidade pessoal e para isso fecha os olhos à realidade e diz: “Tudo se ajeitará”, como desculpa para que não o incomodem, ou que se nega a ver os males do próximo para evitar preocupações.
O otimismo radical de quem segue de perto o Senhor não o afasta da realidade. Com os olhos abertos e vigilantes, sabe enfrentá‑la, mas nem por isso se deixa atenazar pelo mal que às vezes contempla, nem se enche de tristeza. Sabe que em circunstância nenhuma seu Pai‑Deus o abandona, e que Ele sempre tirará frutos surpreendentes daquele terreno – daquelas circunstâncias ou daqueles amigos – onde só podiam crescer cardos e urtigas. O cristão “sabe que a obra boa nunca será destruída, e que, para dar fruto, o grão de trigo deve começar a morrer debaixo da terra; sabe que o sacrifício dos bons nunca é estéril”8.
III. RONALD KNOX9 comenta que Jesus não realizou o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes em benefício de transeuntes casuais que se tivessem aproximado para ver o que acontecia com aquela multidão, mas para os que o seguiam há vários dias e o procuraram ao perceberem que se ausentara; eram – diz – como uma manifestação da Igreja incipiente. Aqueles cinco mil, sentados no sopé da montanha, estavam unidos entre si por terem seguido o Senhor, por se terem alimentado do mesmo pão – imagem da Sagrada Eucaristia –, saído das mãos de Cristo. “Que símbolo tão natural de fraternidade é uma refeição em comum! Com que facilidade brota a amizade entre os participantes de um banquete ao ar livre!
“Podemos imaginar o que aconteceria depois, quando alguns dos cinco mil se encontrassem casualmente. A amizade suscitaria neles recordações comuns: o lugar onde se tinham sentado uns e outros naquele dia memorável; o temor de que as provisões não fossem suficientes; a alegria que tiveram quando Pedro, João ou Tiago passaram por eles com as mãos cheias de víveres; o assombro ao verem todos saciados e os doze cestos que sobraram”10.
Nós participamos da mesma mesa, do mesmo Banquete, comemos o mesmo Pão, que se multiplica sem cessar, e através do qual Cristo vem até nós. Os que seguimos o Senhor estamos unidos por um vínculo muito forte, e por nós corre a mesma vida. “Oxalá nos olhemos a nós mesmos como sarmentos vivos de Cristo, a videira, animados e vigorizados pela graça e pela virtude de Cristo!”11 A Comunhão dos Santos ensina‑nos que formamos um só Corpo em Cristo e que podemos ajudar‑nos eficazmente uns aos outros. Neste preciso momento, alguém está pedindo por nós, alguém nos ajuda com o seu trabalho, com a sua oração ou com a sua dor. Nunca estamos sós. A Comunhão dos Santos alimenta continuamente o nosso otimismo.
E comeram todos, e saciaram‑se; e do que sobrou recolheram doze cestos cheios de fragmentos. Ora, o número dos que tinham comido era de cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças. A generosidade de Jesus – que é a mesma agora, nos nossos dias – incita‑nos a recorrer a Ele cheios de esperança, pois são já muitos os dias em que o vimos seguindo.
“Pede‑Lhe sem medo, insiste. Lembra‑te da cena que o Evangelho nos relata acerca da multiplicação dos pães. – Olha a magnanimidade com que o Senhor responde aos Apóstolos: – Quantos pães tendes? Cinco?... Que me pedis?... E Ele dá seis, cem, milhares... Por quê?
“– Porque Cristo vê as nossas necessidades com uma sabedoria divina, e com a sua onipotência pode e chega mais longe do que os nossos desejos.
“O Senhor vai além da nossa pobre lógica e é infinitamente generoso!”12
Ele volta a realizar milagres quando pomos à sua disposição o pouco que possuímos. Ele tem outra lógica, que supera os nossos pobres cálculos, sempre pequenos e insuficientes. Que vergonha se alguma vez guardássemos para nós os cinco pães e os dois peixes, enquanto o Senhor esperava que os entregássemos para fazer maravilhas com eles!
(1) Cfr. Mt 14, 13‑21; (2) Josemaría Escrivá, Caminho, n. 471; (3) cfr. Mt 28, 28; (4) A. Ruiz, Anédoctas teresianas, 3ª ed., Monte Carmelo, Burgos, 1982, pág. 217; (5) Josemaría Escrivá, op. cit., n. 473; (6) São Tomás, Suma Teológica, I‑II, q. 68, a. 2, ad. 3; (7) Josemaría Escrivá, Forja, n. 659; (8) G. Chevrot, Jesus e a samaritana, Aster, Lisboa, 1954, pág. 145; (9) cfr. R. Knox, Ejercícios para sacerdotes, Rialp, Madrid, 1981, pág. 257; (10) ib.; (11) B. Baur, En la intimidad con Dios, Rialp, Madrid, 1963, pág. 233; (12) Josemaría Escrivá, Forja, n. 341.
Fonte: Livro "Falar com Deus", de Francisco Fernández Carvajal
Os Bens Messiânicos
TEMPO COMUM. DÉCIMO OITAVO DOMINGO. ANO A
– Multiplicação dos pães. Jesus cuida daqueles que o seguem.
– Este milagre é, além disso, figura da Sagrada Eucaristia, em que o Senhor se dá como alimento.
– Procurar o Senhor na Comunhão como aquelas multidões que se esqueciam até do indispensável para não o perderem. Preparar cada comunhão como se fosse a única da nossa vida.
I. DESTE‑NOS, SENHOR, o pão do céu, que encerra em si todas as delícias 1. O Evangelho da Missa 2 conta‑nos que o Senhor se meteu sozinho numa barca e se afastou para um lugar solitário. Mas muitos souberam para onde ia e seguiram‑no a pé. Ao desembarcar, o Senhor viu a multidão que o procurava e encheu‑se de compaixão por ela e curou os enfermos. Cura‑os sem que lho peçam, porque, para muitos, chegar àquele lugar levando até doentes impossibilitados de andar, era já suficiente expressão de uma fé grande. São Marcos3diz‑nos que Jesus se deteve longamente doutrinando essa multidão que o seguia, porque estavam como ovelhas sem pastor, cheios de confiança nEle.
O Senhor não viu passar o tempo, absorvido em ensinar e atender a todos, e os discípulos, não sem certa inquietação, sentiram‑se levados a intervir, porque já era avançada a hora e o lugar era deserto: Despede essa gente para que, indo às aldeias, compre de comer, dizem‑lhe. Mas Jesus surpreende‑os com a sua resposta: Não têm necessidade de ir; dai‑lhes vós de comer. E os Apóstolos fazem o que podem: conseguem cinco pães e dois peixes. É de notar que eram cinco mil homens, sem contar as mulheres e crianças. Jesus realizará um milagre portentoso com esses poucos pães e peixes, e com a obediência daqueles que o seguiam.
Depois de mandar que se sentassem na relva, Jesus, tomando os cinco pães e os dois peixes, levantando os olhos ao céu, pronunciou a bênção e, partindo os pães, deu‑os aos discípulos, e os discípulos às turbas. Todos comeram até ficarem saciados. O Senhor cuida dos seus, dos que o seguem, mesmo nas necessidades materiais quando é necessário, mas procura a nossa colaboração, que sempre é pequena. “Se o ajudares, mesmo que seja com uma ninharia, como fizeram os Apóstolos, Ele estará disposto a realizar milagres, a multiplicar os pães, a mudar as vontades, a dar luz às inteligências mais obscurecidas, a fazer – mediante uma graça extraordinária – que sejam capazes de retidão os que nunca o foram. – Tudo isto... e mais, se o ajudares com o que tens” 4.
Então compreenderemos melhor o que São Paulo nos diz na segunda Leitura: Quem nos separará, pois, do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a fome, a nudez, o perigo, a perseguição, a espada? [...]. De todas estas coisas saímos vencedores por aquele que nos amou. Porque estou certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as virtudes, nem as coisas presentes, nem as futuras, nem a força, nem a altura, nem a profundidade, nem outra criatura alguma nos poderá separar do amor de Deus que está em Jesus Cristo Nosso Senhor 5. Em Cristo encontramos sempre a nossa fortaleza.
II. O RELATO DO MILAGRE começa com as mesmas palavras e descreve os mesmos gestos com que os Evangelhos e São Paulo nos transmitem a instituição da Eucaristia6. Semelhante coincidência faz‑nos ver 7 que esse milagre, além de ser uma manifestação da misericórdia divina de Jesus para com os necessitados, era figura da Sagrada Eucaristia, da qual o Senhor falaria pouco depois, na sinagoga de Cafarnaum 8. Assim o interpretaram muitos Padres da Igreja. O próprio gesto do Senhor ao levantar os olhos para o céu é recordado pela liturgia no Cânon Romano da Santa Missa: Et elevatis oculis in caelum, ad Te Deum Patrem suum omnipotentem... Ao recordá‑lo, preparamo‑nos para assistir a um milagre muito maior que o da multiplicação dos pães: a conversão do pão no próprio Corpo de Cristo, que é oferecido sem medida como alimento a todos os homens.
O milagre daquela tarde junto do lago manifestou o poder e o amor de Jesus pelos homens. Poder e amor que hão de possibilitar também, ao longo da história, que o Corpo de Cristo seja encontrado, sob as espécies sacramentais, pelas multidões dos fiéis que o procurarão famintas e necessitadas de consolo. Como diz São Tomás no hino que compôs para a Missa do Corpus Christi: sumit unus, sumunt mille..., tomam‑no um, tomam‑no mil, tomam‑no este ou aquele, mas não se esgota quando o tomam...
“O milagre da multiplicação dos pães adquire assim todo o seu significado, sem perder nada da sua realidade. É grande em si mesmo, mas torna‑se ainda maior pelo que promete: evoca a imagem do bom pastor que alimenta o seu rebanho. Dir‑se‑ia que é como um ensaio de uma nova ordem. Multidões inteiras virão tomar parte no festim eucarístico, onde serão alimentadas de uma maneira muito mais milagrosa, com um manjar infinitamente superior” 9.
Esta multidão que se prende ao Senhor revela a forte impressão que a sua Pessoa produzia no povo, pois são tantos os que se dispõem a segui‑lo até paragens desérticas, a uma grande distância das vias mais transitadas e das aldeias. Vão sem provisões, não querem perder tempo em procurá‑las, pelo receio de perderem de vista o Senhor. Um bom exemplo para quando tivermos alguma dificuldade em visitá‑lo ou recebê‑lo. Para encontrar o Mestre, vale a pena qualquer sacrifício.
São João indica‑nos que o milagre causou um grande entusiasmo naquela multidão que se tinha saciado 10. “Senhor, se aqueles homens, por um pedaço de pão – embora o milagre da multiplicação tenha sido muito grande –, se entusiasmam e te aclamam, que não deveremos nós fazer pelos muitos dons que nos concedeste, e especialmente porque te entregas a nós sem reservas na Eucaristia?” 11
Na Comunhão, recebemos Jesus, Filho de Maria, que naquela tarde realizou o grandioso milagre. “Na Hóstia, possuímos o Cristo de todos os mistérios da Redenção: o Cristo de Maria Madalena, do filho pródigo e da Samaritana, o Cristo ressuscitado dos mortos, sentado à direita do Pai [...]. Esta maravilhosa presença de Cristo no meio de nós deveria revolucionar a nossa vida [...]; Ele está aqui, conosco: em cada cidade, em cada povoado [...]”12. Espera‑nos e sente a nossa falta quando nos atrasamos.
III. OS OLHOS DE TODOS esperam em Ti, Senhor, / e tu lhes dás o sustento no tempo oportuno; / Tu abres as mãos e sacias com benevolência todos os viventes, podemos ler no Salmo responsorial 13.
Jesus, realmente presente na Sagrada Eucaristia, dá a este sacramento uma eficácia sobrenatural infinita. Nós, quando desejamos expressar o nosso amor a uma pessoa, damos‑lhe algum objeto, fazemos‑lhe um favor ou prestamos‑lhe ajuda, procuramos estar atentos à pessoa amada..., mas sempre deparamos com um limite: não podemos dar‑nos nós mesmos. Jesus Cristo, pelo contrário, pode: dá‑se Ele mesmo, unindo‑nos a Ele, identificando‑nos com Ele.
E nós, que o procuramos com maiores desejos e maiores necessidades que aquelas pessoas que até se esqueceram da comida para não o perderem, encontramo‑lo diariamente na Sagrada Comunhão. Ele nos espera a cada um. Não fica na expectativa de que lhe peçamos alguma coisa: antecipa‑se e cura‑nos das nossas fraquezas, protege‑nos contra os perigos, contra as vacilações que pretendem separar‑nos dEle, e dá vida ao nosso caminhar. Cada Comunhão é uma fonte de graças, uma nova luz e um novo impulso que, às vezes sem o notarmos, nos dá fortaleza para enfrentarmos com garbo humano e sobrenatural a vida diária, a fim de que os nossos afazeres nos levem até Ele.
A participação destes benefícios depende, no entanto, da qualidade das nossas disposições interiores, porque os sacramentos “produzem um efeito tanto maior quanto mais perfeitas forem as disposições de quem os recebe” 14. Disposições habituais da alma e do corpo, desejos cada vez maiores de limpeza e de purificação, que nos farão recorrer à Confissão com uma periodicidade certa, ou antes se for necessário ou conveniente. “A piedade eucarística – diz João Paulo II – aproximar‑vos‑á cada vez mais do Senhor; e pedir‑vos‑á o oportuno recurso à Confissão sacramental, que leva à Eucaristia, como a Eucaristia leva à Confissão” 15.
Quanto mais se aproxima o momento de comungar, mais vivo se deve fazer o desejo de preparação, de fé e de amor. “Pensaste alguma vez como te prepararias para receber o Senhor, se apenas se pudesse comungar uma vez na vida? – Agradeçamos a Deus a facilidade que temos para nos aproximarmos dEle, mas... temos de agradecer preparando‑nos muito bem para recebê‑lo” 16, como se fosse a única Comunhão de toda a nossa vida, como se fosse a última. Um dia será a última, e pouco depois nos encontraremos cara a cara com Jesus, com quem estivemos tão intimamente no sacramento. Como nos hão de alegrar então as mostras de fé e de amor que lhe tivermos manifestado!
Aos que alimentastes com este Pão do céu, Senhor, protegei‑os com o vosso auxílio e concedei‑lhes que alcancem a redenção eterna, pedimos com a liturgia da Missa 17.
(1) Is 55, 1‑3; (2) Mt 14, 13‑21; (3) Mc 6, 33‑34; (4) Josemaría Escrivá, Forja, n. 675; (5) Rom 8, 35; 37‑39; (6) cfr. Mt 26, 26; Mc 14, 22; Lc 22, 19; 1 Cor 11, 25; (7) cfr. Sagrada Bíblia, Santos Evangelhos, nota a Jo 6, 11 e Mc 6, 41; (8) cfr. Jo 6, 26‑59; (9) M. J. Indart, Jesus en su mundo, Herder, Barcelona, 1963, págs. 265‑266; (10) Jo 6, 14; (11) Josemaría Escrivá, op. cit., n. 304; (12) M. M. Philipon, Os sacramentos da vida cristã; (13) Sl 144, 15‑16; (14) São Pio X, Decr. Sacra Tridentina Synodus, 20‑XII‑1905; (15) João Paulo II, Alocução, 31‑X‑1982; (16) Josemaría Escrivá, op. cit., n. 828; (17) Oração para depois da Comunhão.
Fonte: Livro "Falar com Deus", de Francisco Fernández Carvajal
Saber Falar, Saber Calar-se
TEMPO COMUM. DÉCIMA SÉTIMA SEMANA. SÁBADO
– O silêncio de Jesus.
– Falar quando é necessário, com caridade e fortaleza. Fugir do silêncio culposo.
– Valentia e fortaleza na vida corrente. Coerência com a fé e com a vocação pessoal.
I. DURANTE TRINTA ANOS, Jesus teve uma vida de silêncio; somente Maria e José conheciam o mistério do Filho de Deus. Quando, iniciada a vida pública, retorna um dia à cidade onde havia vivido, os seus conterrâneos admiram‑se da sua sabedoria e dos seus milagres, pois só tinham visto nele uma vida exemplar de trabalho.
Durante os três anos do seu ministério público, vemos como se recolhe no silêncio da oração, a sós com seu Pai‑Deus, como se afasta do clamor e do fervor superficial da multidão que pretende fazê‑lo rei, como realiza os seus milagres sem ostentação, recomendando freqüentemente aos que foram curados que não divulguem o favor recebido...
O silêncio de Jesus perante os clamores dos seus inimigos durante a Paixão é comovedor: Ele permaneceu em silêncio e nada respondeu1. Diante de tantas falsas acusações, aparece indefeso. “Deus nosso Salvador – comenta São Jerônimo –, que redimiu o mundo pela sua misericórdia, deixa‑se conduzir à morte como um cordeiro, sem dizer nenhuma palavra; nem se queixa nem se defende. O silêncio de Jesus obtém o perdão da rebeldia e das desculpas de Adão”2. Jesus permanece calado durante o processo no pretório e na corte de Herodes, e contemplamo‑lo de pé, sem dizer uma única palavra, diante dos inimigos clamorosos e excitados que se servem de falsos testemunhos para tergiversar as suas palavras. Está de pé diante do procurador. E, sendo acusado pelos príncipes dos sacerdotes e pelos anciãos, não respondeu coisa alguma. Então disse‑lhe Pilatos: Não ouves de quantas coisas te acusam? Mas ele não lhe deu resposta alguma, de modo que o procurador ficou extremamente admirado3.
O silêncio de Deus diante das paixões humanas, dos pecados que se cometem diariamente na humanidade, não é um silêncio irado, nem de desprezo, mas repleto de paciência e amor. O silêncio do Calvário é o de um Deus que vem redimir todos os homens com o seu sofrimento indizível na Cruz. O silêncio de Jesus no Sacrário é o do amor que espera ser correspondido, é um silêncio paciente, que se mostra magoado se não o visitamos ou o fazemos distraídamente.
O silêncio de Cristo durante a sua vida terrena não é de modo algum vazio interior, mas fortaleza e plenitude. Os que se queixam continuamente dos seus contratempos ou da sua pouca sorte, os que apregoam aos quatro ventos os seus problemas, os que não sabem sofrer silenciosamente uma injúria, os que se sentem urgidos continuamente a dar explicações do que fazem ou deixam de fazer, esperando com ansiedade o louvor ou a aprovação alheia..., todos esses deveriam olhar para Cristo, que permanece em silêncio. Imitamo‑lo quando aprendemos a carregar os fardos e incertezas da vida sem espalhafatos estéreis, quando enfrentamos os problemas pessoais sem descarregá‑los sobre os ombros alheios, quando respondemos pelos nossos atos sem desculpas nem justificações de nenhum tipo, quando realizamos o nosso trabalho olhando para a perfeição da obra e para a glória de Deus, sem procurar o apreço dos homens...4
Iesus autem tacebat. Jesus calava‑se. E nós devemos aprender a ficar calados em muitas ocasiões. Às vezes, o orgulho infantil e a vaidade levam‑nos a exteriorizar o que deveria ficar dentro da alma. A figura silenciosa de Cristo será um Modelo que deveremos ter sempre presente perante tanta palavra vazia e inútil. O seu exemplo é um motivo e um estímulo para vivermos de olhos postos exclusivamente em Deus. In silentio et in spe erit fortitudo vestra, a vossa fortaleza apoiar‑se‑á no silêncio e na esperança, diz‑nos o Espírito Santo pela boca do profeta Isaías5.
II. MAS JESUS nem sempre permaneceu calado. Porque existe também um silêncio que pode ser colaborador da mentira, um silêncio composto de cumplicidades e de grandes ou pequenas covardias; um silêncio que às vezes nasce do medo das conseqüências, do receio de comprometer‑se, do amor à comodidade, e que fecha os olhos ao que é árduo, para não ter de enfrentá‑lo: problemas que se deixam de lado, situações que deveriam ser resolvidas no momento oportuno porque há muita coisa que o tempo não conserta, correções fraternas que nunca se deveriam deixar de fazer..., dentro da própria família, no trabalho, ao superior ou ao inferior, ao amigo e àquele com quem temos maior dificuldade em relacionar‑nos.
A palavra de Jesus está sempre cheia de autoridade, e também de força diante da injustiça e da arbitrariedade: Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que devorais as casas das viúvas sob pretexto de longas orações...6 O Senhor nunca se importou de ir contra a corrente à hora de proclamar a verdade.
São João Batista, cujo martírio lemos hoje no Evangelho da Missa7, era a voz que clama no deserto. E ensina‑nos a dizer tudo o que deve ser dito, ainda que às vezes pareça que é falar no deserto, pois o Senhor não permite em nenhuma ocasião que a nossa palavra caia no vazio, e porque é necessário fazer o que deve ser feito, sem excessiva preocupação pelos frutos imediatos. Se cada cristão falasse de acordo com a sua fé, há muito teríamos mudado o mundo.
Não podemos permanecer calados perante infâmias e crimes como o aborto, a degradação do matrimônio e da família, ou perante um ensino que quer empurrar Deus para um canto na consciência dos mais jovens... Não podemos calar‑nos perante os ataques a Nossa Senhora, perante as calúnias às instituições da Igreja cuja verdade e retidão conhecemos muito bem... Esse silêncio poderia ser em muitos casos uma verdadeira colaboração com o mal, pois permitiria que se pensasse que “quem cala consente”.
Falar quando devemos. Às vezes, no pequeno grupo em que nos desenvolvemos, na conversa que surge espontaneamente entre vários à saída da aula, ou com uns amigos e vizinhos que nos visitam; entre os amigos e clientes..., ao passarmos por um anúncio indecoroso..., e na tribuna, se esse é o nosso lugar na sociedade. Por carta, para agradecer um bom artigo que apareceu num jornal ou para manifestar a nossa discordância com determinada linha editorial.
E sempre com caridade – que é compatível com a fortaleza (não existe caridade sem fortaleza) –, com bons modos, desculpando a ignorância de muitos, ressalvando sempre a intenção, sem agressividade nem formas amargas ou inadequadas, que seriam impróprias de alguém que segue Jesus Cristo de perto... Mas também com a fortaleza com que o Senhor agiu.
III. SE NOS MOMENTOS em que o Batista viu a sua vida em perigo, tivesse ficado calado ou permanecido à margem dos acontecimentos, não teria morrido degolado na prisão de Herodes. Mas João não era assim; não era como uma cana agitada pelo vento. Foi coerente com a sua vocação e os seus princípios até o final. Se se tivesse calado, teria vivido alguns anos mais, mas os seus discípulos não teriam sido os primeiros a seguir Jesus, e ele não teria sido aquele que preparou e aplainou os caminhos do Senhor, como Isaías tinha profetizado. Não teria vivido a sua vocação e, portanto, a sua vida não teria tido sentido.
Jesus, muito provavelmente, não nos pedirá o martírio violento, mas pede‑nos sem dúvida essa valentia e fortaleza nas situações comuns da vida ordinária: para desligar um mau programa de televisão, para ter essa conversa apostólica e não adiá‑la mais... Sem gastar as energias em queixas ineficazes, que de nada servem, dando doutrina positiva, apresentando soluções..., com otimismo perante o mundo e as coisas boas que nele existem, ressaltando tudo o que é bom: a felicidade de uma família numerosa, a profunda alegria de dedicar a vida à prática do bem, a nobreza do amor limpo que se conserva jovem vivendo santamente a virtude da pureza...
Muitos dos nossos amigos, ao verem que somos coerentes com a nossa fé, que não a dissimulamos nem a escondemos em face de determinados ambientes, ver‑se‑ão arrastados por esse testemunho sereno a seguir‑nos o exemplo, da mesma maneira que muitos se convertiam ao contemplarem o martírio – testemunho de fé – das primeiras gerações de cristãos.
Peçamos hoje a Nossa Senhora que nos ensine a permanecer calados em tantas ocasiões em que devemos fazê‑lo, e a falar sempre que seja necessário.
(1) Mc 14, 61; (2) São Jerônimo, Comentário sobre o Evangelho de São Marcos; (3) Mt 27, 12‑14; (4) F. Suárez, Las dos caras del silencio, em Revista Nuestro Tiempo, ns. 297 e 298; (5) Is 30, 15; (6) Mt 23, 14; (7) Mt 14, 1‑12.
Fonte: Livro "Falar com Deus", de Francisco Fernández Carvajal