TEMPO COMUM. DÉCIMA OITAVA SEMANA. QUARTA‑FEIRA

– A humildade da mulher cananéia.
– Caráter ativo da humildade.
– O caminho da humildade.

I. SÃO MATEUS NARRA no Evangelho da Missa 1 que Jesus se retirou com os seus discípulos para a terra dos gentios, na região de Tiro e Sidon. Ali, aproximou‑se deles uma mulher, que implorava aos brados: Senhor, filho de Davi, tem piedade de mim! Minha filha é cruelmente atormentada pelo demônio. Jesus ouviu‑a, mas não respondeu nada. Santo Agostinho comenta que não lhe fez caso precisamente porque sabia o que lhe reservava: não se calou para negar‑lhe um benefício, mas para que ela o merecesse com a sua perseverança humilde 2.

A mulher deve ter insistido durante um bom tempo, porque a certa altura os discípulos, cansados de tanta persistência, disseram ao Mestre: Atende‑a e despede‑a, porque vem gritando atrás de nós. O Senhor explicou então à mulher que Ele tinha vindo para pregar em primeiro lugar aos judeus. Mas a mulher, apesar da negativa, aproximou‑se e prostrou‑se aos pés dEle dizendo‑lhe: Senhor, ajuda‑me!

Diante dessa insistência, o Senhor repetiu as mesmas razões com uma imagem que a cananéia captou imediatamente: Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá‑lo aos cães. Voltou a dizer‑lhe que fora enviado antes de mais nada aos filhos de Israel e que não devia dar preferência aos pagãos. O gesto amável e acolhedor de Jesus, o tom das suas palavras, excluíam com certeza qualquer acento mais duro que pudesse ferir. Seja como for, a verdade é que as palavras de Jesus aumentaram a confiança da mulher, que disse com grande humildade: Assim é, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos.

Reconheceu a verdade da sua situação, “confessou que eram seus senhores aqueles que Jesus havia chamado filhos” 3. O próprio Santo Agostinho sublinha que aquela mulher “foi transformada pela humildade” e mereceu sentar‑se à mesa com os filhos4. Conquistou o coração de Deus, recebeu o dom que pedia e um grande elogio do Mestre: Ó mulher, grande é a tua fé! Seja‑te feito como queres. E desde aquela hora a sua filha ficou sã. Mais tarde, seria certamente uma das primeiras mulheres provenientes da gentilidade a abraçar a fé, e conservaria sempre no seu coração o agradecimento e o amor ao Senhor.

Nós, que estamos longe de igualar a fé e a humildade desta mulher, pedimos com fervor ao Mestre:

“Jesus bom: se tenho de ser apóstolo, é preciso que me faças muito humilde.

“O sol envolve em luz tudo quanto toca: Senhor, invade‑me com a tua claridade, endeusa‑me: que eu me identifique com a tua Vontade adorável, para me converter no instrumento que desejas… Dá‑me a tua loucura de humilhação: a que te levou a nascer pobre, ao trabalho sem brilho, à infâmia de morrer costurado com ferros a um lenho, ao aniquilamento do Sacrário.

“– Que eu me conheça: que me conheça e que Te conheça. Assim, jamais perderei de vista o meu nada” 5.

I. CONTA‑SE DE SANTO ANTÃO que Deus lhe permitiu ver o mundo repleto de armadilhas preparadas pelo demônio para fazer cair os homens. O santo, depois dessa visão, ficou assombrado e perguntou: “Senhor, quem poderá escapar de tantas armadilhas?” E ouviu uma voz que lhe respondia: “Antão, quem for humilde; pois Deus dá aos humildes a graça necessária, ao passo que os soberbos vão caindo em todos os laços que o demônio lhes prepara; mas às pessoas humildes, o demônio não se atreve a atacá‑las”.

Nós, se queremos servir o Senhor, temos de desejar e pedir‑lhe com insistência a virtude da humildade. E desejá‑la‑emos de verdade se tivermos sempre presente que o pecado capital oposto, a soberba, é o que há de mais contrário à vocação que recebemos do Senhor, o que mais prejudica a vida familiar, a amizade, o que mais se opõe à verdadeira felicidade… É o principal ponto de apoio com que o demônio conta para tentar destruir a obra que o Espírito Santo procura edificar incessantemente na nossa alma.

Mas a virtude da humildade não consiste somente em afastar os movimentos da soberba, do egoísmo e do orgulho. Com efeito, nem Jesus nem a sua Santíssima Mãe experimentaram movimento algum de soberba, e no entanto, tiveram a virtude da humildade em grau sumo. A palavra humildade deriva de humus, terra; humilde, na sua etimologia, significa inclinado para a terra. A virtude da humildade consiste, pois, em inclinar‑se diante de Deus e de tudo o que há de Deus nas criaturas 6. Na prática, leva‑nos a reconhecer a nossa inferioridade, a nossa pequenez e indigência perante Deus. Os santos sentem uma alegria muito grande em aniquilar‑se diante de Deus e em reconhecer que só Ele é grande, e que, em comparação com a dEle, todas as grandezas humanas são ocas e não passam de mentiras.

A humildade baseia‑se na verdade 7, sobretudo na grande verdade de que a distância entre a criatura e o Criador é infinita. Por isso, temos de persuadir‑nos de que todo o bem que há em nós vem de Deus, de que todo o bem que fazemos foi sugerido e impulsionado por Ele, e de que Ele nos deu a graça necessária para realizá‑lo. Não somos capazes de dizer sequer uma única jaculatória senão sob o impulso e a graça do Espírito Santo 8; as deficiências, o pecado e os egoísmos, esses são nossos. “Estas misérias são inferiores ao próprio nada, porque são uma desordem e reduzem a nossa alma a um estado de abjeção verdadeiramente deplorável” 9. A graça, pelo contrário, faz com que os próprios anjos se assombrem ao contemplarem uma alma que resplandece sob a ação desse dom divino.

A mulher cananéia não se sentiu humilhada com a comparação de que Jesus se serviu para indicar‑lhe a diferença que havia entre os judeus e os pagãos; era humilde e sabia qual o lugar que lhe competia em relação ao Povo eleito; e porque era humilde, não teve inconveniente em perseverar e prostrar‑se diante de Jesus, apesar de ter sido aparentemente repelida…

III. “À PERGUNTA: «Como hei de chegar à humildade?» corresponde a resposta imediata: «Pela graça de Deus» […]. Somente a graça divina nos pode dar a visão clara da nossa própria condição e a consciência da grandeza de Deus que dá origem à humildade” 10. Por isso, temos que desejá‑la e pedi‑la incessantemente, convencidos de que, com essa virtude, amaremos a Deus e seremos capazes de grandes empreendimentos, apesar das nossas fraquezas…

Além de sermos almas de oração, temos de saber aceitar as humilhações, normalmente pequenas, que surgem diariamente por motivos tão diversos: na execução do nosso trabalho, na convivência com os outros, ao notarmos as fraquezas e os erros em que caímos, sejam grandes ou pequenos. Conta‑se de São Tomás de Aquino que, um dia, alguém o advertiu de um suposto erro de gramática que teria cometido enquanto lia; corrigiu‑o conforme lhe indicavam. Depois, os seus companheiros perguntaram‑lhe por que o fizera, se sabia perfeitamente que o texto, tal como o tinha lido, era correto. O Santo respondeu: “Diante de Deus, é preferível um erro de gramática a outro de obediência e humildade”. Percorremos o caminho da humildade quando nos lembramos de que “não és humilde quando te humilhas, mas quando te humilham e o aceitas por Cristo” 11.

Quem é humilde não necessita de pensar em louvores e elogios para cumprir as suas tarefas, porque a sua esperança está posta no Senhor; e Ele é, de modo real e verdadeiro, a fonte de todos os seus bens e a sua felicidade: é Ele quem dá sentido a tudo o que faz. “Uma das razões pelas quais os homens são tão propensos a louvar‑se, a sobrestimar o seu valor e os seus poderes, a ressentir‑se de qualquer coisa que tenda a rebaixá‑los aos seus próprios olhos ou aos olhos dos outros, é não verem outra esperança para a sua felicidade que eles mesmos. É por isso que se mostram freqüentemente tão suscetíveis quando são criticados, tão grosseiros com os que os contradizem, tão insistentes em “dizer a última palavra”, tão ávidos de ser conhecidos, tão ansiosos de louvores, tão decididos a governar o seu ambiente. Apóiam‑se em si mesmos como o náufrago se agarra a uma palha. E a vida prossegue, e cada vez estão mais longe da felicidade…” 12

Quem luta por ser humilde não anda à busca de elogios nem de louvores; e se lhe chegam, procura encaminhá‑los imediatamente para a glória de Deus, que é o Autor de todo o bem. A humildade manifesta‑se não tanto no auto‑desprezo como no esquecimento próprio, mediante o reconhecimento alegre de que não temos nada que não tenhamos recebido de Deus: para Ele toda a glória.

Aprenderemos a ser humildes se meditarmos na Paixão do Senhor, se considerarmos a sua grandeza diante de tanta humilhação, se tivermos presente que se deixou levar ao Calvário como cordeiro ao matadouro, conforme fora profetizado 13; se pensarmos na sua humilhação ao permanecer nos nossos Sacrários, onde nos espera para nos levantar o ânimo depois de um desgosto causado talvez pela nossa soberba…

E aprenderemos também a ser humildes se prestarmos atenção a Maria, a Escrava do Senhor, aquela que sabia não lhe caber mérito algum, mas ao Todo‑Poderoso, pois Ele manifestou o poder do seu braço e dispersou os que se orgulhavam com os pensamentos do seu coração 14. Recorreremos por último a São José, que empregou toda a sua vida em servir a Jesus e a Maria, numa dedicação silenciosa.

(1) Mt 15, 21‑28; (2) cfr. Santo Agostinho, Sermão 154 A, 4; (3) idem, Sermão 60 A, 2‑4; (4) ib.; (5) São Josemaría Escrivá, Sulco, n. 273; (6) cfr. R. Garrigou‑Lagrange, Las tres edades de la vida interior, vol. II; (7) Santa Teresa, Moradas, VI, 10; (8) cfr. 1 Cor 12, 3; (9) R. Garrigou‑Lagrange, op. cit., vol. II, pág. 674; (10) E. Boylan, Amor sublime, vol. II, pág. 81; (11) São Josemaría Escrivá, Caminho, n. 594; (12) E. Boylan, op. cit., pág. 82; (13) Is 53, 7; (14) Lc 1, 51.

Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal