TEMPO COMUM. DÉCIMO DOMINGO. CICLO B

– A natureza humana em estado de justiça e de santidade.

I. DEUS SITUOU O HOMEM no cume da Criação para que dominasse sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que se arrastam pela terra1. Por isso dotou-o de inteligência e vontade, de modo que oferecesse livremente ao seu Criador uma glória muito mais excelente do que a que lhe prestam as demais criaturas.

Enriqueceu-o, além disso, com os dons da imunidade da morte, da concupiscência e da ignorância, chamados dons preternaturais, pelos quais não podia enganar-se ao conhecer e ficava livre de todo o erro; o próprio corpo gozava de imortalidade, “não por virtude própria, mas por uma força sobrenatural impressa na alma, que preservava o corpo da corrupção enquanto estivesse unido a Deus”2.

Levado pelo seu amor, Deus foi ainda mais longe e decretou também a elevação sobrenatural do homem, para que tomasse parte na sua vida divina3 e conhecesse de alguma forma os seus mistérios íntimos, que superam absolutamente todas as exigências naturais. Para isso, revestiu-o gratuitamente da graça santificante4 e das virtudes e dons sobrenaturais, constituindo-o em santidade e justiça e capacitando-o para agir sobrenaturalmente5.

Esta ação divina teve lugar na pessoa de Adão, mas Deus contemplava nele todo o gênero humano. O dom de justiça e santidade originais foi-lhe conferido “não enquanto pessoa singular, mas enquanto princípio geral de toda a natureza humana, de modo que depois dele se propagasse mediante a geração a todos os homens que viessem a seguir”6.

Todos deveríamos nascer em estado de amizade com Deus e com a alma e o corpo embelezados pelas perfeições outorgadas pelo Senhor. E, no momento devido, o Senhor confirmaria cada homem na graça, arrebatando-o da terra sem dor e sem passar pelo transe da morte, para fazê-lo gozar da sua felicidade eterna no Céu.

Este foi o plano divino, repleto de bondade para com o gênero humano. Em face dele, devemos agora deter-nos a agradecer ao Senhor a sua magnanimidade infinita para com o ser humano, o seu esbanjamento de amor por umas criaturas de que absolutamente não precisava.

Louvai o Senhor, porque Ele é bom.

– Transmissão do pecado original e das suas conseqüências. A luta contra o pecado.

II. “A PRESENÇA DA JUSTIÇA original e da perfeição no homem, criado à imagem de Deus […], não excluía que esse homem, enquanto criatura dotada de liberdade, fosse submetido desde o princípio, como os demais seres espirituais, à prova da liberdade”7. Deus impôs-lhe uma única condição: Podes comer de todas as árvores do paraíso, mas não comerás da árvore da ciência do bem e do mal, porque, no dia que dela comeres, certamente morrerás8.

Conhecemos pela Sagrada Escritura a triste transgressão dessa ordem do Senhor, e hoje a primeira Leitura da Missa9 descreve-nos o estado a que o homem ficou reduzido depois do seu ato de desobediência. Quebrou-se imediatamente a sua sujeição ao Criador e desintegrou-se a harmonia que havia nas suas potências: perdeu a santidade e a justiça originais, o dom da imortalidade, e caiu “no cativeiro daquele que tem o império da morte (Hebr 2, 14), ou seja, do diabo; e toda a pessoa de Adão, por aquela ofensa de prevaricação, foi mudada para pior no corpo e na alma”10.

Assim cometeram os nossos primeiros pais o pecado original no começo da história, um pecado que se propaga por geração a cada homem que vem a este mundo11.

A realidade desse pecado e o conflito que cria na intimidade de cada homem é um dado que se comprova facilmente. A fé explica a sua origem, mas todos experimentamos as suas conseqüências. “O que a Revelação divina nos diz coincide com a experiência. O homem, com efeito, quando examina o seu coração, comprova a sua inclinação para o mal e sente-se afogado em muitos males que não podem ter a sua origem no seu santo Criador”12.

Paulo VI ensina que o homem nasce em pecado, com uma natureza caída que já não possui o dom da graça de que outrora estava adornada, antes está ferida nas suas próprias forças naturais e submetida ao império da morte. Além disso, “o pecado original transmite-se juntamente com a natureza humana, por propagação, não por imitação”, e “encontra-se em cada um como próprio”13.

Com efeito, dá-se uma misteriosa solidariedade de todos os homens em Adão, de modo que “todos podem considerar-se como um só homem, enquanto a todos convém uma mesma natureza recebida do primeiro pai”14. Mas a solidariedade da graça que unia todos os homens em Adão antes da sua falta, transformou-se em solidariedade no pecado. “Por isso, assim como a justiça original se teria transmitido aos descendentes, assim se transmitiu a desordem”15.

O espetáculo que o mal apresenta no mundo e em nós, as tendências e os instintos do corpo que não se submetem à razão, convencem-nos da profunda verdade contida na Revelação e incitam-nos a lutar contra o pecado, único verdadeiro mal e raiz de todos os males que existem no mundo.

“Quanta miséria! Quantas ofensas! As minhas, as tuas, as da humanidade inteira…

Et in peccatis concepit me mater mea! (Sl 50, 7). E minha mãe concebeu-me no pecado. Nasci, como todos os homens, manchado com a culpa dos nossos primeiros pais. Depois…, os meus pecados pessoais: rebeldias pensadas, desejadas, cometidas…

“Para nos purificar dessa podridão, Jesus quis humilhar-se e tomar a forma de servo (cfr. Flp 2, 7), encarnando-se nas entranhas sem mácula de Nossa Senhora, sua Mãe e Mãe tua e minha. Passou trinta anos de obscuridade, trabalhando como outro qualquer, junto de José. Pregou. Fez milagres… E nós lhe pagamos com uma Cruz.

“Precisas de mais motivos para a contrição?”16

– Orientar novamente para Deus as realidades humanas.

III. O SENHOR EXPULSOU os nossos primeiros pais do Paraíso17, indicando assim que os homens viriam ao mundo em estado de separação de Deus. Em vez dos dons sobrenaturais, Adão e Eva transmitiram-nos o pecado. Perderam a herança que deveriam deixar aos seus descendentes, e já entre os seus primeiros filhos se fizeram notar imediatamente as conseqüências do pecado: Caim mata Abel por inveja.

Da mesma forma, todos os males pessoais e sociais têm a sua origem no primeiro pecado do homem. Embora o Batismo perdoe totalmente a culpa e a pena do pecado original, bem como os pecados que se possam ter cometido pessoalmente antes de tê-lo recebido, não livra, no entanto, dos efeitos do pecado: o homem continua sujeito ao erro, à concupiscência e à morte.

O pecado original foi um pecado de soberba18. E cada um de nós cai também na mesma tentação de orgulho quando procura ocupar o lugar de Deus, quer na vida privada, quer na sociedade: Sereis como deuses19. São as mesmas palavras que o homem ouve no meio da desordem dos seus sentidos e potências. Tal como no princípio, também agora busca ele a autonomia que o converta em árbitro do bem e do mal, e esquece-se de que o seu maior bem consiste no amor e na submissão ao seu Criador; de que só nEle é que se recuperam a paz, a harmonia dos instintos e sentidos, bem como todos os demais bens.

A nossa ação apostólica no meio do mundo mover-nos-á a situar cada homem e as suas obras (o ordenamento jurídico, o trabalho, o ensino…) no legítimo lugar que lhes cabe em face do seu Criador. Quando Deus está presente num povo, numa sociedade, a convivência torna-se mais humana. Não existe solução alguma para os conflitos que assolam o mundo, para uma maior justiça social, que não passe antes por uma aproximação de Deus, por uma conversão do coração. O mal está na raiz – no coração do homem –, e é aí que é preciso curá-lo. A doutrina sobre o pecado original, tão ativo hoje no homem e na sociedade, é um ponto fundamental que não se pode esquecer na catequese e em todo o trabalho de formação cristã.

Perante um mundo que parece girar fora dos eixos, não podemos cruzar os braços como quem nada pode diante de uma situação que o supera. Não é necessário que intervenhamos nas grandes decisões, que talvez não nos digam respeito, mas devemos fazê-lo nesses campos que Deus pôs ao nosso alcance para que lhes demos uma orientação cristã.

A nossa Mãe Santa Maria, que “foi preservada imune de toda a mancha da culpa do pecado original desde o primeiro instante da sua concepção imaculada, por singular graça e privilégio”20 de Deus, há de ensinar-nos a ir à raiz dos males que nos afetam, ajudando-nos a fortalecer em primeiro lugar e em cada situação a nossa amizade com Deus.

(1) Gên 1, 26; (2) São Tomás, Suma Teológica, I, q. 97, a. 1; (3) cfr. Conc. Vat. II, Const. Lumen gentium, 2; (4) cfr. Pio XII, Enc. Humani generis, 12-VIII-1950; (5) cfr. Conc. de Trento, Sessão V, can. 1; (6) São Tomás, De malo, q. 4, a. 1; (7) João Paulo II, Alocução, 3-IX-1986; (8) Gên 2, 17; Primeira leitura da Missa do décimo domingo do TC, ciclo B; (9) Gên 3, 9-15; (10) Conc. de Trento, Sessão V, can. 1; (11) cfr. Conc. de Orange, can. 2; (12) Conc. Vat. II, Const. Gaudium et spes, 13; (13) Paulo VI, Credo do Povo de Deus, 16; (14) São Tomás, Suma Teológica, I-II, q. 81, a. 1; (15) ib., q. 81, a. 2; (16) Josemaría Escrivá, Via Sacra, IVª est., n. 2; (17) Gên 3, 23; (18) cfr. São Tomás, op. cit., II-II, q. 163, a. 1; (19) Gên 3, 5; (20) Pio IX, Bula Ineffabilis Deus, 8-XII-1854.

Fonte: livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal.