TEMPO COMUM. DÉCIMA SEMANA. QUARTA-FEIRA

– Necessidade da graça para realizar o bem.
– As graças atuais.
– Correspondência.

I. PELO PECADO ORIGINAL, a natureza humana perdeu o estado de santidade a que havia sido elevada por Deus e, conseqüentemente, ficou privada também da integridade e da ordem interior que possuía. Desde então, o homem já não tem a suficiente firmeza de vontade para cumprir todos os preceitos morais que conhece. Fazer o bem tornou-se-lhe difícil depois da aparição do pecado sobre a terra. E “é isto o que explica a íntima divisão do homem – ensina o Concílio Vaticano II –. Toda a vida humana, a individual e a coletiva, apresenta-se como luta, uma luta dramática entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas” 1.

A ajuda de Deus é absolutamente necessária para realizarmos atos de valor sobrenatural. Não é que, por nós mesmos, sejamos ca pazes de ter algum pensamento como próprio, mas a nossa capacidade provém de Deus 2. Além disso, depois do pecado original, essa ajuda tornou-se mais necessária. “Ninguém se liberta do pecado e se eleva sobre si mesmo por suas próprias forças; ninguém fica completamente livre da sua debilidade, da sua solidão ou da sua escravidão” 3; todos temos necessidade de Cristo, modelo, mestre, médico, libertador, salvador, vivificador 4. Sem Ele, nada podemos; com Ele, podemos tudo.

Ainda que a natureza humana não se tenha corrompido pelo pecado original, experimentamos – mesmo depois de termos sido batizados – uma tendência para o mal e uma grande dificuldade em fazer o bem: é o chamado fomes peccati ou concupiscência, que – sem ser pecado em si mesmo – procede do pecado e inclina para o pecado 5. A própria liberdade está debilitada, ainda que não tenha sido suprimida.

Compreendemos assim, à luz desta doutrina, que as nossas boas obras, os nossos frutos de santidade e de apostolado, são em primeiro lugar de Deus; e só secundariamente – muito secundariamente –, resultado de termos correspondido à graça como seus instrumentos, sempre frágeis e desproporcionados.

O Senhor pede-nos que tenhamos sempre em conta esta pobreza da nossa condição, evitando o perigo de uma vaidade tola. Porque amiúde – diz Santo Afonso Maria de Ligório – “o homem dominado pela soberba é um ladrão pior que os demais, porque não rouba bens terrenos, mas a glória de Deus […]. Segundo afirma o Apóstolo, por nós mesmos, não podemos fazer nenhuma obra boa ou sequer ter um bom pensamento (cfr. 2 Cor 3, 5) […]. E já que as coisas são assim, quando fizermos algum bem, digamos ao Senhor: Devolvemos-te, Senhor, o que de tuas mãos recebemos (1 Cron 29, 14)” 6. Devemos dizê-lo diante de qualquer fruto que nos tenha vindo às mãos. Oferecê-lo-emos de novo a Deus, pois sabemos bem que a malícia e as deficiências são nossas; a beleza e a bondade são dEle.

II. COMO OBSERVAMOS nas páginas do Evangelho, os encontros dos homens com Cristo foram únicos e irrepetíveis: Nicodemos, Zaqueu, a mulher adúltera, o bom ladrão, os Apóstolos… A ação de Deus já preparara lentamente aqueles homens e mulheres para que se abrissem ao Senhor no momento oportuno; e, após esse encontro singular e determinante, a graça de Deus continuou a acompanhá-los, suscitando e levando a cabo nas suas almas novas conversões, novos progressos.

Os nossos encontros com Cristo também foram irrepetíveis e únicos, como os dessas pessoas que o encontraram nas terras da Galiléia, junto ao lago de Genesaré, em Jerusalém ou num povoado da Samaria. E a partir daí Jesus está igualmente presente na nossa vida e, por sua bondade, continua a ajudar-nos com mil moções interiores para que nos aproximemos mais e mais dEle. São graças atuais, dons gratuitos e transitórios que desenvolvem os seus efeitos em cada alma de uma maneira particular. Quantas não recebemos nós em cada dia! Quantas mais não receberemos se não fecharmos as portas da alma a essa ação silenciosa e eficacíssima do Santificador!

O Espírito Santo – sem suprimir a nossa liberdade – ilumina-nos constantemente para que conheçamos a verdade, inspira-nos e puxa por nós a cada momento, antecedendo, acompanhando e aperfeiçoando as nossas boas ações. Deus é quem realiza em vós, não apenas o querer, mas o executar, segundo o seu beneplácito 7. Devemos pedir-lhe a sabedoria prática de procurar apoio nEle e não em nós, de ir buscar a nossa coragem nEle e não na habilidade da nossa inteligência ou dos nossos recursos pessoais; devemos escutar sempre, na vida prática, a advertência amorosa do Mestre: Sem mim, nada podeis fazer 8.

Na vida sobrenatural, seremos sempre principiantes, e devemos portanto conduzir-nos com a docilidade e a aplicação de uma criança que necessita em tudo dos mais velhos. São Francisco de Sales ilustra com um exemplo esta relação que há entre Deus e os homens: “Quando uma mãe ensina o seu filhinho a andar, ajuda-o e ampara-o tanto quanto necessário, deixando-o dar alguns passos pelos lugares menos perigosos e mais planos, pegando-o pela mão e sustendo-o, ou tomando-o nos braços e carregando-o. Da mesma maneira Nosso Senhor cuida continuamente de cada passo dos seus filhos” 9. Somos isso diante de Deus: crianças pequenas que não acabam de aprender a andar.

Cabe-nos corresponder a essa assistência amorosa, manifestar a nossa boa vontade, começar e recomeçar, sendo sinceros como uma criança simples no nosso diálogo com Deus e com o sacerdote a quem confiamos a direção da nossa alma; lutando com o brio de uma criança estimulada pela mãe na matéria do nosso exame particular, esse ponto bem concreto em que nos esforçamos por alcançar vitória de uma forma especial. Os nossos dias resumir-se-ão muitas vezes em pedir ajuda, corresponder e agradecer.

III. DEUS TRATA CADA ALMA com um respeito infinito, sem nunca forçar a sua vontade, e por isso o homem pode resistir à graça e tornar estéril o desejo divino. De fato, ao longo do dia, talvez em coisas pequenas, muitas vezes dizemos não a Deus. E devemos dizer sim ao que nos pede, e não ao nosso egoísmo, aos impulsos da soberba, à preguiça.

A resposta livre à graça de Deus deve dar-se no pensamento, nas palavras e nas ações 10. Não basta somente a fé para cooperarmos adequadamente: Deus pede-nos um esforço pessoal, pede-nos obras, iniciativas, desejos eficazes…

Ainda que, com a sua Morte na Cruz, tenha merecido para nós um tesouro infinito de bens, as graças que nos concede não nos são concedidas todas de uma vez; e a sua maior ou menor abundância depende de como lhes correspondemos.

Quando estamos dispostos a dizer sim ao Senhor em tudo, atraímos uma verdadeira chuva de dons 11. A graça inunda-nos quando somos fiéis às suas pequenas insinuações ao longo de cada dia: quando vivemos o “minuto heróico” à hora de nos levantarmos pela manhã e procuramos que o nosso primeiro pensamento seja para Deus, quando nos preparamos para a Santa Missa e afastamos as distrações que pretendem desviar-nos daquilo que importa, quando oferecemos o trabalho ou não nos esquivamos a um pequeno sacrifício, quando temos um detalhe de caridade…

Ninguém poderá dizer que foi esquecido ou desamparado por Deus, se faz o que está ao seu alcance, porque o Senhor concede o seu auxílio a todos, mesmo aos que estão fora da Igreja sem culpa própria 12. Mais ainda, o Senhor, infinitamente misericordioso e paciente, procura seguidamente, de mil modos diferentes, o regresso daquele que se foi embora com a herança e agora se encontra numa situação lamentável. Cada dia sai ao terraço, na esperança de enxergar ao longe o vulto do filho que retorna 13, e move-lhe o coração para que reempreenda o caminho que o trará de volta à casa paterna. E quando encontra correspondência às suas graças, derrama-se em ajudas e bens, e anima a subir mais e mais.

Se, nestes momentos de oração pessoal, percebermos que nos custa corresponder aos pequenos movimentos da graça, sigamos este conselho: “Tens de entrar em colóquio com Santa Maria e confiar-lhe: – Ó Senhora, para viver o ideal que Deus meteu no meu coração, preciso voar… muito alto, muito alto! […]” 14.

E perto de Maria sempre encontramos José, seu esposo fidelíssimo, que tão bem e com tanta prontidão soube realizar o que Deus, através do Anjo, lhe ia manifestando. Podemos recorrer a ele ao longo do dia, para que nos ajude a ouvir claramente a voz do Espírito Santo em tantos detalhes e em ocasiões tão pequenas, e para que sejamos fortes em levar à prática essas suas sugestões.

(1) Cfr. Conc. Vat. II, Const. Gaudium et spes, 13; (2) 2 Cor 3, 5; Primeira leitura da Missa da quarta-feira da décima semana do TC, ano ímpar; (3) Santo Irineu, Contra as heresias, 3, 15, 3; (4) cfr. Conc. Vat. II, Decr. Ad gentes, 8; (5) Conc. de Trento, Decr. Sobre o pecado original, 5; (6) Santo Afonso Maria de Ligório, Seleta de temas de pregação, 2, 6; (7) Fil 2, 13; (8) Jo 15, 5; (9) São Francisco de Sales, Tratado do amor a Deus, 3, 4; (10) cfr. Conc. Vat. II, Const. Lumen gentium, 14; (11) cfr. Pio XII, Enc. Mystici Corporis, 29-VI-1943; (12) cfr. Conc. Vat. II, Const. Lumen gentium, 16; (13) cfr. Lc 15, 20; (14) cfr. Josemaría Escrivá, Forja, n. 994.

Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal