TEMPO COMUM. DÉCIMA SEXTA SEMANA. SEXTA‑FEIRA
– Dignidade do corpo e de todas as coisas criadas. Necessidade desta virtude.
I. A IGREJA sempre reconheceu a dignidade do corpo humano e de todas as coisas criadas. No relato da Criação, o autor sagrado mostra como Deus se regozijou com o que tinha feito1; depois de ter criado o homem, diz o Gênesis, Deus viu que era muito bom tudo o que tinha feito2, e constituiu‑o como cabeça de toda a criação. E com a vinda da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, que assumiu a natureza humana e realizou a redenção do homem e do universo material, tudo o que é humano adquiriu uma particular dignidade.
Não é doutrina cristã a oposição radical entre a alma e o corpo, pois todo o homem, em corpo e alma, está chamado a alcançar a vida eterna. Ninguém como a Igreja ensinou a dignidade e o respeito que se deve ao corpo: Não sabeis que os vossos membros são templo do Espírito Santo que habita em vós, e que o recebestes de Deus e que portanto não vos pertenceis a vós mesmos? Porque fostes comprados por um grande preço. Glorificai, pois, e trazei a Deus no vosso corpo3.
No entanto, por causa da desordem que o pecado introduziu no mundo, o homem tem de esforçar‑se e lutar para não se ver prisioneiro e escravo dos bens que Deus criou para ele com o fim de que também através deles pudesse alcançar o Céu. Especialmente nos nossos dias, parece que muitos procuram estabelecer como fim aquilo que Deus estabeleceu como meio, e põem de parte as leis divinas, sem perceber que caem nas garras de um tirano cada vez mais exigente. Desse modo, desfiguram a imagem de Deus que existe em todo o homem e, com ela, a própria dignidade humana. A temperança, pelo contrário, “faz com que o corpo e os nossos sentidos encontrem o lugar exato que lhes corresponde no nosso ser humano”4, o lugar que Deus lhes determinou.
Os que não estão habituados a negar‑se em nada, os que abrem as portas a tudo o que os sentidos lhes pedem, os que procuram em primeiro lugar agradar ao corpo e só se empenham em andar à busca das maiores comodidades, dificilmente poderão ser donos de si mesmos e chegar a Deus. Estão como que embotados para as coisas divinas, e também para muitos valores humanos, que não entendem e para os quais se encontram incapacitados. São mau terreno para que a semente da graça divina lance raízes neles. O próprio Senhor nos diz no Evangelho da Missa que aquele que recebeu a semente entre espinhos é o que ouve a palavra, mas os cuidados deste século e a sedução das riquezas sufocam a palavra, e ela fica infrutuosa5.
Num clima em que o importante é o corpo, a saúde, o aspecto físico, é impossível que a vida cristã ganhe raízes e dê fruto. Os bens convertem‑se assim em males, em duros espinhos que sufocam o que há de mais nobre no homem e a própria vida eterna, que se inicia já aqui na alma em graça: “Com o corpo pesado e enfartado de mantimentos, muito mal preparado está o ânimo para voar em direção ao alto”6.
Temos que estar atentos para não nos deixarmos levar por essa ânsia desmedida de bem‑estar que está presente em muitos setores do mundo atual, nos quais se pensa que o ápice da vida e do triunfo consiste em ter mais e em ostentar aquilo que se possui. O nosso verdadeiro êxito está em sermos fiéis àquilo que Deus quer de nós e em alcançarmos a vida eterna. Nós sabemos que o nosso coração só pode saciar‑se em Deus, pois está feito para a eternidade, e que as coisas terrenas sempre o deixarão insatisfeito, frustrado e triste.
– A temperança humaniza o homem e possibilita a sua plenitude. Desprendimento dos bens. Dar exemplo.
II. A NOSSA MÃE A IGREJA recorda‑nos continuamente a necessidade da temperança, que impede que a semente lançada no coração fique sufocada. Temos que estar vigilantes, pois se examinarmos “a orientação que a nossa cultura moderna vai tomando, verificaremos que conduz a um certo hedonismo, à vida fácil, a um certo empenho por eliminar a cruz do nosso horizonte”7. E essa tendência ameaça muitos.
A temperança humaniza o homem, porque, se este se abandona à satisfação dos seus instintos, acaba por parecer‑se com um trem descarrilado: perde o eixo, sai dos trilhos e fica impossibilitado de prosseguir viagem. Nessas circunstâncias, o que é mais nobre no homem – a inteligência e a vontade – fica submetido ao que o é menos: ao instinto e às paixões.
Viver a virtude da temperança não é repressão, mas moderação, harmonia. É um hábito que se adquire por meio de muitos pequenos atos que disciplinam os prazeres, mesmo os lícitos, e orientam os bens sensíveis para o fim último do homem. Quem vive essa virtude “sabe prescindir do que faz mal à sua alma e apercebe‑se de que o sacrifício é apenas aparente, porque, ao viver assim – com sacrifício –, livra‑se de muitas escravidões e no íntimo do seu coração consegue saborear todo o amor de Deus. A vida recupera então os matizes que a intemperança esbate. Ficamos em condições de nos preocuparmos com os outros, de compartilhar com todos as coisas pessoais, de nos dedicarmos a tarefas grandes”8.
Viver bem esta virtude implica andar desprendido dos bens e dar‑lhes a importância que têm e não mais; não criar necessidades; não fazer gastos inúteis; ser moderado na comida, na bebida, no descanso; prescindir de caprichos…
O Senhor pede‑nos que demos exemplo de temperança no meio do mundo, sem nos deixarmos levar pela falsa naturalidade de querer ser como os outros. Transigir neste ponto seria dificultar ou até impedir a possibilidade de seguir Cristo como um dos seus íntimos. Com a nossa vida, temos de mostrar a muitos que “o homem vale mais pelo que é do que pelo que tem”9, e temos de fazê‑lo com o exemplo de uma vida sóbria e temperada. De modo especial, os pais devem ensinar e ajudar os filhos a crescer “numa justa liberdade diante dos bens materiais, adotando um estilo de vida simples e austero”10.
– Algumas manifestações de temperança.
III. A VIRTUDE DA TEMPERANÇA tem que impregnar toda a vida do cristão: desde as comodidades do lar até os instrumentos de trabalho e as maneiras de divertir‑se. Para descansar, por exemplo, não é necessário – geralmente – fazer grandes gastos nem longas viagens. Dá exemplo de temperança aquele que sabe usar moderadamente da televisão e, em geral, dos instrumentos de conforto que a técnica oferece, sem estar excessivamente pendente do seu próprio bem‑estar. Muitos parecem viver exclusivamente para passar a vida rodeados do maior bem‑estar possível.
Nos nossos dias, também se pode dizer de certas pessoas que o seu Deus é o ventre11, pela preocupação que põem nos assuntos da comida e da bebida. Pessoa sóbria é aquela que modera o uso dos alimentos: evita comer fora de horas e por capricho; não procura pratos mais requintados neste ou naquele restaurante, entrando em gastos desproporcionados; não consome quantidades excessivas… “Habitualmente, comes mais do que precisas. – E essa fartura, que muitas vezes te produz lassidão e incomodidade física, torna‑te incapaz de saborear os bens sobrenaturais e entorpece o teu entendimento. – Que boa virtude, mesmo para a terra, é a temperança!”12
Ainda que muitas destas manifestações de gula não sejam pecado grave, no entanto são ofensas a Deus, que debilitam a vontade e acabam por ser uma recusa dessa vida austera, alegre e desprendida que o Senhor pede. São os espinhos que afogam a boa semente; levam a uma vida de tibieza e de desinteresse e apatia pelos bens espirituais e especialmente pelos divinos.
A Igreja dá à sobriedade um valor e sentido mais alto quando nos convida a encarar os alimentos como um dom de Deus e aconselha a bênção à mesa e a ação de graças depois das refeições. São Tomás sublinha que, embora a sobriedade e a temperança sejam necessárias a todos, são‑no de maneira particular aos jovens, pela sua inclinação para a sensualidade; às mulheres; aos anciãos, que devem dar exemplo; aos ministros da Igreja; e aos governantes, para que possam exercer os seus cargos com sabedoria13.
A temperança refere‑se também à moderação da curiosidade, do falar sem medida, das piadas nas conversas… “Penso – afirmava o Papa João Paulo II – que esta virtude exige também de cada um de nós uma humildade específica em relação aos dons que Deus colocou na natureza humana. Eu diria a «humildade do corpo» e a «do coração»”14, que tão bem se compaginam com a rejeição da ostentação e da vaidade néscia.
A temperança é uma grande defesa contra a agressividade de um ambiente polarizado nos bens materiais. Além disso, prepara para receber, como terra boa, as moções do Espírito Santo e é um meio indispensável para levarmos a cabo um apostolado eficaz no meio do mundo.
(1) Cfr. Gen 1, 25; (2) Gen 1, 31; (3) 1 Cor 6, 19‑20; (4) João Paulo II, Sobre a temperança, 22‑XI‑1988; (5) Mt 13, 22; (6) São Pedro de Alcântara, Tratado da oração e da meditação, II, 3; (7) Paulo VI, Alocução, 8‑IV‑1966; (8) Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, n. 84; (9) Conc. Vat. II, Const. Gaudium et spes, n. 35; (10) João Paulo II, Exort. Apost. Familiaris consortio, 22‑XI‑1981, n. 37; (11) Fil 3, 19; (12) Josemaría Escrivá, Caminho, n. 682; (13) São Tomás, Suma Teológica, II‑II, q. 149, a. 4; João Paulo II, Sobre a temperança, 22‑XI‑1988.
Fonte: livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal.