TEMPO COMUM. TRIGÉSIMA QUARTA SEMANA. SEXTA-FEIRA

– Leitura do Evangelho.
– Deus fala-nos na Sagrada Escritura.
– Para tirar fruto.

I. A PONTO DE TERMINAR o ano litúrgico, lemos no Evangelho da Missa esta expressão do Senhor: O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão 1.

As palavras de Jesus são palavras eternas, pois deram-nos a conhecer a intimidade do Pai e o caminho que devíamos seguir para chegar até Ele. Permanecerão porque foram pronunciadas por Deus para cada homem, para cada mulher que vem a este mundo. Deus, tendo falado outrora muitas vezes e de muitos modos aos nossos pais pelos profetas, ultimamente, nestes dias, falou-nos por meio do seu Filho 2. “Estes dias” são também os nossos. Jesus Cristo continua a falar, e as suas palavras, por serem divinas, são sempre atuais.

Toda a Escritura anterior a Cristo adquire o seu sentido exato à luz da figura e da pregação do Senhor. Santo Agostinho, com uma expressão vigorosa, escreve que “a Lei estava prenhe de Cristo” 3. E afirma em outro lugar: “Lede os livros proféticos sem ver Cristo neles: não há nada mais insípido, mais insosso. Mas descobri Cristo neles, e isso que ledes torna-se não só saboroso, mas embriagador” 4. É Cristo quem descobre o profundo sentido que se contém em toda a revelação anterior: Então abriu-lhes o entendimento para que compreendessem as Escrituras 5.

Os judeus que se negaram a aceitar o Evangelho ficaram na situação de quem possui um cofre com um grande tesouro, mas não tem a chave para abri-lo. Os seus espíritos – escreve São Paulo aos cristãos de Corinto – velaram-se, e ainda hoje o mesmo véu continua estendido sobre a leitura do Antigo Testamento, porque só em Cristo é que ele desaparece6, pois “a economia do Antigo Testamento estava ordenada principalmente para preparar a vinda de Cristo, redentor universal, e o seu reino messiânico […]. Deus, que é o inspirador e autor dos livros de ambos os Testamentos, dispôs as coisas sabiamente, de tal modo que o Novo estivesse latente no Antigo e o Antigo se tornasse claro no Novo” 7. É comovente neste sentido o diálogo entre o Apóstolo Filipe e o etíope, ministro de Candace, que lia o profeta Isaías. Compreendes o que lês?, perguntou-lhe Filipe. Como poderei compreender se não houver alguém que mo explique? Então, principiando por essa passagem da Escritura, anunciou-lhe Jesus 8. Jesus era a peça-chave para que compreendesse.

São João Crisóstomo comenta assim esse episódio narrado pelos Atos dos Apóstolos: “Considerai como é importante não desleixar-se em ler a Escritura até mesmo numa viagem […]. Pensem nisto aqueles que nem sequer em casa a lêem; porque estão com a mulher, ou porque militam no exército ou estão preocupados com os familiares e ocupados em outros assuntos, julgam que não lhes convém fazer esse esforço por ler as divinas Escrituras […]. Este bárbaro etíope é um exemplo para nós: para os que têm uma vida privada, para os membros do exército, para as autoridades e também para as mulheres – com maior razão se estão sempre em casa – e para os que escolheram a vida monástica. Aprendam todos que nenhuma circunstância é impedimento para a leitura divina, que é possível realizá-la não só em casa, mas na praça, em viagem, em companhia de outras pessoas ou no meio de uma ocupação. Não descuremos, rogo-vos, a leitura das Escrituras” 9.

A Igreja sempre recomendou a leitura e a meditação dos textos sagrados, principalmente do Novo Testamento, em cujas passagens encontramos sempre Cristo que vem ao nosso encontro. Uns poucos minutos diários ajudam-nos a conhecer melhor Jesus, a amá-lo mais, pois só amamos aquilo que conhecemos bem.

II. TODAS AS ESCRITURAS traçaram o caminho que Cristo devia percorrer 10, todas de certo modo anunciaram o Messias. Os Profetas descreveram esse dia e desejaram vê-lo 11. Os discípulos viriam a reconhecer em Cristo Aquele que tantas vezes e de tantas formas fora anunciado 12. Quando São Paulo tiver que defender-se das ameaças do rei Agripa, dirá simplesmente que se limita a anunciar o cumprimento do que os Profetas anunciaram 13. Contudo, não foi Cristo que olhou para os Profetas e Moisés e lhes obedeceu. Foram eles que nas suas descrições, por inspiração divina, se subordinaram ao que seria a existência do Filho de Deus na terra. Porque Moisés escreveu de mim 14. E Abraão, vosso pai, suspirou por ver o meu dia; viu-o e alegrou-se 15.

Jesus Cristo aplica a si as antigas figuras: o templo 16, o maná 17, a pedra 18, a serpente de bronze 19. Por isso dirá em certa ocasião: Examinais as Escrituras porque credes ter nelas a vida eterna; e são elas que dão testemunho de mim 20. Quando lemos no Evangelho que o céu e a terra passarão, mas não as palavras de Cristo, isso significa de algum modo que nelas se contém toda a revelação de Deus aos homens: a anterior à sua vinda, que tem valor em tudo o que se refere a Ele, pois é nEle que se cumpre e clarifica; e a novidade que o Senhor traz aos homens, indicando-lhes claramente o caminho que devem seguir. Jesus Cristo é a plenitude da revelação de Deus aos homens. “Ao dar-nos, como nos deu, o seu Filho, que é uma Palavra sua, e não tem outra, falou-nos tudo junto e de uma vez nessa única Palavra, e não tem mais nada que falar” 21.

A Epístola aos Hebreus 22 ensina que a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais penetrante que espada de dois gumes; e chega até à separação da alma e do espírito, das articulações e da medula, e discerne os pensamentos e intenções do coração. É palavra nova e expressamente dirigida a nós, se sabemos lê-la com fé. “Nos Livros sagrados, com efeito, o Pai que está nos céus vem carinhosamente ao encontro dos seus filhos para conversar com eles. E é tão grande o poder e a eficácia que se encerra na palavra de Deus, que ela constitui sustentáculo e vigor para a Igreja, e, para os seus filhos, firmeza da fé, alimento da alma, pura e perene fonte de vida espiritual” 23.

De alguma maneira, são atuais a partida e o regresso do filho pródigo, a necessidade do fermento para transformar a massa do mundo, os leprosos que ficam curados no seu encontro com Cristo. Quantas vezes não teremos pedido a Jesus luz para as nossas vidas, servindo-nos das palavras de Bartimeu: Ut videam!, que eu veja, Senhor! Quantas vezes não teremos recorrido à misericórdia divina com as palavras do publicano: Tem piedade de mim, Senhor, que sou um pecador! Como saímos reconfortados do encontro diário com Jesus na leitura do Evangelho!

III. QUÃO DOCES SÃO as tuas palavras para o meu paladar! São-no mais que o mel para a minha boca 24.

Às vezes – observa Ronald Knox 25 –, quando várias pessoas cantam sem acompanhamento de um instrumento musical, tende-se a baixar o tom; a voz vai caindo aos poucos. Por isso, se o coro não está acostumado a cantar sem acompanhamento musical, o diretor costuma ter escondido um diapasão que sopra brevemente de vez em quando, para lembrar a todos a nota com que devem sintonizar.

Quando a vida espiritual começa a baixar de tom, a enlanguescer, é necessário também um diapasão que reponha o tom. Quantas vezes a meditação de uma passagem do Evangelho, sobretudo da Paixão de Nosso Senhor, não foi como que uma enérgica chamada de atenção para fugirmos dessa vida menos heróica que queríamos levar…!

Não podemos passar as páginas do Evangelho como se fossem as de um livro qualquer. Com que amor foi guardado durante séculos, quando somente algumas comunidades cristãs tinham o privilégio de possuir uma cópia ou apenas algumas páginas! Com que piedade e reverência era lido! A sua leitura – ensina São Cipriano a respeito da oração – é alicerce sólido para edificarmos a esperança, meio para consolidarmos a fé, alimento para a caridade, guia que indica o caminho… 26 Santo Agostinho diz que os ensinamentos nele contidos “são lâmpadas colocadas num lugar escuro” 27, que sempre iluminam a nossa vida.

Para tirarmos fruto da leitura e meditação do Evangelho, “pensa que não só deves saber, mas viver o que ali se narra: obras e ditos de Cristo. Tudo, cada ponto que se relata, foi registrado, detalhe por detalhe, para que o encarnes nas circunstâncias concretas da tua existência.

“– O Senhor chamou-nos, a nós católicos, para que o seguíssemos de perto; e, nesse Texto Santo, encontras a Vida de Jesus; mas, além disso, deves encontrar a tua própria vida.

“Aprenderás a perguntar tu também, como o Apóstolo, cheio de amor: «Senhor, que queres que eu faça?…» A Vontade de Deus!, ouvirás na tua alma de modo terminante.

“Pois bem, pega no Evangelho diariamente, e lê-o e vive-o como norma concreta. – Assim procederam os santos” 28.

Então poderemos dizer com o Salmista: Lâmpada para os meus passos é a tua palavra, e luz para os meus caminhos 29.

(1) Lc 21, 33; (2) Hebr 1, 1; (3) Santo Agostinho, Sermão 196, 1; (4) Santo Agostinho, Comentário ao Evangelho de São João, 9, 3; (5) Lc 24, 45; (6) 2 Cor 3, 14; (7) Concílio Vaticano II, Constituição Verbum Dei, 15 e segs.; (8) cfr. At 8, 27-35; (9) São João Crisóstomo, Homilias sobre o Gênesis, 35; (10) cfr. Lc 22, 37; (11) cfr. Lc 10, 24; (12) cfr. Jo 1, 41-45; (13) cfr. At 26, 2; (14) Jo 5, 46; (15) Jo 8, 56; (16) Jo 2, 19; (17) cfr. Jo 6, 32; (18) cfr. Jo 7, 8; (19) cfr. Jo 3, 14; (20) Jo 5, 39; (21) São João da Cruz, Subida do Monte Carmelo, II, 22; (22) Hebr 4, 12; (23) Concílio Vaticano II, Constituição Dei Verbum, 2; (24) Sl 118, 103; (25) Ronald A. Knox, Ejercicios para seglares, 2ª ed., Rialp, Madrid, 1962, pág. 177; (26) cfr. São Cipriano, Tratado sobre a oração; (27) Santo Agostinho, Comentários sobre os Salmos, 128; (28) Bem-aventurado Josemaría Escrivá, Forja, n. 754; (29) Sl 118, 105.

Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal