Esta solenidade data dos primeiros tempos do cristianismo. “Os apóstolos Pedro e Paulo são considerados por todos os fiéis cristãos, com todo o direito, como as primeiras colunas, não somente da Santa Sé romana, mas também da Igreja universal do Deus vivo, disseminada por toda a terra” (Paulo VI). Fundadores da Igreja de Roma, Mãe e Mestra das demais comunidades cristãs, foram eles que impulsionaram o seu crescimento com o supremo testemunho do “seu martírio, padecido em Roma com fortaleza: Pedro, a quem Nosso Senhor Jesus Cristo escolheu como fundamento da sua Igreja e bispo desta esclarecida cidade, e Paulo, o Doutor das gentes, mestre e amigo da primeira comunidade aqui fundada” (Paulo VI). No Brasil, transfere-se esta festa para o primeiro domingo depois de 29 de junho.
I. SIMÃO PEDRO, como a maior parte dos seguidores de Jesus, era natural de Betsaida, cidade da Galiléia, às margens do lago de Genesaré. Era pescador, como o resto da família. Conheceu Jesus por intermédio de seu irmão André, que pouco tempo antes, talvez naquele mesmo dia, tinha passado uma tarde inteira em companhia de Cristo, juntamente com João. André não guardou para si o tesouro que tinha encontrado, “mas, cheio de alegria, correu a contar ao seu irmão o bem que tinha recebido” 1.
Pedro chegou à presença do Mestre. Intuitus eum Iesus… “Jesus, fitando-o…” O Mestre cravou o olhar no recém-chegado e penetrou até o mais íntimo do seu coração. Como teríamos gostado de contemplar esse olhar de Cristo, capaz de mudar a vida de uma pessoa! Jesus olhou para Pedro de um modo imperioso e tocante. Nesse pescador galileu, ou melhor, para além dele, Jesus via toda a sua Igreja através dos tempos. O Senhor mostrou conhecê-lo desde sempre: Tu és Simão, filho de João! E também conhece o seu futuro: Tu te chamarás Cefas, que quer dizer Pedro. Nestas poucas palavras condensavam-se a vocação e o destino de Pedro, a sua tarefa neste mundo.
Desde o começo, “a situação de Pedro na Igreja é a da rocha sobre a qual se levanta o edifício” 2. Toda a Igreja – e a nossa própria fidelidade à graça – tem como pedra angular, como alicerce firme, o amor, a obediência e a união com o Sumo Pontífice; “em Pedro, robustece-se a nossa fortaleza” 3, ensina São Leão Magno. Olhando para Pedro e para toda a Igreja na sua peregrinação terrena, vemos que lhes podem ser aplicadas as palavras pronunciadas por Jesus: Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e investiram contra aquela casa, mas ela não desabou porque estava fundada sobre rocha 4. Rocha que, com as suas debilidades e defeitos, um dia foi escolhida pelo Senhor: um pobre pescador da Galiléia e os seus sucessores ao longo dos séculos.
O encontro de Pedro com Jesus deve ter impressionado profundamente os que o presenciaram, familiarizados como estavam com as cenas do Antigo Testamento. O próprio Deus tinha mudado o nome do primeiro Patriarca: Chamar-te-ás Abraão, que quer dizer Pai de uma multidão 5. Também mudara o nome de Jacó pelo de Israel, que quer dizer Forte diante de Deus 6. Agora, a mudança de nome de Simão não deixava de revestir-se de certa solenidade, no meio da simplicidade do encontro. “Eu tenho outros desígnios a teu respeito”, foi o que Jesus lhe deu a entender.
Mudar o nome equivalia a tomar posse de uma pessoa, ao mesmo tempo que era designar-lhe uma missão divina no mundo. Cefas não era nome próprio, mas o Senhor impõe-no a Pedro para indicar-lhe a função que desempenharia como seu Vigário e que lhe seria revelada de modo pleno mais tarde 7. Nós podemos examinar hoje, na nossa oração, como é o nosso amor por aquele que faz as vezes de Cristo na terra: se rezamos diariamente por ele, se difundimos os seus ensinamentos, se o defendemos prontamente quando é questionado ao recordar a doutrina da Igreja, que é a mesma de sempre e que jamais mudará, ainda que mude o que os homens e as sociedades acham ou deixam de achar. Que alegria damos a Deus quando Ele vê que amamos, com obras, o seu Vigário aqui na terra!
Apesar das suas fraquezas, Pedro foi fiel a Cristo, até dar a vida por Ele. Isto é o que lhe pedimos ao terminarmos esta meditação: fidelidade, apesar das contrariedades e de tudo o que nos seja adverso. Pedimos-lhe fortaleza na fé, como o próprio Pedro pedia aos primeiros cristãos da sua geração: que saibamos resistir fortes in fide 8. “Que podemos pedir a Pedro para nosso proveito, que podemos oferecer em sua honra senão esta fé, na qual têm as suas origens a nossa saúde espiritual e a nossa promessa, por ele exigida, de sermos fortes na fé?” 9
Esta fortaleza é a que pedimos também à nossa Mãe Santa Maria, para sabermos conservar a nossa fé sem ambigüidades, com serena firmeza, seja qual for o ambiente em que tenhamos de viver.
II. QUE DEVO FAZER, Senhor? 10, perguntou São Paulo no momento da sua conversão. Jesus respondeu-lhe: Levanta-te e entra em Damasco, e ali te será dito tudo o que deves fazer.
O perseguidor, transformado pela graça, receberá a instrução cristã e o batismo por meio de um homem – Ananias –, de acordo com os caminhos normais da Providência. E depois, tendo Cristo por eixo da sua vida, dedicar-se-á com todas as suas forças a espalhar a Boa Nova, sem se importar com os perigos, as tribulações, os sofrimentos e os aparentes fracassos. Sabe-se instrumento escolhido para levar o Evangelho a muitas gentes: Quando aprouve Àquele que me segregou desde o ventre de minha mãe, e me chamou pela sua graça, revelar em mim o seu Filho, para anunciá-lo aos gentios… 11, lemos na segunda Leitura da Missa.
Santo Agostinho afirma que o zelo apaixonado de Paulo, anterior à sua conversão, era como uma selva impenetrável, mas, apesar de constituir um grande obstáculo, era ao mesmo tempo indício da fecundidade do solo. O Senhor semeou aí a semente do Evangelho, e os frutos foram inumeráveis 12. O que aconteceu com Paulo pode acontecer com cada homem, mesmo que as suas faltas tenham sido muito graves. É a ação misteriosa da graça, que não muda a natureza, mas exerce sobre ela um poder curativo e purificador, e depois a eleva e aperfeiçoa.
São Paulo estava convencido de que Deus contava com ele desde o momento em que fora concebido, desde o ventre materno, conforme insiste em diversas ocasiões. A Sagrada Escritura mostra-nos como Deus escolhe os seus enviados mesmo antes de nascerem 13, pondo assim de manifesto que a iniciativa é dEle e antecede qualquer mérito pessoal. O Apóstolo diz expressamente aos primeiros cristãos de Éfeso: Escolheu-nos antes da constituição do mundo 14. E concretiza ainda mais na Epístola a Timóteo: Chamou-nos com vocação santa, não em virtude das nossas obras, mas em virtude do seu desígnio 15.
A vocação é um dom que Deus preparou desde toda a eternidade. Por isso, quando o Senhor se manifestou em Damasco, Paulo não pediu conselho “nem à carne nem ao sangue”, não consultou nenhum homem, porque tinha a certeza de que fora chamado pelo próprio Deus. Não atendeu aos conselhos da prudência carnal, antes foi plenamente generoso com o Senhor. A sua entrega foi imediata, total, sem condições. E o mesmo aconteceu com os demais Apóstolos, quando ouviram o convite de Jesus: deixaram as redes imediatamente 16 e, relictis omnibus, abandonando todas as coisas 17, seguiram o Mestre. Saulo, antigo perseguidor dos cristãos, segue agora o Senhor com toda a prontidão.
Todos nós recebemos, de diversas maneiras, uma chamada concreta para servir o Senhor. E ao longo da vida chegam-nos novos convites para segui-lo, e temos de ser generosos com Ele em cada novo encontro. Temos de saber perguntar a Jesus na intimidade da oração, como São Paulo: Que devo fazer, Senhor?, que queres que eu deixe por Ti?, em que desejas que eu melhore? Neste momento da minha vida, que posso fazer por Ti?
Temos de pedir hoje a São Paulo que saibamos converter em oportuna qualquer situação que se nos apresente. Quando se chega a um trato verdadeiramente amistoso com uma pessoa, é absolutamente natural que mais cedo ou mais tarde lhe falemos de Deus, em clima de confidência. Não se deve temer nesse caso a inoportunidade. E, para nossa confusão, muitas vezes a reação será exatamente a contrária daquela que temíamos: “Como é que você não me falou antes disso?” E nesse ambiente de simplicidade, surgem sempre confidências íntimas de antigas frustrações, de carências atuais, de inquietações sobre o futuro… que desembocam na necessidade de uma vida de fé.
(1) São João Crisóstomo, em Catena Aurea, vol. VII, pág. 113; (2) Paulo VI, Alocução, 24-XI-1965; (3) São Leão Magno, Homilia na festa de São Pedro Apóstolo, 83, 3; (4) Mt 7, 25; (5) cfr. Gen 17, 5; (6) cfr. Gen 32, 28; (7) cfr. Mt 16, 16-18; (8) cfr. Lc 5, 11; (9) Mt 16, 15-16; (10) São João Crisóstomo, em Catena Aurea, vol. VII, pág. 113; (11) Paulo VI, Alocução, 24-XI-1965; (12) São Leão Magno, Homilia na festa de São Pedro Apóstolo, 83, 3; (13) Mt 7, 25; (14) cfr. Gen 17, 5; (15) cfr. Gen 32, 28; (16) cfr. Mt 16, 16-18; (17) cfr. Lc 5, 11.
Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal