– É Deus quem escolhe.
– Nunca nos faltam as graças necessárias para levarmos a bom termo a nossa vocação.
– A felicidade e o sentido da vida estão em seguir a chamada que Deus faz a cada homem.
Depois da Ascensão, enquanto esperavam a vinda do Espírito Santo, os Apóstolos escolheram Matias para que ocupasse o lugar de Judas e se completasse o número dos Doze, que representavam as doze tribos de Israel. Matias fora discípulo do Senhor e testemunha da Ressurreição. Segundo diz a tradição, evangelizou a Etiópia, onde sofreu o martírio. As suas relíquias foram levadas a Tréveris por ordem de Santa Helena. É o padroeiro da cidade.
I. NÃO FOSTES VÓS que me escolhestes, mas eu que vos escolhi e vos enviei para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça 1.
Depois da traição de Judas, tinha ficado um lugar vago entre os Doze Apóstolos. Com a eleição do novo Apóstolo, viria a cumprir-se o que o próprio Espírito Santo tinha profetizado e o que Jesus tinha instituído expressamente. O Senhor quis que fossem doze os seus Apóstolos 2. O novo Povo de Deus devia estar alicerçado sobre doze colunas, como o antigo tinha estado sobre as doze tribos de Israel 3.
São Pedro, exercendo o seu primado diante dos cento e vinte discípulos, declara as condições que devia ter aquele que completaria o Colégio Apostólico, conforme aprendera do Mestre: o discípulo devia ter convivido com Jesus. Por isso diz no seu discurso: É necessário que, destes homens que nos acompanharam durante todo o tempo em que o Senhor Jesus viveu entre nós, desde o batismo de João até o dia em que foi arrebatado dentre nós, um deles seja constituído testemunha conosco da sua ressurreição 4. O Apóstolo ressalta a necessidade de que o novo eleito tivesse sido testemunha ocular da pregação e dos atos de Jesus ao longo da sua vida pública, e de modo muito especial da Ressurreição. Trinta anos mais tarde, dirá nas últimas palavras que dirigiu a todos os cristãos: Porque não foi seguindo fábulas engenhosas que vos demos a conhecer o poder e a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas depois de termos sido testemunhas oculares da sua grandeza 5.
Pedro não escolhe, mas deixa a sorte nas mãos de Deus, conforme se fazia por vezes no Antigo Testamento 6. Lançam-se sortes, mas é Deus quem decide, lê-se no Livro dos Provérbios 7. Mencionaram-se dois: José, chamado Barsabás, que tinha por sobrenome o Justo, e Matias, forma abreviada de Matatias, que significa presente de Deus. Tiraram os seus nomes à sorte, e a sorte caiu sobre Matias, que foi associado aos onze Apóstolos. Um historiador antigo alude a uma tradição segundo a qual este discípulo pertencia ao grupo dos setenta e dois que, enviados por Jesus, tinham ido pregar pelas cidades de Israel 8.
Antes da eleição, Pedro e toda a comunidade oraram a Deus, porque a eleição não seria feita por eles: a vocação é sempre uma escolha divina. Por isso disseram: Tu, Senhor, que conheces os corações de todos, mostra-nos qual destes dois escolheste. Os onze e os outros discípulos não se atreveram a tomar por si próprios, levados por considerações ou simpatias pessoais, a responsabilidade de indicar um sucessor para Judas. São Paulo, quando se sentir movido a declarar a origem da sua missão, dirá que foi constituído não pelos homens nem pela autoridade de um homem, mas somente por Jesus Cristo, e por Deus, seu Pai 9. É o Senhor quem escolhe e envia. Também agora.
Cada um de nós tem uma vocação divina, uma chamada para a santidade e para o apostolado, recebida no batismo e especificada depois nas sucessivas intervenções de Deus na sua história pessoal. E há momentos em que esta chamada se torna especialmente intensa e clara. “Eu também não pensava que Deus me apanharia como o fez. Mas o Senhor […] não nos pede licença para nos “complicar a vida”. Mete-se e… pronto!” 10 E depois cabe a cada um a responsabilidade de corresponder. Hoje podemos perguntar-nos na nossa oração: Sou fiel ao que o Senhor quer de mim? Procuro cumprir a vontade de Deus em todos os meus projetos? Estou disposto a corresponder ao que o Senhor me vai pedindo ao longo da vida?
II. … ET CECIDIT SORS super Matthiam…, a sorte caiu sobre Matias… A chamada de Matias recorda-nos que a vocação recebida é sempre um dom imerecido. Deus chama-nos para que nos assemelhemos cada vez mais a Cristo, para que participemos da vida divina; atribui-nos uma missão na existência e quer que permaneçamos bem ao seu lado, numa vida felicíssima, já aqui na terra e depois na eterna. Cada um é chamado por Deus para estender o seu reinado no lugar em que se encontra e de acordo com as suas circunstâncias.
Mas, além dessa chamada universal à santidade e à dedicação apostólica, Jesus faz chamadas especiais. E chama muitos: uns para que dêem dEle um testemunho particular afastando-se do mundo, ou para que prestem um serviço particular pelo exercício do sacerdócio; outros, a imensa maioria, para que, permanecendo no mundo, o vivifiquem por dentro, mediante a vida matrimonial, que é um “caminho de santidade” 11, ou mediante o celibato, pelo qual se entrega a Deus o coração inteiro, por amor a Ele e às almas.
A vocação não nasce de bons desejos ou de grandes aspirações. Não foram os Apóstolos, e agora Matias, que escolheram o Senhor como Mestre, conforme o costume judeu de selecionar o rabino com quem se queria aprender. Foi Cristo quem os escolheu: a quase todos, diretamente, e, no caso de Matias, por meio dessa eleição que a Igreja depositou nas mãos de Deus. Não fostes vós que me escolhestes – recordará Jesus na Última Ceia, conforme lemos hoje no Evangelho da Missa –, mas eu que vos escolhi e vos destinei para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça 12. Por que estes homens gozaram desse imenso dom? Por que precisamente eles e não outros? Não tem cabimento fazer uma pergunta dessas. Foram escolhidos simplesmente porque o Senhor os chamou. E nessa libérrima escolha de Cristo – chamou os que quis 13 – reside toda a honra e a essência da vida dos escolhidos.
Desde o primeiro momento em que Jesus fixa o seu olhar numa alma e a convida a segui-lo, passa a haver muitas outras chamadas, que talvez pareçam pequenas, mas que sinalizam o caminho: “Ao longo da vida, ordinariamente pouco a pouco, mas de modo constante, Deus propõe-nos – com convites exigentes – muitas «determinações» dessa chamada radical, que implicam sempre uma relação de pessoa a pessoa com Cristo. Deus pede-nos desde o princípio a decisão de segui-lo, mas, com uma sábia pedagogia, oculta-nos a totalidade dos posteriores desdobramentos daquela decisão, talvez porque não seríamos capazes de aceitá-los in actu” 14, naquele momento. O Senhor vai dando à alma luzes e graças particulares, mediante novos impulsos através dos quais o Espírito Santo parece puxá-la para cima, em desejos de ser melhor, de servir mais os homens.
Segundo a tradição, Matias morreu mártir, como os outros Apóstolos. A essência da sua vida consistiu em realizar a doce e por vezes dolorosa a tarefa que naquele dia o Espírito Santo colocou sobre os seus ombros. Na fidelidade à nossa vocação, desde o momento em que o Senhor nos chama e ao longo dos seus contínuos detalhamentos, está também a nossa maior felicidade e o sentido da nossa vida.
III. JESUS ESCOLHE os seus discípulos, chama-os. Esta chamada é o seu maior bem, o que lhes dá direito a uma especial união com o Mestre, a graças especiais, a serem amorosamente escutados na intimidade da oração. “A vocação de cada um funde-se até certo ponto com o seu próprio ser: pode-se dizer que vocação e pessoa tornam-se uma coisa só. Isto significa que na iniciativa criadora de Deus está presente um particular ato de amor para com os que são chamados não apenas à salvação, mas ao ministério da salvação.
Por isso, desde a eternidade, desde que começamos a existir nos desígnios do Criador e Ele nos quis criaturas, também nos quis chamados, predispondo em nós os dons e as condições para a resposta pessoal, consciente e oportuna, ao apelo de Cristo ou da Igreja. Deus, que nos ama, que é Amor, é também «Aquele que chama» (cfr. Rom 9, 11)” 15.
Paulo começa as suas cartas assim: Paulo, servo de Cristo Jesus, chamado a ser Apóstolo, escolhido para o Evangelho de Deus16. Chamado e eleito não pelos homens, nem pela autoridade de um homem, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai 17. O Senhor chama-nos como chamou Moisés 18, Samuel 19, Isaías 20. É uma chamada que não se baseia em méritos pessoais: O Senhor chamou-me antes de eu ter nascido 21. E Paulo dirá ainda mais categoricamente: Deus chamou-nos com uma vocação santa, não em virtude das nossas obras, mas segundo o seu desígnio 22.
Jesus chamou os seus discípulos para que partilhassem com Ele o seu cálice, isto é, a sua vida e a sua missão. Agora convida-nos a cada um de nós: temos de estar atentos para não abafar essa voz com o ruído das coisas, que, se não são nEle e por Ele, não têm o menor interesse. Quando se ouve a voz de Cristo que convida a segui-lo completamente, nada mais importa… E Ele, ao longo da vida, vai-nos descobrindo a imensa riqueza contida na primeira chamada, a daquele dia em que passou mais perto de nós.
Mal foi eleito, Matias mergulhou novamente no silêncio. Como os outros Apóstolos, experimentou o ardente transporte de Pentecostes. Calcorriou caminhos, pregou e curou doentes, mas o seu nome não volta a aparecer na Sagrada Escritura. Como os outros Apóstolos, deixou um rasto luminoso de fé inquebrantável que dura até os nossos dias. Foi uma luz viva que Deus contemplou do Céu, com imensa alegria.
(1) Jo 15, 16; Antífona da entrada da Missa de 14 de maio; (2) cfr. Mt 19, 28; (3) cfr. Ef 2, 20; (4) At 1, 21-22; (5) 2 Pe 1, 16; (6) cfr. Lev 16, 8-9; Num 26, 55; (7) Prov 16, 33; (8) cfr. Eusébio, História Eclesiástica, 1, 12; (9) Gal 1, 1; (10) Josemaría Escrivá, Forja, n. 902; (11) Josemaría Escrivá, Questões atuais do cristianismo, 3ª ed., Quadrante, São Paulo, 1986, n. 92; (12) Jo 15, 16; (13) Mc 3, 13; (14) P. Rodriguez, Vocatión, trabajo, contemplación, EUNSA, Pamplona, 1986, pág. 28; (15) João Paulo II, Alocução em Porto Alegre, 5-VII-1980; (16) Rom 1, 1; Cor 1, 1; (17) Gal 1, 1; (18) Ex 3, 4; 19, 20; 24, 16; (19) 1 Sam 3, 4; (20) Is 49, 1; (21) Is 48, 8; (22) 2 Tim 1, 9.
Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal