TEMPO COMUM. VIGÉSIMO SÉTIMO DOMINGO. ANO B
– Unidade e indissolubilidade original.
– Caminho de santidade.
– A família, escola de virtudes.
I. JESUS ENCONTRAVA-SE na Judéia, na outra margem do Jordão, rodeado por uma grande multidão que escutava atentamente os seus ensinamentos1. Então – lemos no Evangelho da Missa2 – aproximaram-se uns fariseus e, para o tentarem, para o fazerem entrar em conflito com a lei de Moisés, perguntaram-lhe se era lícito ao marido repudiar a sua mulher. Moisés tinha permitido o divórcio condescendendo com a dureza do povo antigo. A condição da mulher era então ignominiosa, pois na prática podia ser abandonada por qualquer causa, sem deixar de continuar ligada ao marido. Moisés estabeleceu que, nesses casos, o marido desse à mulher uma carta de repúdio, testificando que a despedia; assim ficava ela livre para casar-se com quem quisesse3. Os Profetas já tinham censurado o divórcio quando do regresso do exílio4.
Jesus declara nesta ocasião a indissolubilidade original do matrimônio, conforme fora instituído por Deus no princípio da criação. Para isso cita expressamente as palavras do Gênesis que se lêem na primeira Leitura5. Porém, no princípio, quando Deus os criou, formou um homem e uma mulher. Por isso o homem deixará seu pai e sua mãe, e se juntará à sua mulher; e os dois serão uma só carne. E assim já não são dois, mas uma só carne. Portanto, não separe o homem o que Deus uniu. Assim o Senhor declarava a unidade e a indissolubilidade do matrimônio tal e como tinha sido estabelecido no princípio.
Esta doutrina foi tão surpreendente para os próprios discípulos que, uma vez em casa, voltaram a interrogá-lo. E o Mestre confirmou mais expressamente o que já tinha ensinado. E disse-lhes: Qualquer que repudiar a sua mulher e se casar com outra, comete adultério contra a primeira. E se a mulher repudiar o seu marido e se casar com outro, comete adultério. Dificilmente se pode falar com maior nitidez. As palavras do Senhor são de uma clareza deslumbrante. Como é possível que um cristão questione essas propriedades naturais do matrimônio e continue a declarar que imita e acompanha Cristo?
Seguindo o Mestre, a Igreja reafirma com segurança e firmeza “a doutrina da indissolubilidade do matrimônio; a quantos, nos nossos dias, consideram difícil ou mesmo impossível vincular-se a uma pessoa por toda a vida e a quantos são subvertidos por uma cultura que rejeita a indissolubilidade matrimonial e que ridiculariza abertamente o empenho e a fidelidade dos esposos, é necessário reafirmar o alegre anúncio da perenidade do amor conjugal que tem em Jesus Cristo o seu fundamento e vigor.
“Radicada na doação pessoal e total dos cônjuges e exigida pelo bem dos filhos, a indissolubilidade do matrimônio encontra a sua verdade última no desígnio que Deus manifestou na Revelação: Deus quer e concede a indissolubilidade matrimonial como fruto, sinal e exigência do amor absolutamente fiel que Ele manifesta pelo homem e que Cristo vive para com a Igreja”6. Esse vínculo, que só a morte pode desfazer, é imagem daquele que existe entre Cristo e o seu Corpo Místico.
A dignidade do matrimônio e a sua estabilidade – pela sua transcendência nas famílias, nos filhos e na própria sociedade – é um dos temas que mais importa defender e fazer com que muitos compreendam. A saúde moral dos povos – tem-se repetido muitas vezes – está ligada ao bom estado do matrimônio. Quando este se corrompe, podemos afirmar que a sociedade está doente, talvez gravemente doente7.
Por isso, todos temos de rezar e velar pelas famílias com tanta urgência. Os próprios escândalos que, infelizmente, se produzem e se divulgam, podem ser ocasião para dar boa doutrina e afogar o mal em abundância de bem8. “Há dois pontos capitais na vida dos povos: as leis sobre o matrimônio e as leis sobre o ensino. E aí os filhos de Deus têm de permanecer firmes, lutar bem e com nobreza, por amor a todas as criaturas”9.
II. JESUS CRISTO, ao elevar o matrimônio à dignidade de sacramento, introduziu no mundo algo completamente novo. A transformação que realizou na instituição meramente natural foi de tal importância que a converteu – como a água nas bodas de Caná – em algo inimaginável até esse momento. Eis que eu renovo todas as coisas10, diz o Senhor. Desde então, desde o nascimento do matrimônio cristão, este suplanta a ordem das coisas naturais e introduz-se na ordem das coisas divinas. O matrimônio natural entre os não-cristãos está também cheio de grandeza e dignidade, “mas o ideal proposto por Cristo aos casados está infinitamente acima de uma meta de perfeição humana e apresenta-se em relação ao matrimônio natural como algo rigorosamente novo. Com efeito, através do matrimônio, é a própria vida divina que é comunicada aos esposos, que os sustenta na sua obra de aperfeiçoamento mútuo e que anima a alma dos filhos desde o momento do Batismo”11.
Os que se casam iniciam juntos uma vida nova que devem percorrer em companhia de Deus. É o próprio Senhor que os chama para que cheguem a Ele por esse caminho, pois o matrimônio “é uma autêntica vocação sobrenatural. Sacramento grande em Cristo e na Igreja, diz São Paulo (Ef 5, 32) […], sinal sagrado que santifica, ação de Jesus que se apossa da alma dos que se casam e os convida a segui-lo, transformando toda a vida matrimonial num caminhar divino sobre a terra”12.
O Papa João Paulo I, falando da grandeza do matrimônio a um grupo de recém-casados, contava-lhes um pequeno episódio ocorrido na França. No século passado, um professor insigne que ensinava na Sorbonne, Frederico Ozanam, era um homem de prestígio e um bom católico. Lacordaire, seu amigo, costumava dizer dele: “Este homem é tão bom e tão maravilhoso que se ordenará como sacerdote e chegará até a ser um bom bispo!” Mas Ozanam casou-se. Então Lacordaire, um pouco aborrecido, exclamou: “Pobre Ozanam! Também ele caiu na trapaça!” Estas palavras chegaram aos ouvidos do Papa Pio IX, que não as esqueceu. Quando Lacordaire o visitou uns anos mais tarde, disse-lhe o Papa com bom-humor: “Eu sempre ouvi dizer que Jesus instituiu sete sacramentos. Agora vem o senhor, embaralha as cartas na mesa e diz que instituiu seis sacramentos e uma trapaça. Não, padre, o matrimônio não é uma trapaça; é um grande sacramento!”13 Não esqueçamos que a primeira coisa que o Messias quis santificar foi um lar. E que é precisamente nas famílias alegres, generosas, cristãmente sóbrias, que nascem as vocações para a entrega plena a Deus na virgindade ou no celibato, essas que constituem a coroa da Igreja e a alegria de Deus no mundo. Todas elas representam um dom que Deus concede muitas vezes aos pais que rezam pelos filhos de todo o coração e com constância. São um dom que brilhará nas mãos paternas com um fulgor especial quando um dia se apresentarem diante do Senhor e prestarem contas dos bens que lhes foram dados para os guardarem e administrarem.
III. DEUS PREPAROU cuidadosamente a família em que o seu Filho iria nascer: José, da casa e da família de Davi14, que desempenharia o ofício de pai na terra, e igualmente Maria, sua Mãe virginal. O Senhor quis refletir na sua própria família o modo como os seus filhos haveriam de nascer e crescer: no seio de uma família estavelmente constituída e rodeados pela sua proteção e carinho.
Toda a família, que é a “célula vital da sociedade”15 e de certo modo da própria Igreja16, tem uma natureza sagrada e merece a veneração e a solicitude dos seus membros, da sociedade civil e de toda a Igreja. São Tomás chega a comparar a missão dos pais à dos sacerdotes, pois enquanto estes contribuem para o crescimento sobrenatural do Povo de Deus mediante a administração dos sacramentos, a família cristã provê simultaneamente à vida corporal e à espiritual, “o que se realiza no sacramento do matrimônio, onde a mulher e o homem se unem para gerar a prole e educá-la no culto a Deus”17. Mediante a colaboração generosa dos pais, o próprio Deus “aumenta e enriquece a sua própria família”18, multiplicando os membros da sua Igreja e a glória que dela recebe.
A família, tal e como Deus a quis, é o lugar idôneo para tornar-se, com o amor e o bom exemplo dos pais, dos irmãos e dos outros membros do círculo familiar, uma verdadeira “escola de virtudes”19 em que os filhos se formem para serem bons cidadãos e bons filhos de Deus. É no meio da família firmemente voltada para Deus que cada um pode encontrar a sua própria vocação, aquela a que Deus o chama. “Admira a bondade do nosso Pai-Deus: não te enche de alegria a certeza de que o teu lar, a tua família, o teu país, que amas com loucura, são matéria de santidade?”20
(1) Mc 10, 1; (2) Mc 10, 2-16; (3) cfr. J. Dheilly, Dicionário bíblico, Herder, Barcelona, 1970, verbete Divórcio; (4) cfr. Mal 2, 13-16; (5) Gên 2, 18-24; (6) João Paulo II, Exortação Apostólica Familiaris consortio, 22.11.81, 20; (7) cfr. Frank J. Sheed, Sociedad y sensatez, Herder, Barcelona, 1963, pág. 125; (8) cfr. Rom 12, 21; (9) Bem-aventurado Josemaría Escrivá, Forja, n. 104; (10) Apoc 21, 5; (11) J. M. Martínez Doral, La santidad de la vida conyugal, em Scripta Theologica, Pamplona, 9.12.89, págs. 869-870; (12) Bem-aventurado Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, n. 23; (13) cfr. João Paulo I, Alocução, 13.09.78; (14) Lc 2, 4; (15) Concílio Vaticano II, Decreto Apostolicam actuositatem, 11; (16) cfr. João Paulo II, Exortação Apostólica Familiaris consortio, 3; (17) São Tomás de Aquino, Suma contra os gentios, IV, 58; (18) Concílio Vaticano II, Constituição Gaudium et spes, 50; (19) João Paulo II, Discurso, 28.10.79; (20) Bem-aventurado Josemaría Escrivá, Forja, n. 689.
Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal