TEMPO COMUM. NONA SEMANA. QUARTA-FEIRA
– Uma verdade de fé ensinada expressamente por Jesus.
– Qualidades e dotes dos corpos gloriosos.
– Unidade entre o corpo e a alma.
I. OS SADUCEUS, que não criam na ressurreição, aproximaram-se de Jesus para tentar fazê-lo cair numa cilada. Segundo a antiga lei de Moisés 1, se um homem morria sem deixar filhos, o irmão devia casar-se com a viúva para dar descendência ao falecido, e devia pôr o nome deste ao primeiro dos filhos. Os saduceus pretendem pôr em ridículo diante de Jesus a fé na ressurreição dos mortos e inventam um problema pitoresco 2: se uma mulher se casa sete vezes ao enviuvar de sucessivos irmãos, de qual deles será ela esposa no céu? Jesus responde-lhes ressaltando a frivolidade da objeção. Citando diversas passagens do Antigo Testamento, reafirma-lhes a existência da ressurreição e desfaz-lhes o argumento comentando-lhes as propriedades dos corpos ressuscitados3.
Censura-os por não conhecerem as Escrituras nem o poder de Deus, pois a verdade da ressurreição já estava firmemente estabelecida na Revelação. Isaías havia profetizado: A multidão dos que dormem no pó da terra despertará, uns para eterna vida, outros para vergonha e confusão 4. A mãe dos Macabeus confortava os seus filhos no momento do martírio recordando-lhes que o Criador do mundo […] vos restituirá, na sua misericórdia, tanto o espírito como a vida, se agora fizerdes pouco caso de vós mesmos por amor às suas leis5. E para Jó, esta mesma verdade será o consolo dos seus dias maus: Sei que o meu Redentor vive e que no último dia ressuscitarei do pó […]; na minha própria carne contemplarei a Deus6.
Devemos fomentar nas nossas almas a virtude da esperança, e concretamente o desejo de ver a Deus. “Os que amam procuram ver-se. Os enamorados só têm olhos para o seu amor. Não é lógico que seja assim? O coração humano sente esses imperativos. Mentiria se negasse que me arrasta tanto a ânsia de contemplar a face de Jesus Cristo. Vultum tuum, Domine, requiram, procurarei, Senhor, o teu rosto” 7.
Este desejo será saciado se permanecermos fiéis à nossa vocação de cristãos, porque a solicitude de Deus pelas suas criaturas levou-o a estabelecer a ressurreição da carne, verdade que constitui um dos artigos fundamentais do Credo 8, pois se não há ressurreição dos mortos, nem Cristo ressuscitou, e se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e também é vã a vossa fé 9. “A Igreja crê na ressurreição dos mortos […] e entende que a ressurreição se refere ao homem inteiro” 10, incluído o seu corpo, o mesmo que tiver tido durante a sua passagem pela terra11.
A liturgia transmite esta verdade consoladora em inúmeras ocasiões: nEle (em Cristo) brilhou para nós a esperança da feliz ressurreição. E àqueles a quem a certeza da morte entristece, a promessa da imortalidade consola. Ó Pai, para os que crêem em Vós, a vida não é tirada, mas transformada; e, desfeito o nosso corpo mortal, é-nos dado nos céus um corpo imperecível 12.
Deus espera-nos para sempre na sua glória. Que tristeza tão grande para aqueles que puseram toda a sua confiança neste mundo! E que alegria para os que sabemos que seremos nós mesmos, alma e corpo, que, com a ajuda da graça, viveremos eternamente com Jesus Cristo, com os anjos e os santos, louvando a Santíssima Trindade!
II. O NOSSO CORPO NO CÉU terá características diferentes, mas continuará a ser corpo e ocupará um lugar, como acontece agora com o Corpo glorioso de Cristo e o da Virgem Maria. Não sabemos onde está esse lugar nem como se forma: a terra ter-se-á transfigurado 13.
A recompensa de Deus estender-se-á ao corpo e o tornará imortal, pois a caducidade é conseqüência e sinal do pecado e a criação passou a estar submetida a ela por causa do pecado14. Tudo o que ameaça e impede a vida desaparecerá 15. Os ressuscitados para a glória – como afirma São João no Apocalipse – não terão fome nem sede, nem o sol ou calor algum os abrasará 16.
A fé e a esperança na glorificação do nosso corpo levar-nos-ão a apreciá-lo no seu justo valor. O homem “não deve desprezar a vida corporal, antes pelo contrário, deve ter como algo bom e honrar o seu próprio corpo, como criatura de Deus que ressuscitará no último dia” 17. No entanto, como está tão longe desta justa avaliação o culto que vemos prestar ao corpo nos nossos dias!
Temos certamente o dever de cuidar dele, de empregar os meios oportunos para evitar as doenças, o sofrimento, a fome…, mas sem esquecer que esse corpo ressuscitará no último dia, e que o importante é que ressuscite para ir para o Céu, não para o inferno. Para além da saúde, devemos propor-nos aceitar amorosamente a vontade de Deus sobre a nossa vida.
Não tenhamos uma preocupação desmedida pelo bem-estar físico. Lembremo-nos sempre de que “ao corpo, é preciso dar-lhe um pouco menos que o devido. Senão, atraiçoa” 18. Saibamos também aproveitar sobrenaturalmente as incomodidades ou os achaques que nos possam atingir – sem deixar de fazer serenamente o possível por evitá-los –, e não perderemos a alegria e a paz por termos posto o coração num bem relativo e transitório que só será definitivo e pleno na glória. “Tinha razão quem disse que a alma e o corpo são dois inimigos que não se podem separar, e dois amigos que não se podem ver” 19.
Não devemos esquecer em momento nenhum para onde nos encaminhamos e o verdadeiro valor das coisas que tanto nos preocupam. Deus criou-nos para estarmos para sempre com Cristo, em alma e corpo. Por isso, aqui na terra, “a última palavra só poderá ser um sorriso…, um cântico jovial” 20, porque, no além, o Senhor espera-nos de braços abertos e com gesto acolhedor.
III. BASEANDO-SE NA NATUREZA da alma e em diversas passagens da Sagrada Escritura, a doutrina cristã mostra a conveniência de que os corpos ressuscitem e tornem a juntar-se à alma. Em primeiro lugar, porque a alma é apenas uma parte do homem e, enquanto estiver separada do corpo, não poderá gozar de uma felicidade tão completa e acabada como a que possui a pessoa inteira. Por outro lado, como a alma foi criada para unir-se a um corpo, sofreria uma violência sobre o seu modo próprio de ser se viesse a separar-se dele definitivamente. Por último, e principalmente, é mais conforme com a sabedoria, a justiça e a misericórdia divinas que a alma volte a unir-se ao corpo a fim de que ambos – o homem completo, que não é só alma nem só corpo – participem do prêmio ou do castigo merecido na sua passagem pela vida na terra, se bem que seja uma verdade de fé que a alma imediatamente depois da morte recebe o prêmio ou o castigo, sem esperar pelo momento da ressurreição do corpo.
À luz do ensinamento da Igreja, vemos pois com outra profundidade que o corpo não é um mero instrumento da alma, ainda que receba dela a capacidade de agir e contribua com ela para a existência e o desenvolvimento da pessoa. Pelo corpo, o homem está em contacto com a realidade terrena que deve dominar, trabalhar e santificar porque Deus assim o quis21. Pelo corpo, o homem pode entrar em comunicação com os seus semelhantes e colaborar na edificação e desenvolvimento da comunidade social. Não podemos esquecer também que o homem recebe através do corpo a graça dos sacramentos: Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo? 22
Somos homens e mulheres de carne e osso, mas a graça estende a sua influência ao corpo, diviniza-o de certo modo, proporcionando-lhe uma espécie de antecipação da ressurreição gloriosa. A consideração freqüente de que este nosso corpo, templo da Santíssima Trindade quando vivemos em graça, está destinado por Deus a ser glorificado, pode ajudar-nos muito a viver com a dignidade e a compostura de um discípulo de Cristo.
Peçamos a São José que nos ensine a viver um respeito delicado pelos outros e por nós mesmos. O corpo que temos na vida terrena também está destinado a participar para sempre da glória inefável de Deus.
(1) Deut 24, 5 e segs.; (2) Mc 12, 18-27; (3) cfr. Santos Evangelhos, EUNSA, comentários a Mc 12, 18-27 e lugares paralelos; (4) Is 26, 19; (5) 2 Mac 7, 23; (6) Jo 19, 25-26; (7) Josemaría Escrivá, em Folha informativa, n. 1, pág. 5; (8) cfr. Symbolum Quicumque, Dz. 40; Bento XII, Const. Benedictus Deus, 29-I-1336; (9) 1 Cor 15, 13-14; (10) Congregação para a Doutrina da Fé, Carta sobre algumas questões referentes à escatologia, 17-V-1979; (11) Conc. XI de Toledo, a. 675; Dz. 287 (540); cfr. Conc. IV Latrão, Sobre a fé católica, cap. I, Dz. 429 (801); etc.; (12) Missal Romano, Prefácio I de defuntos; (13) cfr. M. Schmaus, Teologia dogmática, vol. VII, Os novíssimos, pág. 514; (14) Rom 8, 20; (15) cfr. M. Schmaus, op. cit., vol. VII, pág. 255 e segs.; (16) Apoc 7, 15; (17) Conc. Vat. II, Const. Gaudium et spes, 14; (18) São Josemaría Escrivá, Caminho, n. 196; (19) ib., n. 195; (20) L. Ramoneda Molins, Vientos que jamás ha roto nadie, Danfel, Montevideo, 1984, pág. 41; (21) Gên 1, 28; (22) 1 Cor 6, 15.
Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal