TEMPO COMUM. VIGÉSIMA SEXTA SEMANA. SEXTA-FEIRA
– As cidades que não quiseram converter-se.
– Motivos para a penitência. As mortificações passivas.
– As mortificações voluntárias e as que nascem do perfeito cumprimento do dever.
I. JESUS PASSOU muitas vezes pelas ruas e praças das cidades que estavam à margem do lago de Genesaré, e foram incontáveis os milagres e as bênçãos que derramou sobre os seus habitantes; mas estes não se converteram, não souberam acolher o Messias de quem tanto tinham ouvido falar na sinagoga. Por isso o Senhor queixou-se com pesar: Ai de ti, Corozaim! Ai de ti, Betsaida! Porque, se em Tiro e em Sídon se tivessem realizado os milagres que se fizeram em vós, há muito tempo que teriam feito penitência… E tu, Cafarnaum, serás exaltada até o céu? Serás abatida até o inferno1.
Jesus tinha semeado a mãos cheias naqueles lugares, mas não foi muito o que colheu. Os seus habitantes não fizeram penitência, e, sem essa conversão do coração, acompanhada de sacrifício, a fé obnubila-se e não se chega a descobrir Cristo que nos visita. Tiro e Sídon tinham menos responsabilidade porque tinham recebido menos graças.
Por isso, como diz o Espírito Santo, se ouvirdes hoje a sua voz, não queirais endurecer os vossos corações…2 Deus fala aos homens de todos os tempos. Cristo continua a passar pelas nossas cidades e aldeias, bem como a derramar as suas bênçãos sobre nós. Saber escutá-lo e cumprir a sua vontade hoje e agora é de importância capital para a nossa vida.
Nada é tão importante. Não há momento algum em que não seja necessário escutar com prontidão e docilidade esses apelos que Jesus faz ao coração de cada um, pois “não é a bondade de Deus que tem a culpa de que a fé não nasça em todos os homens, mas a disposição insuficiente dos que recebem a pregação da palavra”3.
Esta resistência à graça é chamada freqüentemente na Sagrada Escritura dureza de coração4. O homem costuma alegar dificuldades intelectuais ou teóricas para se converter ou dar um passo adiante na sua fé; mas não raras vezes trata-se simplesmente de más disposições na vontade, que se nega a abandonar um mau hábito ou a lutar decididamente contra um defeito, esse que lhe dificulta uma maior correspondência ao que o Senhor, que passa ao seu lado, lhe pede claramente.
O sacrifício prepara a alma para ouvir o Senhor e prepara a vontade para segui-lo: “Se queremos ir a Deus, é necessário que mortifiquemos a alma com todas as suas potências”5. Pelo sacrifício, o nosso coração converte-se em terra boa que espera a semente para dar fruto. À semelhança do lavrador, temos de arrancar e queimar a cizânia, as pragas que continuamente tendem a crescer na alma: a preguiça, o egoísmo, a inveja, a curiosidade… Por isso, a Igreja convida-nos sempre – e de maneira especial neste dia da semana, a sexta-feira – a examinar como vai o nosso espírito de penitência e de sacrifício, e anima-nos a ser mais generosos, imitando Cristo que se ofereceu na Cruz por todos os homens.
II. QUEM ADOTOU a firme resolução de levar uma vida cristã, na sua mais plena integridade, precisa do exercício contínuo de fazer morrer o homem velho com todas as suas obras6, quer dizer, de lutar contra o “conjunto de más inclinações que herdamos de Adão, a tríplice concupiscência que temos de reprimir e refrear mediante o exercício da mortificação”7.
Mas essas mortificações não são algo negativo; pelo contrário, rejuvenescem a alma, preparam-na para entender e receber os bens divinos, e servem para reparar os pecados passados. Por isso pedimos freqüentemente ao Senhor emendationem vitae, spatium verae paenitentiae: um tempo para fazer penitência e emendar a vida8.
São três os principais campos em que podemos desenvolver generosamente o espírito de penitência no meio dos nossos afazeres diários. Em primeiro lugar, o da aceitação amorosa e serena dos contratempos que nos chegam a cada passo. Trata-se de coisas, muitas vezes pequenas, que nos são contrárias, que não se apresentam como desejaríamos ou que chegam de modo inesperado ou contrário ao que tínhamos previsto, e que exigem uma mudança de planos: uma pequena doença que diminui a nossa capacidade de trabalho, um esquecimento, o mau tempo que dificulta uma viagem, o excesso de trânsito, o caráter difícil de uma pessoa com quem temos de trabalhar… Essas coisas não dependem de nós, mas temos de recebê-las como uma oportunidade para amar a Deus, acolhendo-as com paz, sem permitir que nos tirem a alegria.
São coisas pequenas, “mas que, se não se assimilam por Amor, vão gerando no homem uma espécie de nervosismo, um ânimo pouco aprazível e triste. A maior parte dos nossos aborrecimentos não provêm de grandes contratempos, mas de pequenas dificuldades não assimiladas. O homem que chega ao fim do dia preocupado, entristecido, de mau humor, de mau gênio, não é ordinariamente por ter experimentado graves reveses, mas porque foi acumulando uma série de contratempos mínimos que não soube incorporar a uma vida de amor, a uma vida de proximidade com Deus”9.
Esse homem perdeu muitas ocasiões de crescer nas virtudes e, além disso, deixou de fortalecer-se para poder aceitar situações mais difíceis, como queridas ou ao menos permitidas pelo Senhor para uni-lo mais intimamente a Ele.
Quando Deus vem ao mundo “para curar e remediar as nossas rebeldias e misérias espirituais na sua raiz, destrói muitas coisas por serem inúteis; mas deixa intacta a dor. Não a suprime, dá-lhe um novo sentido. Ele poderia ter escolhido mil caminhos diferentes para alcançar a Redenção do gênero humano – para isso veio ao mundo –, mas na realidade escolheu um único: o da Cruz. E por essa via leva a sua própria Mãe, Maria, e José, e os Apóstolos, e todos os filhos de Deus. O Senhor, que permite o mal, sabe tirar bens em benefício das nossas almas”10.
Não deixemos de converter as contrariedades em ocasião de crescimento no amor.
III. OUTRO CAMPO das nossas mortificações diárias é o do cumprimento do dever, através do qual temos de nos santificar. Aí encontramos habitualmente a vontade de Deus para nós; e levá-lo a cabo com perfeição, com amor, requer sacrifício. Por isso a mortificação mais grata ao Senhor “está na ordem, na pontualidade, no cuidado dos pormenores do trabalho que realizamos; no cumprimento fiel do menor dever de estado, mesmo quando custa sacrifício; em fazer o que temos obrigação de fazer, vencendo a tendência para o comodismo. Não perseveramos no trabalho porque temos vontade, mas porque é preciso fazê-lo; e então fazemo-lo com vontade e alegria”11.
O cansaço, conseqüência de termos trabalhado a fundo, realmente mergulhados nas nossas ocupações, converte-se numa gratíssima oferenda ao Senhor que nos santifica. Pensemos hoje se não somos dessas pessoas que se queixam com freqüência do seu trabalho diário, em vez de nos lembrarmos de que deve aproximar-nos de Deus.
Um breve olhar ao crucifixo que tenhamos na parede do escritório ou sobre a mesa de trabalho ajudar-nos-á a não protestar interiormente, mas a abrir os braços para acolher o dever de cada momento.
O terceiro campo dos nossos sacrifícios está, ordinariamente, naquelas mortificações que procuramos voluntariamente com o desejo de agradar ao Senhor e de nos prepararmos melhor para orar, para vencer as tentações, para ajudar os nossos amigos a aproximar-se do Senhor. Entre esses sacrifícios, devemos preferir os que vão em ajuda dos outros. “Fomenta o teu espírito de mortificação nos detalhes de caridade, com ânsias de tornar amável a todos o caminho de santidade no meio do mundo: às vezes, um sorriso pode ser a melhor prova do espírito de penitência”12.
Vencer, com o auxílio do Anjo da Guarda, os estados de ânimo, o cansaço…, será muito grato ao Senhor e uma grande ajuda para as pessoas que temos ao nosso lado. “O espírito de penitência consiste principalmente em aproveitar essas abundantes miudezas – ações, renúncias, sacrifícios, serviços… – que encontramos cada dia no caminho, para convertê-las em atos de amor, de contrição, em mortificações, formando um ramalhete no fim de cada dia: um belo ramo, que oferecemos a Deus!”13
(1) Lc 10, 13-15; (2) Hebr 3, 7-8; (3) São Gregório Nazianzeno, Oratio catechetica magna, 31; (4) Êx 4, 21; Rom 9, 18; (5) Cura d’Ars,Sermão para a Quarta-Feira de Cinzas; (6) Col 3, 9; (7) Adolphe Tanquerey, Compendio de teología ascética e mística, n. 323; (8) cfr. Missal Romano, Formula intentionis Missae; (9) A. G. Dorronsoro, Tiempo para creer, Rialp, Madrid, 1976, pág. 142; (10) Jesús Urteaga, Los defectos de los santos, págs. 222-223; (11) Bem-aventurado Josemaría Escrivá, Carta, 15.10.48; (12) Bem-aventurado Josemaría Escrivá, Forja, n. 149; (13) ibid., n. 408.
Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal