TEMPO COMUM. VIGÉSIMA QUARTA SEMANA. QUARTA‑FEIRA
– A palavra é um grande dom de Deus e não se deve empregá‑la para o mal.
– Imitar Cristo na sua conversa amável com todos. A nossa palavra deve enriquecer, animar, consolar…
– Passar pela vida fazendo o bem com a nossa conversação. Não falar nunca mal de ninguém.
I. ALUDINDO a alguma canção popular ou a alguma brincadeira dos meninos hebreus da época, Jesus censura os que interpretam distorcidamente os seus ensinamentos, a falta de lógica das desculpas que apresentam. São semelhantes a esses garotos que estão sentados na praça e que gritam uns para os outros dizendo: Tocamos flauta para vós e não dançastes, entoamos lamentações e não chorastes. A seguir, o Senhor transmite‑nos o que alguns comentavam de João Batista e dEle mesmo: Porque veio João Batista, que não come pão nem bebe vinho, e dizeis: Está possuído pelo demônio. Veio o Filho do homem, que come e bebe, e dizeis: Eis um glutão e bebedor de vinho, amigo dos publicanos e dos pecadores1. O jejum de João é interpretado como obra do demônio; e a Jesus, por sua vez, chamam‑no glutão. São Lucas não tem reparo algum em mencionar as acusações levantadas contra o Mestre2.
Logicamente, a Sabedoria divina manifesta‑se de maneira diferente em João e em Jesus. João prepara o conhecimento do mistério divino mediante a penitência; Jesus, perfeito Deus e perfeito homem, é portador da salvação, da alegria e da paz. “Por um caminho ou por outro – comenta São João Crisóstomo – deveríeis ter vindo a parar no Reino dos céus”3. O Senhor termina assim esta breve passagem do Evangelho que lemos na Missa de hoje: Mas a sabedoria foi justificada por todos os seus filhos.
No entanto, muitos fariseus e doutores da Lei não souberam descobrir essa sabedoria que lhes chegava. Ao invés de cantarem a glória de Deus que tinham diante dos olhos, serviram‑se das suas palavras para se entregarem à maledicência, tergiversando o que viam e ouviam. Os seus olhos não viam as maravilhas que se realizavam diante deles, e os seus corações estavam fechados para o bem. Como eram diferentes aquelas outras pessoas a quem o Senhor tinha tantas vezes de impor silêncio porque ainda não chegara a hora da sua manifestação pública! E quando ela chega, estando já próxima a Paixão, toda a multidão dos seus discípulos começou alegremente a louvar a Deus em altas vozes por todas as maravilhas que tinham visto, dizendo: Bendito o rei que vem em nome do Senhor, paz no céu e glória nas alturas4. Alguns fariseus pediram a Jesus que os fizesse calar, mas Ele respondeu: Digo‑vos que, se eles se calarem, gritarão as pedras.
A palavra é um grande dom de Deus, que nos deve servir para cantar os seus louvores e para fazer sempre o bem, nunca o mal. “Acostuma‑te a falar cordialmente de tudo e de todos; em particular, de todos os que trabalham no serviço de Deus.
“E quando não for possível, cala‑te! Também os comentários bruscos ou levianos podem beirar a murmuração ou a difamação”5.
II. JESUS GOSTAVA de conversar com os seus discípulos. São João relata‑nos no seu Evangelho as suas confidências na última Ceia. “Conversava enquanto se dirigia para outra cidade – aquelas longas caminhadas do Senhor! –, enquanto passeava debaixo dos pórticos do Templo. Conversava nas casas, com as pessoas que estavam ao seu redor, como Maria, sentada aos seus pés, ou como João, que reclinou a cabeça sobre o peito de Jesus”6. Nunca se recusou a falar com os que se aproximavam dEle, nas mais diversas circunstâncias de cultura do seu interlocutor ou de tempo…: Nicodemos, a mulher samaritana que fora buscar água ao poço da cidade, um ladrão que lhe fala quando a sua dor era mais forte… Comunicava‑se com todos e todos saíam reconfortados das palavras que trocavam com Ele.
A palavra, dádiva de Deus ao homem, deve servir‑nos para fazer o bem: para consolar os que sofrem; para ensinar os que não sabem; para corrigir amavelmente os que erram; para fortalecer os fracos, tendo em conta que – como diz a Sagrada Escritura – “a língua do sábio cura as feridas”7; para levantar amavelmente os que caíram, como Jesus faz constantemente.
Mostraremos o caminho a muitos que andam perdidos pela vida. “Recordo‑me de que certa vez – relata um bom escritor – andávamos perdidos nos Pireneus, ao meio‑dia, pelas altas solidões […]. De repente, envolto no gritar do vento, ouvimos um som de guizos; e os nossos olhos alvoroçados, pouco acostumados àquelas grandezas, tardaram muito em descobrir uma manada de cavalos que pastava lá em baixo, num raro verdor. Para lá nos dirigimos esperançosos […]. Pedimos orientação ao homem, que parecia de pedra; e ele, movendo os olhos no seu rosto estático, levantou lentamente o braço apontando vagamente para um atalho, e mexeu os lábios. No meio das atroadoras rajadas de vento que afogavam toda a voz, apenas sobrenadavam duas palavras que o pastor repetia obstinadamente: «Aquele canal…»; essas eram as suas palavras, e apontava vagamente naquela direção, para o alto. Como eram belas as duas palavras gravemente ditas contra o vento! […] O canal era o caminho, o canal por onde desciam as águas das neves derretidas. E não era um qualquer, mas aquele canal, que o homem distinguia bem dentre todos pela fisionomia especial e própria que tinha para ele; era aquele canal. Vedes? Para mim, isto é falar”8: enriquecer, orientar, animar, alegrar, consolar, tornar amável o caminho… “Descubro também que a minha pessoa se enriquece através da conversação. Porque possuir sólidas convicções é belo; mas mais belo ainda é poder comunicá‑las e vê‑las compartilhadas e apreciadas por outros”9.
Muitas das pessoas que nos rodeiam andam perdidas no seu pessimismo, na ignorância, na falta de sentido daquilo que fazem. As nossas palavras, sempre animadoras, hão de indicar a muitos os caminhos que levam à alegria, à paz, ao descobrimento da própria vocação… Por “aquele canal”, por aquele caminho encontra‑se a Deus. E muitos encontrarão Cristo nessas confidências normais, cheias de sentido positivo, que teremos oportunidade de manter no meio da vida corrente de todos os dias.
III. A PALAVRA “é um dos dons mais preciosos que o homem recebeu de Deus, dádiva belíssima para manifestar altos pensamentos de amor e de amizade ao Senhor e às suas criaturas”10. Não podemos utilizá‑la de modo frívolo, vazio ou inconsiderado – como acontece quando nos deixamos levar pela loquacidade –, e menos ainda para com ela faltar à verdade ou à caridade, pois a língua – como afirma o Apóstolo Tiago – pode converter‑se num mundo de iniqüidade11, causando muito mal ao nosso redor: discussões estéreis, ironias, zombarias, maledicência, calúnias… Quanto amor desfeito, quanta amizade perdida, porque não se soube calar a tempo!
Como Jesus tinha em alta estima a palavra e a conversação!: Eu vos digo que, de qualquer palavra ociosa que disserem os homens, prestarão contas dela no dia do juízo12. Palavra ociosa é aquela que não aproveita nem ao que a pronuncia nem ao que a escuta, e que provém de um interior vazio e empobrecido. Essa maneira descontrolada de falar, esses modos de expandir‑se dificilmente compatíveis com uma pessoa que procura agir sempre na presença de Deus, costumam ser sintoma de tibieza, de falta de conteúdo interior. O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração; e o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro 13.
Dessas conversas, nas quais se podia ter feito o bem e não se fez, o Senhor pedirá contas. “Depois de ver em que se empregam, por completo!, muitas vidas (língua, língua, língua, com todas as suas conseqüências), parece‑me mais necessário e mais amável o silêncio. – E compreendo muito bem que peças contas, Senhor, da palavra ociosa” 14. Da conversa vã e superficial à murmuração, ao mexerico, à intriga, à insídia ou à calúnia costuma haver um caminho muito curto. É difícil controlar a língua se não há um esforço por estar na presença de Deus.
De um cristão que quer seguir Cristo, deveria poder‑se dizer que em nenhuma circunstância o ouviram falar mal de ninguém. Pelo contrário, deveria poder‑se dizer que passou pela vida, como Cristo, fazendo o bem 15, igualmente com a palavra, com a conversa amável e cheia de interesse pelos outros. Uma simples saudação a um conhecido por quem passamos deveria levar‑lhe o bem, deixá‑lo mais bem disposto, mais risonho.
Recorramos ao nosso Anjo da Guarda antes de começarmos a conversar com alguém. Ele saberá ajudar‑nos a não dizer nenhuma palavra ociosa: “Se tivesses presente o teu Anjo da Guarda e os do teu próximo, evitarias muitas tolices que deslizam na tua conversa” 16. E então as nossas conversas, por mais intranscendentes que sejam, serão instrumento para uma sementeira de alegria e de paz.
(1) Lc 7, 31‑35; (2) cfr. Sagrada Bíblia, Santos Evangelhos, EUNSA, Pamplona, 1983, nota a Mt 11, 16‑19; (3) São João Crisóstomo, Homilias sobre São Mateus, 37, 4; (4) Lc 19, 37‑38; (5) São Josemaría Escrivá, Sulco, Quadrante, São Paulo, 1987, n. 902; (6) Albino Luciani, Ilustríssimos senhores; (7) cfr. Prov 12, 18; (8) J. Maragail, Elogio de la palabra, Salvat, Madrid, 1970, pág. 24; (9) Albino Luciani, Ilustríssimos senhores; (10) São Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, n. 298; (11) Ti 3, 6; (12) Mt 12, 36; (13) Mt 12, 35; (14) São Josemaría Escrivá, Caminho, n. 447; (15) At 10, 38; (16) São Josemaría Escrivá, Caminho, n. 564.
Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal