TEMPO COMUM. VIGÉSIMO TERCEIRO DOMINGO. ANO B

– O milagre da cura de um surdo‑mudo.
– Não devemos permanecer calados ante a ignorância religiosa.
– Falar com clareza e simplicidade; também na direção espiritual.

I. A LITURGIA DA MISSA deste domingo é um apelo à esperança, à plena confiança no Senhor. Num momento de tribulação, o profeta Isaías levanta‑se para reconfortar o Povo eleito que vive no desterro1. Anuncia o alegre retorno à pátria. Dizei aos covardes de coração: Sede fortes e não temais; eis que o vosso Deus trará a vingança e a retribuição. Ele próprio virá e vos salvará. E o Profeta vaticina prodígios que terão o seu pleno cumprimento com a chegada do Messias. Descerrar‑se‑ão os olhos dos cegos e abrir‑se‑ão os ouvidos dos surdos; os coxos saltarão como os cervos, e desatar‑se‑á a língua dos mudos; as águas jorrarão no deserto e as torrentes na estepe. Com Cristo, todos os homens são curados, e as fontes da graça, sempre inesgotáveis, convertem o mundo numa nova criação.

O Evangelho da Missa2 narra a cura de um surdo‑mudo. O Senhor levou‑o a um lugar à parte, pôs os dedos nos seus ouvidos e tocou‑lhe a língua com saliva. Depois olhou para o céu e disse: “Effetha”, que quer dizer, “abre‑te”. E imediatamente se lhe abriram os ouvidos e se lhe soltou a prisão da língua, e falava claramente.

Os dedos significam a poderosa ação divina3, e a saliva evoca a eficácia que lhe era atribuída para aliviar as feridas. Ainda que a cura tenha resultado das palavras de Cristo, o Senhor quis utilizar nesta ocasião, como aliás em outras, elementos materiais visíveis, para dar a entender de alguma maneira a ação mais profunda que os sacramentos iriam efetuar nas almas4. Desde os primeiros séculos e durante muitas gerações5, a Igreja serviu‑se desses mesmos gestos do Senhor para administrar o Batismo, enquanto orava sobre a criança que era batizada: O Senhor Jesus, que fez ouvir os surdos e falar os mudos, te conceda que a seu tempo possas escutar a sua Palavra e proclamar a fé6.

Nesta cura que o Senhor realizou, podemos ver uma imagem da sua ação nas almas: ela livra o homem do pecado, abre‑lhe os ouvidos para que escute a Palavra de Deus e solta‑lhe a língua para que louve e proclame as maravilhas divinas. É uma ação que tem início no momento do Batismo – por intervenção do Espírito Santo, Digitus paternae dexterae7, o dedo da destra de Deus Pai, como o chama a liturgia –, mas que se prolonga pelo resto da nossa vida. Santo Agostinho, ao comentar esta passagem do Evangelho, diz que a língua de quem está unido a Deus “falará do bem, porá de acordo os que estão desavindos, consolará os que choram… Deus será louvado, Cristo será anunciado”8. É o que nós faremos se tivermos o ouvido atento às contínuas moções do Espírito Santo e a língua preparada para falar de Deus sem respeitos humanos.

II. EXISTE UMA SURDEZ da alma que é pior que a do corpo, porque não há pior surdo do que aquele que não quer ouvir. São muitos os que têm os ouvidos fechados à Palavra de Deus, e são também muitos os que se vão endurecendo cada vez mais ante as inúmeras chamadas da graça. O nosso apostolado paciente, tenaz, cheio de compreensão, acompanhado de oração, fará com que muitos dos nossos amigos ouçam a voz de Deus e se convertam em novos apóstolos que a apregoem por toda a parte.

Não podemos ficar mudos quando devemos falar de Deus e da sua mensagem sem constrangimento algum, antes vendo nisso um título de glória: os pais aos seus filhos, desde a primeira infância e continuando depois, com dom de línguas, na puberdade e na juventude; o amigo ao amigo, com sentido de oportunidade, mas sem receios; o colega de escritório aos que trabalham ao seu lado, com o seu comportamento exemplar e alegre e com a palavra que estimula a sair da apatia; o estudante aos colegas de Universidade com quem convive tantas horas por dia…

Os motivos para falar da beleza da fé, da alegria incomparável de possuir a verdade de Cristo são muitos. Mas dentre todos eles destaca‑se a responsabilidade recebida no Batismo9 de não deixar que ninguém perca a fé ante a avalanche de idéias e de erros doutrinais e morais que inunda o mundo e perante os quais muitos se sentem indefesos.

“Os inimigos de Deus e da sua Igreja, manipulados pelo ódio imperecível de satanás, mexem‑se e organizam‑se sem tréguas. “Com uma constância «exemplar», preparam os seus quadros, mantêm escolas, dirigentes e agitadores, e, com uma ação dissimulada – mas eficaz –, propagam as suas idéias e levam – aos lares e aos lugares de trabalho – a sua semente destruidora de toda a ideologia religiosa. “– O que não deveremos fazer nós, os cristãos, para servir o nosso Deus, sempre com a verdade?”10 Vamos permanecer impassíveis?

Peçamos ao Senhor fé e audácia para anunciar com clareza e simplicidade as magnalia Dei11, as maravilhas de Deus de que somos testemunhas, como fizeram os Apóstolos depois do dia de Pentecostes. Santo Agostinho aconselha‑nos: “Se amais a Deus, atraí para que o amem todos os que se reúnem convosco e todos os que vivem na vossa casa. Se amais o Corpo de Cristo, que é a unidade da Igreja, estimulai a todos para que gozem de Deus e dizei‑lhes com Davi: Engrandecei comigo o Senhor e louvemos todos juntos o seu santo nome (Prov 21, 28); e nisto não sejais parcos nem tímidos, mas conquistai para Deus todos os que puderdes e por todos os meios possíveis, conforme a vossa capacidade, exortando‑os, suportando‑os, suplicando‑lhes, conversando com eles e falando‑lhes com toda a mansidão e suavidade da razão de ser das coisas que dizem respeito à fé”12.

Não fiquemos calados quando tantas são as coisas que Deus quer dizer através das nossas palavras.

III. CHEGOU O TEMPO em que se descerrarão os olhos dos cegos, e os ouvidos dos surdos se abrirão, e o coxo saltará como um cervo, e a língua do mudo cantará… Esses prodígios realizam‑se nos nossos dias com uma profundidade muito maior do que aquela que o Profeta tinha previsto; realizam‑se na alma que é dócil ao Espírito Santo.

São Marcos transmite‑nos a palavra aramaica que Jesus utilizou: Effetha, abre‑te! É uma ordem que o Senhor nos faz chegar de muitas maneiras à intimidade da alma, sob a forma de um conselho imperativo do Espírito Santo. A boca deve abrir‑se e a língua deve soltar‑se para falar com clareza sobre o estado da alma na direção espiritual.

Os que dispõem desse meio seguro de progresso espiritual devem ser conscientes da necessidade absoluta de serem muito sinceros, de exporem com simplicidade a sua situação interior, os desejos de santidade que os movem e as tentações do inimigo, as vitórias que alcançam e os desânimos que os assaltam. E o ouvido deve estar desimpedido para escutar atentamente os vários ensinamentos e sugestões que o Mestre lhes quer fazer chegar por esse meio13.

Com essa sinceridade e docilidade, a batalha está sempre ganha, por mais difícil que seja; com a duplicidade, o isolamento e a soberba do critério próprio, está sempre perdida. É o Senhor quem cura e utiliza os meios que quer, sempre desproporcionados. São Vicente Ferrer afirmava que Deus “não concede nunca a sua graça àquele que, tendo à sua disposição uma pessoa capaz de instruí‑lo e dirigi‑lo, despreza esse meio eficacíssimo de santificação, julgando que se basta a si própria e que pelas suas próprias forças pode procurar e encontrar o que é necessário para a sua salvação… Aquele que tiver um diretor e lhe obedecer sem reservas e em todas as coisas – ensina o Santo – chegará mais facilmente à meta do que se estiver sozinho, ainda que possua uma inteligência muito aguda e muitos livros sábios sobre coisas espirituais…”14

Há um qualificativo que define perfeitamente como deve ser a nossa sinceridade nos assuntos relativos à nossa alma: selvagem. É a sinceridade do homem reto, sem duas caras, que não se importa de ficar mal, que sabe que é uma insensatez fingir ou “dourar a pílula” diante de quem lhe pode dar a orientação certeira para sair dos seus problemas, desde que os conte:

“Tens de amar e procurar a ajuda de quem orienta a tua alma. Na direção espiritual, põe a descoberto o teu coração, por inteiro – podre, se estiver podre! –, com sinceridade, com ânsias de curar‑te; senão, essa podridão não desaparecerá nunca.

“Se recorres a uma pessoa que só pode limpar a ferida superficialmente…, és um covarde, porque no fundo vais ocultar a verdade, com prejuízo para ti próprio”15.

Não nos esqueçamos, por fim, de que os conselhos que recebemos para a nossa orientação espiritual são instrumento da ação do Espírito Santo na nossa alma. E que é por isso – não por nos convencerem ou para fazermos uma experiência – que os escutamos com docilidade, decididos a praticá‑los a todo o custo: “Não te limites a falar ao Paráclito, escuta‑o! […] Reza‑lhe assim: – Divino Hóspede, Mestre, Luz, Guia, Amor: que eu saiba acolher‑te, e escutar as tuas lições, e inflamar‑me, e seguir‑te, e amar‑te”16.

Na Santíssima Virgem temos o modelo completo desse escutar com o ouvido atento o que Deus nos pede, para pô‑lo em prática com uma disponibilidade total. “Na Anunciação, Maria entregou‑se a Deus completamente, manifestando “a obediência da fé” Àquele que lhe falava mediante o seu mensageiro, prestando‑lhe o “obséquio pleno da inteligência e da vontade” (Const. Dei Verbum, 5)”17. Recorremos a Ela ao terminarmos a nossa oração, pedindo‑lhe que nos ensine a ser muito sinceros, a ouvir atentamente tudo o que nos é dito da parte de Deus, e a pô‑lo em prática com docilidade de crianças.

(1) Is 35, 4‑7; (2) Mc 7, 31‑37; (3) cfr. Ex 8, 19; Sl 8, 4; Lc 11, 20; (4) cfr. M. Schmaus, Teologia dogmática, vol. VI, Os sacramentos; (5) cfr. A. G. Martimort, La Iglesia en oración, 3ª ed., Herder, Barcelona, 1986, pág. 596; (6) cfr. Ritual do Batismo, Batismo das crianças; (7) cfr. Hino Veni Creator; (8) Santo Agostinho, Sermão 311, 11; (9) cfr. Conc. Vat. II, Const. Lumen gentium, 33; (10) Josemaría Escrivá, Forja, n. 466; (11) cfr. At 2, 1; (12) Santo Agostinho, Comentário aos Salmos, 33, 6‑7; (13) cfr. R. Garrigou‑Lagrange, As três idades da vida interior, vol. I, pág. 295 e segs.; (14) São Vicente Ferrer, Tratado sobre a vida espiritual, II, 1; (15) Josemaría Escrivá, Forja, n. 128; (16) Josemaría Escrivá, op. cit., n. 430; (17) João Paulo II, Enc. Redemptoris Mater, 25‑III‑1987, 13.

Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal