TEMPO COMUM. DÉCIMA SÉTIMA SEMANA. TERÇA‑FEIRA

– Amizade com Jesus.

I. NA LONGA TRAVESSIA pelo deserto, o Povo de Deus instalava, fora do lugar onde acampava, a chamada Tenda da reunião ou do encontro. Tratava‑se de um lugar sagrado, santo, um lugar à parte. Quem queria visitar o Senhor saía do acampamento e dirigia‑se à Tenda do encontro. Para lá se dirigia Moisés, a fim de expor ao Senhor as necessidades do seu povo, e Deus falava a Moisés cara a cara, como fala um homem com o seu amigo1.

Em várias ocasiões, a Sagrada Escritura mostra‑nos a Deus como um amigo dos homens. Por sua vez, Abraão é chamado o amigo de Deus2, e o povo apelava com freqüência para essa amizade a fim de invocar o perdão e a proteção divina. Além disso, toda a Revelação tendia a formar um povo amigo de Deus, unido a Ele por uma forte Aliança que era renovada continuamente. “O Deus invisível, levado pelo seu grande amor, falou aos homens como a amigos e com eles se entreteve para os convidar à comunhão consigo e recebê‑los na sua companhia”3.

Este desígnio divino teve o seu pleno cumprimento quando, chegada a plenitude dos tempos, o Filho de Deus, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, se fez homem. Como a amizade implica certa igualdade e comunhão de vida4, e a distância entre Deus e o homem é infinita, Deus assumiu a natureza humana e o homem tornou‑se participante da Divindade mediante a graça santificante5.

A essência da amizade entre Deus e os homens fundamenta‑se na natureza da caridade, que é sobrenatural e derrama‑se nos nossos corações6 para que possamos amar a Deus com o mesmo amor com que Ele nos ama. Jesus diz‑nos: Como o Pai me amou, assim também eu vos amei; permanecei no meu amor7. E dirigindo‑se ao Pai: O amor com que tu me amaste esteja neles, e eu neles8. A certeza de que Deus nos ama é a raiz da alegria e da felicidade do cristão: Vós sois meus amigos…9 Que imensa alegria podermos chamar‑nos amigos de Deus!

Ao longo da sua vida terrena, o Senhor esteve sempre aberto a uma amizade sincera com os que se aproximavam dEle; em muitas ocasiões, foi Ele próprio quem tomou a iniciativa de os atrair a si: assim sucedeu com Zaqueu, com a mulher samaritana…, com tantos outros. Era amigo dos seus discípulos, que se mostravam conscientes desse apreço de que o Senhor os rodeava. Quando não entendiam alguma coisa, aproximavam‑se dEle com confiança, como nos mostra o Evangelho da Missa de hoje10: Explica‑nos a parábola, pedem‑lhe com toda a naturalidade. E o Senhor leva‑os a um lugar à parte e desvenda‑lhes de um modo mais íntimo o conteúdo dos seus ensinamentos. Participavam também das alegrias e das preocupações do Mestre, e recebiam dEle alento e ânimo quando precisavam.

Do mesmo modo, o Senhor oferece‑nos agora a sua amizade no Sacrário: é onde nos consola, anima e perdoa. No Sacrário, como naquela Tenda do encontro, fala com todos, cara a cara, como um homem fala com o seu amigo. Com a grande diferença de que nos nossos templos está presente Deus feito Homem: Jesus, o mesmo que nasceu de Santa Maria e que morreu por nós numa cruz.

“Jesus é teu amigo. – O Amigo. – Com coração de carne como o teu. – Com olhos de olhar amabilíssimo, que choraram por Lázaro…

“– E, tanto, como a Lázaro, te ama a ti”11.

– Jesus Cristo, exemplo de amizade verdadeira.

II. JESUS GOSTAVA de conversar com os que o procuravam ou com os que encontrava pelo caminho. Aproveitava essas ocasiões para chegar ao fundo da alma e elevar o coração a um plano mais alto, e muitas vezes – quando os seus interlocutores se mostravam bem dispostos – até à conversão e à entrega plena.

Também quer falar conosco na intimidade da oração. E para isso temos de estar abertos ao diálogo com Ele, à amizade sincera. “Ele mesmo nos converteu de servos em amigos, como disse claramente: Sereis meus amigos se cumprirdes o que vos mandei (Jo 15, 14). Deixou‑nos o modelo que devemos imitar. Portanto, temos de compartilhar o desejo do Amigo, revelar‑lhe confidencialmente o que temos na alma e não ignorar nada do que Ele tem no coração. Abramos‑lhe a nossa alma, e Ele nos abrirá a sua. Com efeito, o Senhor declara: Chamei‑vos amigos porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai (Jo 15, 14). O verdadeiro amigo, portanto, não oculta nada ao amigo; descobre‑lhe todo o seu ânimo, assim como Jesus derramava no coração dos Apóstolos os mistérios do Pai”12.

Este é o segredo da verdadeira oração, quer quando recitamos orações vocais, quer sobretudo quando nos recolhemos numa oração mais pessoal, a oração mental. Muitos se perguntam como preencher o tempo que reservam diariamente para essa oração sem palavras. Ao longo da história da espiritualidade cristã, chegaram a formar‑se escolas que recomendavam este ou aquele método de discorrer com o pensamento na oração. Todos são bons e de todos se pode aprender muito. Mas o que verdadeiramente importa, como princípio e como resultado final, é compreender que a oração é fundamentalmente um processo de amizade com Deus, com Cristo, perfeito Deus e perfeito homem, que portanto nos ouve e nos compreende infinitamente.

O que interessa acima de tudo é, por conseguinte, estar a sós e conversar com Aquele que sabemos que nos ama, como aconselhava Santa Teresa. Para isso podemos e muitas vezes será prudente servir‑nos de um livro que suscite e encaminhe os nossos pensamentos e afetos, ou repassar as verdades de fé contidas no Credo ou tratadas em livros de doutrina; e será imprescindível determo‑nos a considerar a vida do Senhor, meditando sobre os textos evangélicos. Não esqueçamos, porém, que, seja por um meio ou por outro, devemos chegar à relação pessoal com Cristo, ao colóquio com Ele, num clima de absoluta confiança e simplicidade: “Escreveste‑me: «Orar é falar com Deus. Mas de quê?» – De quê? DEle e de ti: alegrias, tristezas, êxitos e malogros, ambições nobres, preocupações diárias…, fraquezas!; e ações de graças e pedidos; e Amor e desagravo.

“Em duas palavras: conhecê‑Lo e conhecer‑te – ganhar intimidade!”13

– Fomentar uma amizade cordial e otimista com as pessoas com quem nos relacionamos. Apostolado de amizade.

III. NÓS, CRISTÃOS, podemos ser homens e mulheres com maior capacidade de amizade, porque o trato habitual com Jesus Cristo nos prepara para saírmos do nosso egoísmo, da preocupação excessiva pelos problemas pessoais, e desse modo estarmos abertos aos que freqüentam o nosso trato, ainda que sejam de outra idade ou de outros gostos, cultura ou posição.

A amizade, no entanto, não nasce de um simples encontro ocasional, nem da mútua necessidade de ajuda. Nem sequer a camaradagem, o trabalho em comum ou a própria convivência conduzem necessariamente à amizade. Não são amigas duas pessoas que se encontram todos os dias no elevador, no transporte público ou num escritório. Nem a mútua simpatia é, por si mesma, amizade.

São Tomás afirma14 que nem todo o amor indica amizade, mas apenas o amor que implica benevolência, quer dizer, que se manifesta em desejar o bem para o outro. Por isso, as possibilidades de amizade crescem quando é maior a ocasião de difundir o bem que se possui: “Só são verdadeiros amigos aqueles que têm alguma coisa a dar e, ao mesmo tempo, a humildade suficiente para receber. Por isso, a amizade é mais própria dos homens virtuosos. O vício compartilhado não produz amizade mas cumplicidade, o que não é o mesmo. Nunca se pode legitimar um mal com uma pretensa amizade”15; o mal, o pecado, jamais une na amizade e no amor.

Nós, cristãos, podemos dar aos nossos amigos compreensão, tempo, ânimo e alento nas dificuldades, otimismo e alegria, mas, sobretudo, podemos e devemos dar‑lhes o maior bem que possuímos: o próprio Cristo, o Amigo por excelência. Por isso a amizade verdadeira conduz ao apostolado, que é o meio de comunicarmos aos outros os imensos bens da fé.

Um amigo fiel é um poderoso protetor; quem o encontra acha um tesouro. Nada vale tanto como um amigo fiel; o seu preço é incalculável16. Por isso, a amizade tem de ser protegida e defendida contra o passar do tempo, que leva ao esquecimento, ao distanciamento; contra a inveja, que freqüentemente é o que mais a corrompe17. Oxalá possamos dizer como aquele homem que terminava assim umas anotações autobiográficas: “Há uma coisa de que posso orgulhar‑me: julgo que nunca perdi um amigo”.

A um amigo pede‑se que seja fiel, que se mantenha firme nas dificuldades, que resista à prova do tempo e das contradições, que saia em defesa do amigo em qualquer situação que se apresente: “Devemos ser fiéis à amizade verdadeira – aconselhava Santo Ambrósio –, porque não há nada mais belo nas relações humanas. Consola muito nesta vida ter um amigo a quem abrir o coração, a quem descobrir a própria intimidade e manifestar as penas da alma; alivia muito ter um amigo fiel que se alegre contigo na prosperidade, compartilhe a tua dor nas adversidades e te sustente nos momentos difíceis”18.

Fomentemos a amizade cordial e sincera, otimista, com as pessoas com quem nos relacionamos todos os dias: com os vizinhos, com os colegas de trabalho ou de estudo, com essas pessoas de quem recebemos ou a quem prestamos diariamente um serviço exigido pelos afazeres profissionais. De modo especial, sejamos muito amigos do nosso Anjo da Guarda. “Todos precisamos de muita companhia: companhia do Céu e da terra. Sejamos devotos dos Santos Anjos! É muito humana a amizade, mas é também muito divina; tal como a nossa vida, que é divina e humana”19. O Anjo da Guarda não se afasta devido aos nossos caprichos e defeitos; conhece as nossas fraquezas e misérias, e talvez por isso nos ame mais20. A amizade com o Anjo da Guarda será modelo para a nossa amizade com os homens.

Mas, acima de qualquer outra amizade, devemos tornar forte e entranhada a amizade “com o Grande Amigo, que nunca atraiçoa”21. Encontramos o Senhor com suma facilidade; Ele está sempre disposto a receber‑nos, a conversar conosco todo o tempo que desejemos. “Ide a qualquer parte do mundo que desejardes, mudai de casa quantas vezes quiserdes, que sempre encontrareis na igreja católica mais próxima o vosso Amigo que está à vossa espera dia após dia”22. No convívio com Ele aprendemos de verdade a ser amigos, a estar sempre prontos e abertos a toda a amizade sincera com os homens, que será o caminho natural pelo qual Cristo, nosso Amigo, poderá chegar até o fundo dessas almas.

(1) Ex 33, 11; Primeira leitura da Missa da terça‑feira da décima sétima semana do TC, ano I; (2) cfr. Is 41, 8; (3) Conc. Vat. II, Const. Dei Verbum, 2; (4) cfr. São Tomás, Suma Teológica, II‑II, q. 23, a. 1; (5) ib.; (6) cfr. Rom 5, 5; (7) Jo 15, 9; (8) Jo 17, 26; (9) Jo 15, 13‑14; (10) Mt 13, 36‑43; (11) Josemaría Escrivá, Caminho, n. 422; (12) Santo Ambrósio, Sobre o ofício dos ministros, 3, 135; (13) Josemaría Escrivá, Caminho, n. 91; (14) São Tomás, op. cit.; (15) J. Abad, Fidelidad, Palabra, Madrid, 1987, pág. 110; (16) Ecl 6, 14‑17; (17) cfr. São Basílio, Homilia sobre a inveja; (18) Santo Ambrósio, op. cit., 3, 134; (19) Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, n. 315; (20) cfr. A. Vasquez de Prada, Estudio sobre la amistad, Rialp, Madrid, 1956, pág. 259; (21) cfr. Josemaría Escrivá, Caminho, n. 88; (22) R. A. Knox, Sermões Pastorais, Rialp, Madrid, 1963, pág. 473.

Fonte: livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal.