TEMPO COMUM. VIGÉSIMA SEGUNDA SEMANA. SEGUNDA‑FEIRA
– Jesus misericordioso. Imitá‑lo.
– Preocupar‑nos pela situação espiritual dos que estão ao nosso lado.
– Outras manifestações da misericórdia.
I. JESUS VOLTOU A NAZARÉ, onde se tinha criado, e, conforme o costume, entrou na sinagoga no sábado1. Entregaram‑lhe o livro do profeta Isaías para que lesse. Jesus abriu o livro numa passagem diretamente messiânica: O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para evangelizar os pobres; Ele me enviou para pregar aos cativos a liberdade e devolver a vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, para anunciar um ano de graça do Senhor.
Jesus, enrolando o livro, devolveu‑o e sentou‑se. Havia uma grande expectativa entre os presentes, seus conterrâneos, com os quais tinha convivido tantos anos. Todos na sinagoga tinham os olhos fixos nEle. Muito provavelmente a Virgem estaria entre os assistentes. Então, o Senhor disse‑lhes com toda a clareza: Hoje cumpriu‑se esta Escritura que acabais de ouvir.
Isaías2 anunciava nessa passagem a chegada do Messias, que livraria o povo das suas aflições, e as palavras do Senhor “são a sua primeira declaração messiânica, à qual se seguem os atos e as palavras conhecidas por meio do Evangelho. Mediante tais atos e palavras, Cristo torna o Pai presente no meio dos homens. É muito significativo – continua a comentar João Paulo II – que estes homens sejam em primeiro lugar os pobres despossuídos de meios de subsistência, os que estão privados de liberdade, os cegos que não vêem a beleza da criação, os que vivem com a amargura no coração ou sofrem por causa da injustiça social e, por fim, os pecadores”3.
Mais tarde, quando os enviados de João Batista lhe perguntarem se é Ele o Cristo ou se devem esperar outro, Jesus responde‑lhes que comuniquem a João o que viram e ouviram: Os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, os pobres são evangelizados…4
O amor de Cristo expressa‑se especialmente no encontro com o sofrimento, em todos os campos em que se manifesta a fragilidade humana, tanto física como moralmente. Desta maneira revela a atitude que Deus Pai, que é amor5 e rico em misericórdia6, manifesta continuamente em relação aos homens.
A misericórdia será o núcleo central da pregação de Cristo e a principal razão dos seus milagres. E, seguindo os seus passos, a Igreja também “cerca de amor todos os afligidos pela fraqueza humana; mais ainda, reconhece nos pobres e sofredores a imagem do seu Fundador pobre e sofredor. Faz o possível por mitigar‑lhes a pobreza e neles procura servir a Cristo”7.
Que outra coisa podemos nós fazer, se queremos imitar o Mestre e ser bons filhos da Igreja?
Temos diariamente diversas oportunidades de pôr em prática os ensinamentos de Jesus a respeito do nosso comportamento perante a dor e a necessidade.
É uma atitude compassiva e misericordiosa que não espera por ocasiões excepcionais, como visitar um preso ou um doente, ou socorrer alguém que está à beira de morrer de fome, mas vai‑se exercitando nas pequenas ocasiões do dia e com aqueles que se têm ao lado. Se vejo um colega de trabalho de cara abatida, se uma pessoa da família se mostra particularmente cansada e sem ânimo, se um amigo me telefona a contar uma aflição em que está, sei ver nessas situações uma oportunidade única de ser “outro Cristo”, sem fechar os olhos ou mostrar‑me indiferente e apressado? Hoje cumpriu‑se esta Escritura que acabais de ouvir…
II. …UNGIU‑ME PARA EVANGELIZAR os pobres; enviou‑me para pregar aos cativos a liberdade e devolver a vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos… Não há maior pobreza do que a provocada pela falta de fé, nem cativeiro e opressão maiores do que esses que o demônio exerce sobre quem peca, nem cegueira mais completa do que a da alma que ficou privada da graça: “O pecado produz a mais dura das tiranias”, afirma São João Crisóstomo8.
Se a maior desgraça, o pior desastre que existe é afastar‑se de Deus, a nossa maior obra de misericórdia será, em muitas ocasiões, aproximar os nossos familiares e amigos dos sacramentos, fontes de vida, e especialmente da Confissão. Se sofremos com as penas, doenças e desgraças que os afligem, como não nos havemos de doer se vemos que não conhecem Jesus Cristo, que não o procuram ou se afastaram dEle? A verdadeira compaixão, a grande obra de misericórdia começa pelo apostolado.
Entre essas obras, a Igreja destacou desde há muito tempo a que nos anima a “ensinar a quem não sabe”. Quando o número de analfabetos decresceu em tantos países, aumentou em proporções assombrosas a ignorância religiosa, mesmo em nações de antiga tradição cristã. “Por imposição laicista ou por desorientação e negligência lamentáveis, milhares de jovens batizados vêm chegando à adolescência no desconhecimento total das mais elementares noções da Fé e da Moral e dos rudimentos mínimos da piedade. Atualmente, ensinar a quem não sabe significa, sobretudo, ensinar aos que nada sabem de religião, isto é, “evangelizá‑los”, falar‑lhes de Deus e da vida cristã. A catequese passou a ser na atualidade uma obra de misericórdia de primeira importância”9.
Quanto bem não faz a mãe que ensina o catecismo aos seus filhos, e talvez aos amigos dos seus filhos!
Que enorme recompensa não reservará o Senhor aos que dedicam com generosidade o seu tempo a um trabalho de formação doutrinária cristã, aos que aconselham um livro adequado que ilustra a inteligência e desperta os afetos do coração! É abrir aos outros o caminho que conduz a Deus; não há outra necessidade maior que esta.
III. IMITAR JESUS na sua atividade misericordiosa para com os mais necessitados significa consolar e acompanhar os que se encontram sós, os doentes, os que passam pelas agruras de uma pobreza envergonhada ou descarada. Faremos nossa a dor que suportam, ajudá‑los‑emos a santificá‑la, e procuraremos solucionar esse estado na medida em que nos for possível. Quanto podemos confortar essas pessoas com uma visita oportuna, com uma conversa simples e amável, bem preparada, procurando dar às nossas palavras e comentários um tom sobrenatural que deixe no doente ou no idoso uma luz de fé e confiança em Deus! Com delicadeza e oportunidade, atrever‑nos‑emos a prestar‑lhes alguns serviços, a arrumar‑lhes a cama, a ler‑lhes um trecho de algum livro ameno e mesmo divertido10.
Cada dia é mais necessário pedir ao Senhor um coração misericordioso para todos, pois na medida em que a sociedade se desumaniza, os corações tornam‑se duros e insensíveis, e cada qual tende a viver exclusivamente para si próprio. A justiça é uma virtude fundamental, mas só a justiça não basta; é necessária, além dela, a caridade. Por muito que melhore a legislação trabalhista e social, sempre será necessário proporcionar aos outros o calor de um coração humano, fraternal e amigo, que se abeira compassivamente dos homens como filhos de Deus que são, pois a misericórdia “não se limita a socorrer os necessitados de bens econômicos; o seu primeiro propósito é respeitar e compreender cada indivíduo como tal, na sua intríseca dignidade de homem e de filho do Criador”11.
A misericórdia leva‑nos a perdoar prontamente e de todo o coração, mesmo quando aquele que nos ofende não manifesta o menor arrependimento. O cristão não guarda rancores na alma; não se sente inimigo de ninguém.
Devemos esforçar‑nos por estimar mesmo os que são infelizes por culpa própria, ou em conseqüência da sua própria maldade. O Senhor só quer saber se esta ou aquela pessoa é infeliz, se sofre, “pois isso basta para que seja digna do teu interesse. Esforça‑te por protegê‑la contra as suas más paixões, mas desde o momento em que sofre, sê misericordioso. Amarás o teu próximo, não por ele o merecer, mas por ser o teu próximo”12.
O Senhor pede‑nos uma atitude compassiva que se estenda a todas as manifestações da vida, incluído o juízo que fazemos sobre o nosso próximo, a quem devemos olhar sempre sob o ângulo que mais o favorece. “Ainda que vejais algo de mau – aconselha São Bernardo –, não julgueis imediatamente o vosso próximo, mas antes desculpai‑o no vosso interior. Desculpai a intenção se não puderdes desculpar a ação. Pensai que a terá praticado por ignorância, por surpresa ou por fraqueza. Se o erro for tão claro que não o possais dissimular, mesmo então procurai dizer para vós mesmos: a tentação deve ter sido muito forte”13.
Temos de lembrar‑nos freqüentemente de que, se formos misericordiosos, nós mesmos obteremos do Senhor essa misericórdia de que tanto necessitamos para a nossa vida, especialmente para as fraquezas, erros e fragilidades em que incorremos a cada passo e que Ele bem conhece.
Maria, Rainha e Mãe de Misericórdia, dar‑nos‑á um coração capaz de compadecer‑se eficazmente dos que sofrem ao nosso lado.
(1) Lc 4, 16‑30; Evangelho da Missa da segunda‑feira da vigésima segunda semana do TC; (2) cfr. Is 61, 1‑2; (3) João Paulo II, Enc. Dives in misericordia, 30‑XI‑1980, 3; (4) Lc 7, 22 e segs.; (5) 1 Jo 4, 16; (6) Ef 2, 4; (7) Conc. Vat. II, Const. Lumen gentium, 8; (8) São João Crisóstomo, Comentário ao Salmo 126; (9) J. Orlandis, As oito bem‑aventuranças, págs. 104‑105; (10) cfr. Cura d’Ars, Sermão sobre a esmola; (11) Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, n. 72; (12) G. Chevrot, O Sermão da Montanha, 2ª ed., Quadrante, São Paulo, pág. 115; (13) São Bernardo, Sermão 40 sobre o Cântico dos Cânticos.
Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal