TEMPO COMUM. DÉCIMA TERCEIRA SEMANA. SEGUNDA‑FEIRA
– Por dez justos, Deus teria perdoado milhares de habitantes de duas cidades.
– A nossa participação nos méritos infinitos de Cristo.
– Como astros no mundo.
I. A SAGRADA ESCRITURA mostra‑nos Abraão, nosso pai na fé, como um homem justo em quem Deus se alegrou de maneira muito especial e a quem tornou depositário das promessas de redenção do gênero humano. A Epístola aos Hebreus fala com emoção deste santo Patriarca e de todos os homens justos do Antigo Testamento que morreram sem terem alcançado as promessas, mas vislumbrando‑as e saudando‑as de longe 1, com um gesto cheio de alegria. “É uma comparação – comenta São João Crisóstomo – tirada da vida dos navegantes que, quando avistam de longe as cidades para onde se dirigem, sem ainda terem entrado no porto, lançam vivas emocionados” 2.
Embora não tivessem chegado a possuir nesta vida a redenção prometida, nem participado da união que nós podemos ter com o Filho Unigênito de Deus, o Senhor tratou‑os como amigos íntimos e confiou plenamente neles; pela fé e fidelidade de que deram provas, esqueceu‑se muitas vezes do erro de outros. Muitos alcançaram a salvação por terem sido amigos destes “amigos de Deus”.
Quando Deus pensou na destruição de Sodoma e Gomorra por causa dos muitos pecados que vinham cometendo, comunicou‑o a Abraão3, e este sentiu‑se solidário daquelas gentes. Então Abraão aproximou‑se e disse a Deus: Destruirás o inocente juntamente com o culpado? Se houver cinqüenta justos na cidade, Tu os destruirás? Não pouparás aquele lugar em atenção aos cinqüenta inocentes que lá estão?, disse cheio de confiança. E Deus respondeu‑lhe: Se encontrar em Sodoma cinqüenta justos, perdoarei toda a cidade em atenção a eles. Mas esses cinqüenta justos não foram encontrados. E Abraão teve que ir fazendo descer a cifra dos homens justos: E se faltarem cinco, quer dizer, se houver quarenta e cinco? E o Senhor disse‑lhe: Não a destruirei se encontrar ali quarenta e cinco homens justos. Mas também não havia esse número. E Abraão continuou a interceder junto de Deus: E se só houver quarenta?…, trinta?…, vinte?… Finalmente, viu‑se que não havia nem dez homens justos naquela cidade. O Senhor respondera ao último pedido de Abraão: Se houver dez justos, também não a destruirei. Por amor de dez justos, Deus teria perdoado toda a cidade! Como é grande o valor das almas santas aos olhos do Senhor! Quanto não está disposto a fazer em atenção a elas!
Na Sagrada Escritura, fala‑se com freqüência da solidariedade no mal, no sentido de que o pecado de uns pode prejudicar toda a comunidade4. Mas Abraão inverte os termos: pede a Deus que, já que estima tanto a justiça dos santos, estes sejam a causa de bênçãos para todos, ainda que muitos sejam pecadores. E Deus aceita essa proposta do Patriarca.
Podemos meditar hoje na alegria e no júbilo de Deus quando procuramos ser‑lhe fiéis: no valor que as nossas obras podem ter quando as fazemos por Deus, mesmo as mais ocultas, as que parece que ninguém vê e que talvez não tenham “aparentemente” nenhuma transcendência; Deus dá muito valor às obras daqueles que lutam pela santidade. Deus alegra‑se nos seus santos; e por causa deles a sua misericórdia e o seu perdão derramam‑se sobre outros homens que por si mesmos não os merecem. É um mistério maravilhoso, mas real: Deus alegra‑se nas pessoas que caminham para a santidade.
II. COM JESUS CRISTO cumpriu‑se o que fora anunciado: pela morte de um só, todos puderam salvar‑se5. O mistério da solidariedade humana atinge em Cristo uma plenitude inimaginável. Nada foi nem nunca será, mesmo de longe, tão agradável a Deus como o oferecimento – o holocausto – que Jesus fez da sua vida pela salvação de todos, e que culminou no Calvário: “Para que se desse na terra, numa alma humana, um ato de amor a Deus de valor infinito, era necessário que essa alma humana fosse a de uma Pessoa divina. Assim foi a alma do Verbo feito carne: o seu ato de amor alcançava, na Pessoa divina do Verbo, um valor infinito para satisfazer e para merecer” 6.
São Tomás de Aquino ensina que Jesus Cristo ofereceu a Deus mais do que seria necessário em justiça para compensá‑lo da ofensa causada por todo o gênero humano. E isso cumpriu‑se: pela grandeza do amor com que Cristo sofreu; pela dignidade da Vida que entregou em satisfação por todos, pois era a vida do Deus‑Homem; pela grandeza dos sofrimentos que padeceu… 7 “Maior foi a caridade de Cristo paciente que a malícia dos que o crucificaram, e por isso Cristo pôde satisfazer mais com a sua Paixão do que puderam ofender os que o crucificaram infligindo‑lhe a morte, a tal ponto que a Paixão de Cristo foi suficiente e ultrapassou superabundantemente os pecados dos que o crucificaram” 8, e os de todos os homens de todos os tempos, tanto os pessoais como o pecado original de todas as almas; foi “como se um médico preparasse um remédio que pudesse curar todas as doenças, mesmo as futuras” 9.
Jesus Cristo deu plena satisfação ao amor eterno do Pai10. Assim o ensinou sempre a Igreja11. O amor de Cristo morrendo por nós na Cruz agradava a Deus mais do que podem desagradar‑lhe todos os pecados de todos os homens juntos. E na medida em que vamos identificando a nossa vontade com a do Senhor, apropriamo‑nos dos méritos de Cristo: oferecemos uma reparação a Deus fazendo nossos o amor e os méritos do seu Filho! Nisto se baseia o valor incomparável que um só homem santo tem aos olhos de Deus. Ainda que sejam muitos os pecados que se cometem todos os dias, há também muitas almas que – apesar das suas misérias – desejam agradar a Deus com todas as suas forças!
Não interessa se a nossa vida tem ou não uma grande ressonância externa; o que interessa é a nossa decisão de ser fiéis, de converter os dias da nossa vida numa oferenda a Deus. Quem sabe olhar para o seu Pai‑Deus, quem o trata com a confiança e a amizade de Abraão, não cai no pessimismo, mesmo que o seu empenho constante por servir o Senhor não dê resultados externos de que se possa gloriar. Que grande engano quando o demônio procura que a alma se encha de pessimismo em face dos resultados aparentemente irrisórios dos seus esforços! E, pelo contrário, como o Senhor fica contente, às vezes muito contente, com a nossa luta diária, com o nosso recomeçar contínuo!
“«Nam, et si ambulavero in medio umbrae mortis, non timebo mala» – mesmo que ande por entre as sombras da morte, não terei temor algum. Nem as minhas misérias nem as tentações do inimigo hão de preocupar‑me, «quoniam tu mecum es» – porque o Senhor está comigo”12. Sempre estiveste presente na minha vida, Senhor.
III. EM ATENÇÃO aos dez justos, não a destruirei. Teriam bastado dez justos! As pessoas santas compensam de longe todos os crimes, abusos, invejas, deslealdades, traições, injustiças, egoísmos… de todos os habitantes de uma grande cidade. Pela nossa união com o sacrifício redentor de Jesus Cristo, Deus olhará com especial compaixão para os nossos familiares, amigos, conhecidos…, que talvez se tenham extraviado por ignorância, por erro, por fraqueza ou por não terem recebido as graças que nós recebemos. Quantas vezes não teremos “pechinchado” com Jesus, de modo amistoso e afável, como Abraão “pechinchou” com Javé! Olha, Senhor – continuaremos a dizer –, essa pessoa é melhor do que parece, tem bons desejos…, ajuda‑a! E Jesus, que conhece bem a realidade, movê‑la‑á com a sua graça em atenção à nossa amizade com Ele.
Deus acolhe com particular solicitude as preces daqueles que o amam no mundo: as orações das crianças, que rezam com um coração sem malícia, e as do que se fazem como elas; as súplicas dos doentes, que Ele colocou mais perto do seu Coração; as dos que, como nós, repetem tantas vezes que não têm outra vontade além da Sua, que querem servi‑lo no meio das suas tarefas normais de todos os dias. Aqueles que procuram estar unidos com Cristo são o verdadeiro sustentáculo do mundo.
E essa união não se manifesta geralmente por meio de ações aparatosas. “São incomparavelmente mais numerosos os acontecimentos cujo realce social permanece por ora oculto: é a multidão imensa dos que passaram a vida gastando‑se no anonimato da casa, da fábrica, do escritório; que se consumiram na solidão orante do claustro; que se imolaram no martírio cotidiano da doença. Quando tudo ficar a descoberto na parúsia, então virá à luz o papel decisivo que essas almas desempenharam, apesar das aparências contrárias, no desenvolvimento da história do mundo. E isto será também motivo de alegria para os bem‑aventurados, que daí tirarão tema de louvor perene ao Deus três vezes Santo”13.
São Paulo diz aos primeiros cristãos que eles brilham como “astros no mundo”14, iluminando todos os homens com a luz de Cristo. Do Céu, Deus olha para a terra e delicia‑se com essas pessoas que vivem uma vida corrente, normal, mas que são conscientes da dignidade da sua vocação cristã. O Senhor enche‑se de alegria ao ver como cumprimos as nossas tarefas, quase sempre pequenas e sem relevo, se procuramos ser fiéis.
(1) Hebr 11, 13; (2) São João Crisóstomo, Homilia sobre a Epístola aos Hebreus, 2, 3; (3) Gen 18, 16‑33; Primeira leitura da Missa da segunda‑feira da décima terceira semana do TC, ano I; (4) cfr. Jos 7, 16‑26; (5) Is 53, 1 e segs.; (6) R. Garrigou‑Lagrange, El Salvador, Rialp, Madrid, 1972, pág. 297; (7) cfr. São Tomás, Suma Teológica, III, q. 48, a. 2; (8) ib.; (9) ib., q. 49, a. 1; (10) cfr. João Paulo II, Enc. Redemptor hominis, 4‑III‑1979, 10; (11) cfr. Conc. de Trento, Sec VI, cap. 7; cfr. Pio XII, Enc. Humani generis, Denz‑Sch 2318/3891; (12) Josemaría Escrivá, Forja, n. 194; (13) João Paulo II, Homilia, 11‑II‑1981; (14) Fil 2, 15.
Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal