TEMPO COMUM. NONA SEMANA. QUINTA-FEIRA
– Adorar o único Deus. A idolatria moderna.
– Razões para amar a Deus. Algumas faltas e pecados contra o primeiro Mandamento.
– O primeiro Mandamento abarca todos os aspectos da nossa vida. Manifestações do amor a Deus.
I. O EVANGELHO DA MISSA narra a pergunta de um escriba que, cheio de boa vontade, quer saber qual dos preceitos da lei é o mais importante 1. Jesus ratifica o que a Antiga Lei já havia estabelecido claramente: Escuta, Israel: o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor, e amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua mente e com todas as tuas forças. O segundo é este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. O escriba identifica-se plenamente com o ensinamento de Jesus, e a seguir repete devagar as palavras que acaba de ouvir. O Senhor dirige-lhe uma palavra carinhosa que o anima à conversão definitiva: Não estás longe do Reino de Deus.
Este mandamento, em que se resumem toda a Lei e os Profetas, começa pela afirmação da existência de um único Deus, e assim o repetimos no Credo: Credo in unum Deum – creio num só Deus. É uma verdade conhecida pela luz natural da razão, e os que faziam parte do Povo eleito sabiam bem que todos os deuses pagãos eram falsos.
No entanto, os ídolos foram para eles uma tentação constante e uma causa freqüente de afastamento do Deus verdadeiro, dAquele que os tirou da terra do Egito. Os Profetas sentir-se-ão impelidos a recordar-lhes a falsidade daquelas divindades que ficavam conhecendo quando entravam em contacto com nações mais poderosas e de uma cultura muito superior à deles, que os atraía e deslumbrava: tratava-se de povos mais ricos, materialmente mais avançados, mas mergulhados na escuridão da superstição, do erro e da ignorância. O Povo eleito, porém, não soube apreciar em muitas ocasiões a riqueza incomparável da Revelação, o tesouro da fé. Virou as costas à única fonte de águas vivas para ir beber em cisternas fendidas que não tinham água nem tinham capacidade para retê-la2.
Os antigos pagãos, homens civilizados para a época em que viveram, inventaram ídolos que adoravam de diversas formas. Muitos homens civilizados dos nossos dias – os novos pagãos – erguem ídolos mais bem construídos e mais refinados: parece que explode nos nossos dias uma verdadeira adoração e idolatria3 por tudo aquilo que se apresenta sob a aparência de “progresso” ou que proporciona mais bem-estar material, mais prazer, mais conforto… São atuais as palavras de São Paulo aos Filipenses: O Deus deles é o ventre, e a sua glória a própria vergonha, pois põem o coração nas coisas terrenas4. É a idolatria moderna, a que se vêem tentados também muitos cristãos, esquecendo o imenso tesouro da sua fé, a riqueza do amor a Deus.
O primeiro mandamento do Decálogo é violado quando se preferem outras coisas a Deus, ainda que sejam boas, pois então passa-se a amá-las desordenadamente, usando delas para um fim oposto ou diferente daquele para que foram criadas. Ao quebrar a ordem divina que o Decálogo nos estabelece, o homem já não encontra a Deus na criação e fabrica então o seu próprio deus, por trás do qual esconde radicalmente o seu próprio egoísmo e a sua soberba. Chega até a tentar nesciamente colocar-se no lugar de Deus, a erigir-se a si próprio como fonte do bem e do mal, caindo na cilada que o demônio estendeu aos nossos primeiros pais: Sereis como deuses, se não obedecerdes aos preceitos de Deus5.
Daí a necessidade – porque a tentação é real para cada ser humano – de nos perguntarmos muitas vezes – e assim o fazemos hoje na nossa oração – se Deus é verdadeiramente o que há de mais importante na nossa vida, o Sumo Bem, que orienta a nossa conduta e as nossas decisões. Amarás o Senhor teu Deus… e só a Ele adorarás. O empenho em seguir o caminho que Ele quer para nós – a vocação pessoal de cada um – é o modo concreto de vivermos esse amor e essa adoração.
II. AS RAZÕES PARA AMARMOS a Deus são muitas e muito poderosas: porque Ele nos tirou do nada, porque é Ele quem nos governa e nos proporciona o necessário para a nossa vida e sustento…6 Além disso, essa dívida que temos para com Ele pelo simples fato de existirmos, aumentou incomensuravelmente no momento em que o Senhor nos elevou à ordem da graça, e nos redimiu do poder do pecado pela Morte e Paixão do seu Filho Unigênito, e nos cumulou de incontáveis benefícios e dons: a dignidade de sermos seus filhos e templos do Espírito Santo… Seria uma terrível ingratidão se não lhe agradecêssemos o que nos deu; mais ainda – diz São Tomás –, seria como se fabricássemos um outro Deus, à semelhança dos filhos de Israel que, saindo do Egito, fizeram e adoraram um ídolo7.
A história pessoal de cada homem põe de relevo como a dignidade e a felicidade – mesmo humana – se conseguem pelos trilhos do amor a Deus, nunca fora deles. E quando a razão última de uma vida se cifra em qualquer coisa que não Deus, está-se exposto a cair sob o domínio das próprias paixões. Disse alguém com verdade que “o caminho do inferno já é um inferno”; cumprem-se então as palavras do profeta Jeremias aos que se sentiam deslumbrados com os ídolos das nações vizinhas: Os deuses alheios não vos concederão descanso8.
Deixar de amar a Deus é entrar por uma vertente em que uma concessão chama outra, pois quem ofende o Senhor “não se detém num pecado, mas, pelo contrário, é empurrado a consentir em outros: quem comete pecado é escravo do pecado (Jo 8, 34). Por isso não é nada fácil sair dele, como dizia São Gregório: «O pecado que não se extirpa pela penitência arrasta pelo seu próprio peso para outros pecados»”9. O amor a Deus, pelo contrário, leva a detestar o pecado, a fugir de qualquer ocasião em que possa haver perigo de ofendê-lo, a fazer penitência pelos pecados da vida passada.
Faltamos também ao amor de Deus quando não lhe prestamos o culto devido, quando não rezamos ou rezamos mal, quando nos detemos em dúvidas voluntárias contra a fé, quando damos crédito a superstições ou a doutrinas – ainda que se apresentem como científicas – que se opõem à fé, ambas fruto da ignorância; quando nos expomos – ou expomos os filhos ou pessoas que temos sob o nosso cuidado – a influências ou leituras danosas para a fé ou para a moral; quando desconfiamos de Deus, do seu poder, da sua bondade… Enfim, “este é o critério para que a alma possa conhecer com clareza se ama ou não a Deus com amor puro: se o ama, o seu coração não a levará a centrar-se em si mesma nem a ocupar-se obsessivamente em satisfazer os seus gostos e conveniências. Dedicar-se-á a buscar a honra e a glória de Deus e a agradar-lhe. Quanto mais coração tiver para si mesma, menos o terá para Deus”10.
III. O AMOR DE DEUS não se manifesta somente quando lhe prestamos o culto devido, mas quando o estendemos a todos os aspectos da vida. Amamos a Deus através do nosso trabalho bem feito, do cumprimento fiel dos nossos deveres na família, na empresa, na sociedade; amamo-lo com a mente, com o coração, com o porte exterior próprio de um filho de Deus…
Este mandamento exige acima de tudo que não encaremos a adoração – a procura da glória de Deus – como uma atitude ou uma disposição a cultivar entre muitas outras, mas como a finalidade última de todas as nossas ações, mesmo das mais vulgares: Quer comais, quer bebais ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus11. É uma orientação fundamental da alma, que exige, na prática, que façamos tudo – ou pelo menos que desejemos fazer tudo – para agradar a Deus; isto é, com retidão de intenção.
O amor de Deus alimenta-se através da oração e da freqüência de sacramentos, na luta constante por superarmos os nossos defeitos, no empenho por nos mantermos na presença de Deus ao longo do dia. De modo particular, a Sagrada Eucaristia deve ser a fonte que alimenta continuamente o nosso amor a Deus.
Devemos, pois, fazer com freqüência atos positivos de amor e de adoração a Deus: enchendo de conteúdo cada genuflexão – sinal de adoração – diante do Sacrário, ou talvez repetindo as palavras que dizemos ao recitar o Glória: Nós Vos louvamos, nós Vos bendizemos, nós Vos adoramos, nós Vos glorificamos, nós Vos damos graças. Assim poderemos dizer também, com palavras do hino eucarístico: Adoro te devote…, tibi se cor meum totum subiicit: Adoro-Vos, Senhor, com toda a devoção…, a Vós se submete o meu coração por inteiro.
Pensemos em que coisas temos o coração. Vejamos na nossa oração se lançamos mão de “expedientes humanos” para nos lembrarmos muitas vezes de Deus ao longo do nosso dia para, dessa forma, podermos amá-lo e adorá-lo sem cessar.
(1) Mc 12, 28-34; (2) cfr. Jer 2, 13; (3) Conc. Vat. II, Decr. Apostolicam actuositatem, 7; (4) Fil 3, 19; (5) Gên 3, 5; (6) Catecismo Romano, III, 2, 6; (7) cfr. São Tomás, Sobre o duplo preceito da caridade, 1; (8) Jer 16, 13; (9) São Tomás, op. cit.; (10) São João da Cruz, Cântico espiritual, 9, 5; (11) 1 Cor 10, 31.
Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal