TEMPO COMUM. VIGÉSIMA TERCEIRA SEMANA. QUINTA‑FEIRA
– A recompensa sobrenatural das boas obras.
– Os méritos de Cristo e de Maria.
– Oferecer a Deus a nossa vida corrente. Merecer em bem dos demais.
I. O SENHOR FALA‑NOS muitas vezes do mérito que tem até a menor das nossas obras, se as realizamos por Ele: nem sequer um copo de água oferecido por Ele ficará sem recompensa1. Se formos fiéis a Cristo, encontraremos um tesouro acumulado no Céu por uma vida oferecida dia a dia ao Senhor. A vida é o tempo para merecer, pois no Céu já não se merece, mas usufrui‑se da recompensa. Também não se adquirem méritos no Purgatório, onde as almas se purificam das seqüelas deixadas pelos seus pecados. Este é o único tempo para merecer: os dias que nos restam aqui na terra.
No Evangelho da Missa de hoje2, o Senhor ensina‑nos que, para obter essa recompensa sobrenatural, as obras do cristão devem ser superiores às dos pagãos. Se amardes os que vos amam, que recompensa tereis? Porque os pecadores também amam os que os amam. E, se fizerdes bem aos que vo‑lo fazem, que recompensa tereis? Também os pecadores fazem o mesmo… A caridade deve abarcar todos os homens, sem limite algum; não deve restringir‑se aos que nos fazem bem, aos que nos ajudam ou se comportam corretamente conosco, porque para isso não seria necessária a ajuda da graça: também os pagãos amam aqueles que os amam. O mesmo acontece com as boas obras do cristão; não devem ser apenas “humanamente” boas e exemplares, mas generosas na sua raiz por amor de Deus e, portanto, sobrenaturalmente meritórias.
Deus assegurou‑nos por meio do profeta Isaías: Electi mei non laborabunt frustra3, os meus escolhidos não trabalharão nunca em vão, pois nem a mais pequena obra feita por Deus ficará sem fruto. Veremos muitos desses frutos já aqui na terra; outros, talvez a maior parte, quando nos encontrarmos na presença de Deus no Céu. São Paulo recorda aos primeiros cristãos que cada um receberá a sua recompensa conforme o seu trabalho4. E insiste: Cada um receberá a recompensa devida às boas ou más ações que tiver praticado enquanto estava revestido do seu corpo5. Este é o tempo de merecer. “As vossas boas obras devem ser os vossos investimentos, dos quais um dia recebereis lucros consideráveis”6, ensina Santo Inácio de Antioquia.
II. ELECTI MEI non laborabunt frustra… As obras de cada dia – o trabalho, os pequenos serviços que prestamos aos outros, as alegrias, o descanso, a dor e a fadiga aceitos com garbo e oferecidos a Deus – podem ser meritórias pelos infinitos méritos que Cristo nos alcançou na sua vida terrena, pois da sua plenitude recebemos graça sobre graça7. A uns dons acrescentam‑se outros, numa progressão sem fim, pois todos brotam da única fonte que é Cristo, cuja plenitude de graça não se esgota nunca. “Ele não tem o dom recebido por participação, mas é a própria fonte, a própria raiz de todos os bens: a Vida, a Luz, a Verdade. E não retém em si mesmo as riquezas dos seus bens, antes os entrega a todos os outros; e, tendo‑os dispensado, permanece pleno; não diminui em nada por havê‑los distribuído aos outros, mas, cumulando e fazendo participar a todos desses bens, permanece na mesma perfeição”8.
Adoro te devote: Pie pellicane, Iesu Domine, me immundum munda tuo sanguine… “Bom pelicano, Senhor Jesus! / Limpai‑me a mim, imundo, com o vosso Sangue, / com esse Sangue do qual uma só gota / pode salvar do pecado o mundo inteiro”. O menor ato de amor de Jesus, na sua infância, na sua vida de trabalho em Nazaré, tinha um valor infinito para obter para todos os homens – os passados, os presentes e os que haviam de vir – a graça santificante, a vida eterna e as ajudas necessárias para se chegar a ela9.
Ninguém como a Virgem, Mãe de Deus e nossa Mãe, participou com tanta plenitude dos méritos do seu Filho. Pela sua impecabilidade, os seus méritos foram maiores – até mais estritamente “meritórios” – que os de todas as demais criaturas, porque, estando imune das concupiscências e de outros entraves, a sua liberdade era maior, e a liberdade é o princípio radical do mérito. Foram meritórios todos os sacrifícios e pesares que teve de enfrentar por ser a Mãe de Deus: desde a pobreza de Belém e a aflição da fuga para o Egito até a espada que atravessou o seu coração ao contemplar os sofrimentos de Jesus na Cruz. E foram meritórias todas as alegrias e satisfações que lhe causaram a sua imensa fé e o seu amor que tudo penetrava, pois o que torna meritória uma ação não é a sua dificuldade, mas o amor com que é feita.
“Não é a dificuldade que há em amar o inimigo o que conta para o seu valor meritório, mas o modo como se manifesta nela a perfeição do amor, que triunfa sobre essa dificuldade. Assim, pois, se a caridade fosse tão completa que suprimisse completamente a dificuldade, seria então mais meritória”10, ensina São Tomás de Aquino. Assim foi a caridade de Maria.
Deve dar‑nos uma grande alegria considerar com freqüência os méritos infinitos de Cristo, que são a fonte da nossa vida espiritual. Do mesmo modo, deve fortalecer‑nos a esperança e reanimar‑nos nos momentos de desânimo ou de cansaço a contemplação das graças que Santa Maria nos alcançou.
“Dizias‑me: «Vejo‑me, não somente incapaz de andar para a frente no caminho, mas incapaz de salvar‑me – pobre da minha alma! – sem um milagre da graça. Estou frio e – o que é pior – como que indiferente: exatamente como se fosse um espectador do ‘meu caso’, que não se importasse nada com o que contempla. Serão estéreis estes dias? «E, no entanto, a minha Mãe é minha Mãe, e Jesus é – atrevo‑me? – o meu Jesus! E há almas santas, agora mesmo, pedindo por mim». – Continua a andar pela mão da tua Mãe – repliquei‑te –, e «atreve‑te» a dizer a Jesus que é teu. Pela sua bondade, Ele porá luzes claras na tua alma”11.
III. ELECTI MEI non laborabunt frustra. O mérito é o direito à recompensa pelas obras que realizamos, e todas as nossas obras podem ser meritórias, de tal modo que convertamos a vida num tempo de merecimento. A teologia ensina12 que é mérito propriamente dito (de condigno) aquele em que se deve uma retribuição em justiça ou, pelo menos, em virtude de uma promessa; assim, na ordem natural, o trabalhador merece o seu salário. Existe também outro mérito, que costuma ser chamado de conveniência (de congruo), em que se deve uma recompensa, não por estrita justiça nem como conseqüência de uma promessa, mas por uma razão de amizade, de estima, de liberalidade; assim, na ordem natural, o soldado que se distinguiu numa batalha pelo seu valor merece (de congruo) ser condecorado: a sua condição militar pede‑lhe essa valentia, mas, se podia recuar e não recuou, se podia limitar‑se a cumprir a sua missão e esmerou‑se nela, o general magnânimo vê‑se impelido a recompensá‑lo superabundantemente – ultrapassando o estipulado – por aquela ação.
Na ordem sobrenatural, os nossos atos merecem, por querer de Deus, uma recompensa que supera todas as honras e toda a glória que o mundo nos pode oferecer. O cristão em estado de graça consegue com a sua vida corrente, cumprindo o seu dever, um aumento de graça na sua alma e a vida eterna: pela momentânea e leve tribulação, Ele prepara‑nos um peso eterno de glória incalculável13.
Cada dia, as obras são meritórias se as realizamos bem e com retidão de intenção: se as oferecemos a Deus ao começar a jornada, na Santa Missa, ao iniciarmos uma tarefa ou ao terminá‑la. Serão meritórias especialmente se as unirmos aos méritos de Cristo e aos da Virgem Maria. Apropriamo‑nos assim das graças de valor infinito que o Senhor nos alcançou, principalmente na Cruz, e dos da sua Santíssima Mãe, que corredimiu tão singularmente com Ele. O nosso Pai‑Deus vê então essas ações revestidas de um caráter infinito, inteiramente novo. Tornamo‑nos solidários com os méritos de Cristo.
Conscientes desta realidade sobrenatural, procuramos oferecer tudo ao Senhor?, tanto as ações corriqueiras de cada dia como as circunstâncias que saem da normalidade: uma doença grave, a perseguição, a calúnia? Nestes casos, devemos recordar‑nos especialmente do que líamos ontem no Evangelho da Missa14: Alegrai‑vos naquele dia e regozijai‑vos, pois será grande a vossa recompensa no céu. São ocasiões para amar mais a Deus, para nos unirmos mais a Ele.
Ajudar‑nos‑á também a realizar com perfeição as nossas tarefas o sabermos que – por mérito de conveniência, baseado na amizade com o Senhor –, com essas obras feitas em graça de Deus, por amor, com perfeição, podemos merecer a conversão de um filho, de um irmão, de um amigo: assim fizeram os santos. Não são motivos que nos incitam a procurar o rosto de Deus, a glória de Deus, em cada uma das nossas ações?
“Dedicaremos todos os afãs da nossa vida – grandes e pequenos – à honra de Deus Pai, de Deus Filho, de Deus Espírito Santo. – Lembro‑me com emoção do trabalho daqueles universitários brilhantes – dois engenheiros e dois arquitetos –, ocupados com muito gosto na instalação material de uma residência de estudantes. Mal acabaram de colocar o quadro‑negro numa sala de aula, a primeira coisa que os quatro artistas escreveram foi: «Deo omnis gloria!» – toda a glória para Deus. – Sei que te encantou, Jesus”15.
(1) Cfr. Mt 10, 42; (2) Lc 6, 27‑38; (3) Is 65, 23; (4) 1 Cor 3, 8; (5) 2 Cor 5, 10; cfr. Rom 2, 5‑6; (6) Santo Inácio de Antioquia, Epístola a São Policarpo; (7) Jo 1, 16; (8) São João Crisóstomo, Homilias sobre o Evangelho de São João, 14, 1; (9) cfr. R. Garrigou‑Lagrange, El Salvador, pág. 365; (10) São Tomás, Questões disputadas sobre a caridade, q. 8, ad. 17; (11) Josemaría Escrivá, Forja, n. 251; (12) cfr. R. Garrigou‑Lagrange, op. cit., pág. 366; (13) 2 Cor 4, 17; (14) cfr. Lc 6, 20‑26; (15) Josemaría Escrivá, Forja, n. 611.
Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal