TEMPO COMUM. OITAVA SEMANA. SEGUNDA-FEIRA
– Deus nos chama a todos. Necessidade do desprendimento para seguir a Cristo.
– A resposta à vocação pessoal.
– Pobreza e desprendimento na nossa vida diária.
I. O EVANGELHO DA MISSA de hoje 1 diz-nos que Jesus saía de uma cidade a caminho de outro lugar, quando um jovem veio correndo e se deteve diante dEle. Os três Evangelistas que nos relatam o episódio contam-nos que era de boa posição social.
Ajoelhou-se aos pés de Cristo e fez uma pergunta fundamental para todos os homens: Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna? Jesus está de pé, rodeado dos seus discípulos, que contemplam a cena; o jovem, de joelhos. É um diálogo aberto, em que o Senhor começa por dar uma resposta em termos gerais: Guarda os mandamentos. E enumera-os: Não matarás, não adulterarás, não furtarás… O jovem responde: Mestre, tudo isso tenho guardado desde a minha infância… Que me falta ainda? 2
É a pergunta que todos nós fizemos alguma vez, perante o desencanto íntimo das coisas que, sendo boas, não acabavam de satisfazer-nos o coração, e perante a vida que ia passando sem apagar essa sede oculta que não é saciada. E Cristo tem uma resposta pessoal para cada um, a única resposta válida.
Jesus sabia que no coração daquele jovem havia um fundo de generosidade, uma grande capacidade de entrega. Por isso olhou-o comprazido, com amor de predileção, e convidou-o a segui-lo sem nenhuma condição, sem laços que o retivessem. Olhou-o fixamente, como só Cristo sabe olhar, até o mais fundo da alma.
“Ele fita com amor cada um dos homens. O Evangelho confirma-o a cada passo. Pode-se até dizer que nesse «olhar amoroso» de Cristo está contido como que o resumo e a síntese de toda a Boa Nova […]. O homem necessita desse «olhar amoroso»; é-lhe necessária a consciência de ser amado, de ser amado eternamente e escolhido desde toda a eternidade (cfr. Ef 1, 4)” 3. O Senhor, agora e sempre, vê-nos assim, com um profundo amor de predileção.
O Mestre, com uma voz que devia ter tido um acento muito particular, disse-lhe: Uma coisa te falta ainda. Só uma. Com que ansiedade o jovem não estaria aguardando a resposta do Mestre! Era, sem dúvida, a coisa mais importante que ia ouvir em toda a sua vida. Vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres… E depois vem e segue-me. Era um convite para que se entregasse inteiramente ao Senhor.
Deus chama a todos: sãos e enfermos; pessoas com grandes qualidades ou de capacidade modesta; os que possuem riquezas e os que passam por dificuldades; os jovens, os anciãos e os de idade madura. Cada homem, cada mulher, deve descobrir o caminho peculiar a que Deus o chama. Mas, seja qual for esse caminho, chama todos à santidade, à generosidade, ao desprendimento, à entrega; diz a todos no seu interior: Vem e segue-me.
Aquele jovem vê de repente a sua vocação: a chamada para uma entrega plena. O seu encontro com Jesus descobre-lhe o sentido e a tarefa fundamental da sua vida. Mas descobre-lhe ao mesmo tempo até onde chegava a sua verdadeira disponibilidade. Até aquele momento, julgava cumprir a vontade de Deus porque cumpria os mandamentos da Lei. Quando Cristo lhe desvenda o panorama de uma entrega completa, percebe quanto apego tem às suas coisas e como é pequeno o seu amor à vontade de Deus. Hoje, essa cena continua a repetir-se.
“Dizes, desse teu amigo, que freqüenta os Sacramentos, que é de vida limpa e bom estudante, mas que não «entrosa»; se lhe falas em sacrifício e apostolado, fica triste e vai-se embora.
“Não te preocupes. Não é um malogro do teu zelo; é, à letra, a cena que narra o Evangelista: «Se queres ser perfeito, vai e vende tudo o que tens e dá-o aos pobres» (sacrifício)… «e vem depois e segue-me» (apostolado).
“O adolescente «abiit tristis» – também se retirou entristecido; não quis corresponder à graça” 4.
Foi-se cheio de tristeza, porque a alegria só é possível quando há generosidade e desprendimento, quando há essa disponibilidade absoluta diante do querer de Deus que se manifesta em momentos bem precisos da nossa vida e, depois, na fidelidade ao longo dos dias e dos anos.
Digamos hoje ao Senhor que nos ajude com a sua graça para que, a cada momento, possa contar efetivamente conosco para o que queira: livres de objeções e de laços que nos prendam. “Senhor, não tenho outro fim na vida a não ser buscar-vos, amar-vos e servir-vos… Todos os outros objetivos da minha vida se orientam para isso. Não quero nada que me separe de Vós”, dizemos-lhe neste diálogo.
II. “A TRISTEZA DESTE JOVEM leva-nos a refletir, comenta João Paulo II. Podemos ser tentados a pensar que possuir muitas coisas, muitos bens deste mundo, pode fazer-nos felizes. Vemos, no entanto, no caso do jovem do Evangelho, que as riquezas se tornaram um obstáculo para aceitar a chamada de Jesus que o convidava a segui-lo. Não estava disposto a dizer “sim” a Jesus e “não” a si mesmo, a dizer “sim” ao amor e “não” à fuga! O amor verdadeiro é exigente […]. Porque foi Jesus – o próprio Jesus – quem disse: Vós sereis meus amigos se fizerdes o que eu vos mando (Jo 15, 14). O amor exige esforço e compromisso pessoal para cumprir a vontade de Deus. Significa sacrifício e disciplina, mas significa também alegria e realização humana […]. Com a ajuda de Cristo e através da oração, podereis corresponder à sua chamada […]. Abri os vossos corações a este Cristo do Evangelho, ao seu amor, à sua verdade, à sua alegria. Não vos vades embora tristes!” 5
A chamada do Senhor que nos convida a segui-lo de perto exige uma atitude de resposta contínua, porque Ele, nas suas diferentes chamadas, pede uma correspondência dócil e generosa ao longo da vida. Por isso, devemos situar-nos com freqüência diante de Deus – cara a cara, sem anonimato – e perguntar-lhe como o jovem do Evangelho: Que me falta? Que exigências tem hoje a minha vocação de cristão nas minhas circunstâncias? Que caminho o Senhor quer que eu siga?
Sejamos sinceros: quem tem autêntico desejo de saber qual o caminho de Deus para si, esse acaba por conhecê-lo claramente. “O cristão vai descobrindo assim, no meio da sua vida corrente, como a sua vocação se deve ir realizando através de um entrançado cotidiano de chamadas e sugestões divinas […], de instantes significativos, de «vocações» concretas para que realize, por amor ao seu Senhor, pequenas ou grandes tarefas no mundo dos homens. E é no meio desse diálogo contínuo com o Senhor, feito de constantes fidelidades, que pode por fim escutar essa voz divina que o convida a tomar uma decisão definitiva, radical […]. A palavra de Deus pode chegar-lhe com o furacão ou com a brisa (1 Re 19, 22)” 6. Mas, para segui-la, deve estar desprendido de qualquer liame; só Cristo é que importa. Todo o resto, nEle e por Ele.
III. AQUELE JOVEM LEVANTOU-SE, esquivou-se ao olhar de Jesus e ao seu convite para uma profunda vida de amor, e foi-se embora com a tristeza estampada no rosto. “Intuímos que a negativa daquele momento foi definitiva” 7. O Senhor viu com pena como o seu jovem interlocutor se afastava; e o Espírito Santo revela-nos o motivo da sua recusa: tinha muitos bens e estava muito apegado a eles.
Depois do incidente, a comitiva empreendeu a caminhada. Mas antes, ou talvez enquanto davam os primeiros passos, Jesus, olhando à sua volta, disse aos seus discípulos: Que dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm riquezas! Todos ficaram impressionados com as suas palavras. E o Senhor repetiu com mais força: Mais fácil é a um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que a um rico entrar no reino de Deus.
Devemos considerar com atenção o ensinamento de Jesus e aplicá-lo à nossa vida: não se pode conciliar o amor a Deus – esse segui-lo de perto – com o apego aos bens materiais: num mesmo coração, não pode haver lugar para esses dois amores juntos. O homem pode orientar a sua vida propondo-se Deus como fim, e alcançá-lo também, com a ajuda da graça, através das coisas materiais, usando-as apenas como meios que são e na justa medida em que o forem; ou infelizmente pode pôr nas riquezas a esperança da sua plenitude e felicidade: desejo desmedido de bens, de luxo, de comodismo, ambição, cobiça…
Temos hoje uma boa ocasião para nos examinarmos valentemente, na intimidade da nossa oração, sobre a mola que realmente comanda a nossa atuação, isto é, sobre o lugar em que pára o nosso coração: se nos propusemos seriamente viver desprendidos dos bens da terra ou se tudo nos parece pouco e queremos acumular indefinidamente; se temos uma preocupação obsessiva com o futuro, amealhando como se fôssemos viver para sempre na terra ou como se, no caso dos pais, os filhos devessem receber tudo deles e nunca ter que trabalhar; se somos sóbrios nas necessidades pessoais ou familiares, evitando os gastos supérfluos, os extraordinários descontrolados, as necessidades falsas das quais poderíamos prescindir com um pouco de boa vontade; se cuidamos com esmero das coisas da nossa casa e dos bens que usamos; se atuamos com a consciência clara de sermos apenas administradores dos nossos recursos e devermos prestar contas deles ao seu verdadeiro Dono, Deus Nosso Senhor; se aceitamos com alegria as incomodidades e a falta de meios; se somos generosos na esmola aos mais carentes e na manutenção de obras sociais ou de formação cristã, privando-nos de coisas que gostaríamos de ter… Só assim viveremos com a alegria e a liberdade necessárias para sermos discípulos do Senhor no meio do mundo.
Seguir Cristo de perto é o nosso ideal supremo; não queremos retirar-nos da sua presença como aquele jovem, com a alma impregnada de profunda tristeza por não termos sabido desprender-nos de uns bens de pouco valor, em comparação com a imensa riqueza de Jesus.
(1) Mc 10, 17-27; (2) Mt 19, 20; (3) João Paulo II, Carta aos jovens, 31-III-1985, n. 7; (4) Josemaría Escrivá, Caminho, n. 807; (5) João Paulo II, Homilia no Boston Common, 1-X-1979; (6) P. Rodriguez, Fé e vida de fé, págs. 82-83; (7) R. A. Knox, Deus e eu, Quadrante, São Paulo, pág. 163.
Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal