TEMPO COMUM. VIGÉSIMO QUARTO DOMINGO. ANO C

– A misericórdia inesgotável de Deus.
– A dignidade recuperada.
– Servir a Deus é uma honra.

I. TEM PIEDADE DE MIM, ó Deus, segundo a tua misericórdia. / Segundo a multidão das tuas clemências, apaga a minha iniqüidade. / Lava‑me inteiramente da minha culpa e purifica‑me do meu pecado.

Cria em mim, ó Deus, um coração puro, e renova em mim um espírito firme… / Não desprezarás, ó Deus, um coração contrito e humilhado 1.

A liturgia deste domingo propõe à nossa consideração, uma vez mais, a misericórdia inesgotável do Senhor: um Deus que perdoa e que manifesta a sua infinita alegria por cada pecador que se converte! Na primeira Leitura 2, vemos como Moisés intercede pelo Povo de Deus, que bem cedo esqueceu a Aliança e construiu um bezerro de ouro enquanto ele se encontrava no monte Sinai. Moisés não procura desculpar o pecado do povo, mas apóia a sua oração no próprio Deus, nas suas antigas promessas, na sua misericórdia. Na segunda Leitura 3, São Paulo fala‑nos da sua própria experiência pessoal: Palavra fiel e digna de toda a aceitação: Jesus Cristo veio a este mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o primeiro. Por isso alcancei misericórdia, para que em mim, sendo o primeiro, Jesus Cristo mostrasse toda a sua paciência. É a experiência íntima de cada um de nós. Todos sabemos como Deus jamais se cansou de perdoar‑nos, de facilitar‑nos continuamente o caminho da reconciliação.

No Evangelho da Missa 4, São Lucas relata diversas parábolas que revelam a compaixão do Senhor perante o estado a que o pecador fica reduzido, e a sua alegria ao recuperar os que pareciam definitivamente perdidos. O personagem central destas parábolas é o próprio Deus, que lança mão de todos os meios para recuperar os seus filhos feridos pelo pecado: é o pastor que parte em busca da ovelha tresmalhada até encontrá‑la, e que depois a carrega sobre os ombros porque a vê fatigada e exausta após o seu extravio; é a mulher que perdeu uma dracma e acende a candeia, varre a casa e procura diligentemente a moeda até encontrá‑la; é o pai que, movido pela impaciência do amor, sai todos os dias ao terraço da sua casa e aguça o olhar para ver se qualquer figura que vislumbra ao longe não é o filho que abandonou o lar… “No seu grande amor pela humanidade, Deus vai atrás do homem – escreve Clemente de Alexandria – como a mãe voa sobre o passarinho pequeno quando este cai do ninho; e se a serpente ameaça devorá‑lo, esvoaça gemendo sobre os seus filhotes (cfr. Deut 32, 11). Assim Deus busca paternalmente a criatura, cura‑a da sua queda, persegue a besta selvagem e recolhe o filho, animando‑o a voltar, a voar para o ninho” 5.

Assim vos digo eu que haverá júbilo entre os anjos de Deus por um só pecador que faça penitência. Como podemos retrair‑nos do arrependimento sincero diante de tanto júbilo divino? A atitude misericordiosa de Deus será motivo mais forte para a contrição, por mais longe que estejamos. Antes de termos levantado a mão pedindo ajuda, Ele já terá estendido a sua – mão forte de pai – para nos levantar e nos ajudar a ir para a frente.

II. O PECADO, tão detalhadamente descrito na parábola do filho pródigo, “consiste na rebelião contra Deus, ou ao menos no esquecimento ou indiferença para com Ele e para com o seu amor” 6, no desejo néscio de viver fora do amparo de Deus, de emigrar para uma terra distante, longe da casa paterna. Mas esta «fuga de Deus» tem como conseqüência para o homem uma situação de confusão profunda sobre a sua própria identidade, ao lado de uma amarga experiência de empobrecimento e desespero: o filho pródigo, conforme narra a parábola, depois de tudo, começou a passar necessidade e viu‑se obrigado – ele, que tinha nascido em liberdade – a servir um dos habitantes daquela região” 7. Como se passa mal quando se está longe de Deus! “Onde se passará bem sem Cristo – pergunta Santo Agostinho –, ou quando se poderá passar mal com Ele?” 8

A liturgia da Missa de hoje convida‑nos a meditar na grandeza do nosso Pai‑Deus e no seu amor por nós. Quando o filho decide regressar à casa paterna e trabalhar na herdade como um jornaleiro, o pai, profundamente comovido ao ver as condições em que retorna, corre ao seu encontro e demonstra‑lhe prodigamente o seu amor: Lançou‑lhe os braços ao pescoço – diz Jesus na parábola – e cobriu‑o de beijos. Acolhe‑o como filho imediatamente. “Estas são as palavras do livro sagrado: cobriu‑o de beijos, comia‑o a beijos. Pode‑se falar com mais calor humano? Pode‑se descrever de maneira mais gráfica o amor paternal de Deus pelos homens?

“Perante um Deus que corre ao nosso encontro, não nos podemos calar, e temos que dizer‑lhe com São Paulo: Abba, Pater! (Rom 8, 15), Pai, meu Pai!, porque, sendo Ele o Criador do universo, não se importa de que não o tratemos com títulos altissonantes, nem reclama a devida confissão do seu poder. Quer que lhe chamemos Pai, que saboreemos essa palavra, deixando a alma inundar‑se de alegria” 9. Pai, meu Pai!, é como o temos chamado tantas vezes, enchendo-nos de paz e de consolo.

Até esse momento, o pai nada tinha dito; agora as suas palavras transbordam de alegria. Não põe condições ao filho, não quer lembrar‑se mais do passado… Pensa no futuro, em restituir‑lhe quanto antes a dignidade de filho. Por isso, nem o deixa terminar a frase que tinha preparado, e ordena: Tirai depressa o vestido mais precioso e vesti‑lho, e metei‑lhe um anel no dedo e sandálias nos pés; trazei também um vitelo gordo e matai‑o, e comamos e banqueteemo‑nos, porque este meu filho estava morto e reviveu; tinha‑se perdido e foi encontrado. O vestido mais precioso converte‑o em hóspede de honra, o anel devolve‑lhe a dignidade perdida, as sandálias declaram‑no livre 10. O amor paterno de Deus inclina‑se para todos os filhos pródigos, para qualquer miséria humana, especialmente para a miséria moral. Então, aquele que é objeto da compaixão divina “não se sente humilhado, mas reencontrado e «revalorizado»” 11.

Na Confissão, através do sacerdote, o Senhor devolve‑nos tudo o que perdemos por culpa própria: a graça e a dignidade de filhos de Deus. Cumula‑nos da sua graça e, se o arrependimento é profundo, coloca‑nos num lugar mais alto do que aquele em que estávamos anteriormente: “Da nossa miséria tira riqueza; da nossa debilidade, fortaleza. O que não nos há de preparar então, se não o abandonamos, se freqüentamos a sua companhia todos os dias, se lhe dirigimos palavras de carinho confirmadas com as nossas ações, se lhe pedimos tudo, confiados na sua onipotência e na sua misericórdia? Se prepara uma festa para o filho que o traiu, só por tê‑lo recuperado, o que não nos outorgará a nós, se sempre procuramos ficar a seu lado?” 12

III. E COMEÇARAM a celebrar a festa. Neste momento, quando parece que a parábola terminou, o Senhor introduz mais um personagem: o irmão mais velho. Vem do campo, do trabalho nas terras do pai, como sempre fez. Quando chega a casa, a festa está no apogeu. Ouve já de longe a música e os cantos, e surpreende‑se. Um criado informa‑o de que estão celebrando o retorno do irmão mais novo, que chegou esfarrapado. Finalmente voltou!

Mas o irmão mais velho fica aborrecido. “O canto, a alegria e a festa não te moveram o coração? – comenta Santo Agostinho –. O banquete do novilho gordo não te fez pensar? Ninguém te exclui. Tudo em vão; o servo fala, mas o aborrecimento persiste, e ele não quer entrar” 13. É a nota discordante da tarde. É também o momento das queixas ocultas e reprimidas durante tanto tempo, que agora afloram: tantos anos que te sirvo, sem jamais transgredir nenhuma das tuas ordens, e nunca me deste um só cabrito; mas agora que chegou esse teu filho, que devorou os seus bens com meretrizes, logo lhe mandaste matar um novilho gordo.

O Pai é Deus, que tem sempre as mãos abertas, cheias de misericórdia. O filho mais novo é a imagem do pecador, que percebe que só pode ser feliz junto de Deus, nem que seja no último lugar, mas com seu Pai‑Deus. E o mais velho? É um homem trabalhador, que sempre serviu sem nunca sair dos limites da fazenda; mas sem alegria. Serviu porque não tinha outra solução, e, com o tempo, o seu coração tornou‑se pequeno. Foi perdendo o sentido da caridade enquanto servia. O seu irmão é já para ele esse teu filho.

Que contraste entre o coração magnânimo do Pai e a mesquinhez do filho mais velho! É a imagem do justo que se torna míope a ponto de não compreender que servir a Deus e gozar da sua amizade e presença é uma festa contínua, que, no fundo, servir é reinar 14. É a figura de todo aquele que esquece que estar com Deus – nas coisas grandes e nas coisas pequenas – é uma honra imerecida. Uma boa parte da recompensa está no próprio serviço que se presta. Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. “Portanto, todas as honras são nossas, se nós somos de Deus” 15. É o próprio Deus que se dá, e com Ele nos dá todas as riquezas: que mais podemos pedir?

Deus espera de nós uma entrega alegre, sem tristeza nem constrangimento, pois Deus ama aquele que dá com alegria 16. Junto de Deus, sempre há suficientes motivos de festa, de ação de graças, de alegria, especialmente quando se nos apresentam ocasiões de ser magnânimos – de ter um coração grande, compreensivo – com um dos nossos irmãos. “Que doce alegria pensar que o Senhor é justo, quer dizer, que conhece perfeitamente a fragilidade da nossa natureza! Por que então temer? O bom Deus, infinitamente justo, que se dignou perdoar com tanta misericórdia as culpas do filho pródigo, não será também justo comigo, que estou sempre junto dEle?” 17, com alegria, com desejos de servi‑lo até nas coisas mais pequenas?

(1) Sl 50, 3‑4; 12; 19; Salmo responsorial da Missa do vigésimo quarto domingo do Tempo Comum, ciclo C; (2) Êx 32, 7‑11; 13‑14; (3) 1 Tim 1, 15‑16; (4) Lc 15, 1‑32; (5) Clemente de Alexandria, Protréptico, 10; (6) João Paulo II, Homilia, 17‑IX‑1989; (7) ibid.; (8) Santo Agostinho, Comentário ao Evangelho de São João, 51, 11; (9) Bem-aventurado Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, Quadrante, São Paulo, 1978, n. 64; (10) cfr. Santo Agostinho, Sermão 11, 7; (11) João Paulo II, Carta Encíclica Dives in misericordia, 30‑XI‑1980, 6; (12) Bem-aventurado Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, Quadrante, São Paulo, 1978, n. 309; (13) Santo Agostinho, Sermão 11, 10; (14) cfr. Concílio Vaticano II, Constituição Lumen gentium, 36; (15) Santo Agostinho, Sermão 11, 13; (16) 2 Cor 9, 7; (17) Santa Teresa de Lisieux, História de uma alma, 8.

Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal