TEMPO COMUM. DÉCIMA SEXTA SEMANA. TERÇA‑FEIRA
– A nossa união com Cristo é mais forte do que qualquer vínculo humano. Os laços que resultam do seguimento do Senhor num mesmo caminho são mais fortes que os do sangue.
I. O EVANGELHO DA MISSA1 mostra‑nos Jesus ocupado uma vez mais em pregar. Encontra‑se numa casa tão abarrotada de gente que a sua Mãe e outros parentes não podem chegar até Ele e mandam‑lhe um recado. Alguém disse‑lhe: a tua mãe e os teus irmãos estão ali fora e procuram‑te. Ele, porém, estendeu a mão para os discípulos e disse‑lhes: Eis a minha mãe e os meus irmãos. Porque todo aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus, esse é meu irmão e irmã e mãe.
Noutra ocasião, uma mulher do povo, ao escutar as palavras cheias de vida de Jesus, exclamou em louvor de Maria: Bem‑aventurado o ventre que te trouxe e os peitos que te amamentaram. Mas o Senhor deu a impressão de querer rejeitar o louvor dessa mulher, e respondeu: Antes bem‑aventurados aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática2.
O Papa João Paulo II relaciona estas duas cenas com a resposta que Jesus deu a Maria e a José quando o encontraram em Jerusalém, à idade de doze anos, depois de uma busca aflita durante três dias. Naquela ocasião, Jesus disse‑lhes, com um amor sem limites e com uma clareza total: Por que me buscáveis? Não sabíeis que devo ocupar‑me nas coisas de meu Pai?3 Desde o começo, Jesus dedicou‑se às coisas de seu Pai. Anunciava o Reino de Deus e, à sua passagem, todas as coisas alcançavam um novo sentido; entre elas, o parentesco. “Nesta nova dimensão, também um vínculo como o da «fraternidade» significa uma coisa diversa da «fraternidade segundo a carne», que provém da origem comum dos mesmos pais. E mesmo a «maternidade» […] alcança um outro sentido”4, mais profundo e mais íntimo.
O Senhor ensina‑nos repetidamente que, por cima de qualquer vínculo e autoridade humana, mesmo a familiar, está o dever de cumprir a vontade de Deus, as exigências da vocação a que cada qual foi chamado. Diz‑nos que segui‑lo de perto pela fidelidade à vocação significa compartilhar a sua vida em tal grau de intimidade que daí resulta um vínculo mais forte que o familiar5. São Tomás explica‑o dizendo que “todo o fiel que cumpre a vontade do Pai, isto é, que lhe obedece, é irmão de Cristo, porque é semelhante Àquele que cumpriu a vontade do Pai. E quem não se limita a obedecer, mas também converte outras pessoas, gera Cristo neles, e assim chega a ser como a Mãe de Cristo”6.
O vínculo que deriva de se ter o mesmo sangue é muito forte, mas aquele que resulta de se seguir o Senhor por um mesmo caminho é mais forte ainda. Não há nenhuma relação humana, por mais estreita que seja, que se assemelhe à nossa união com Jesus e com aqueles que o seguem.

– Devemos ter o necessário desprendimento e independência para levarmos a bom termo a nossa vocação.

II. QUEM É A MINHA MÃE…? “Será que, com essa pergunta, Cristo se afasta daquela que foi a sua mãe segundo a carne? Quererá deixá‑la na sombra desse ocultamento que Ela mesmo escolheu? Se assim pode parecer devido ao sentido literal dessas palavras, devemos observar no entanto que a maternidade nova e diferente de que Jesus fala aos seus discípulos refere‑se precisamente a Maria de um modo especialíssimo”7.
Maria é amada por Jesus de modo absolutamente singular por causa do vínculo de sangue pelo qual Maria é sua Mãe segundo a carne. Mas Jesus ama‑a mais e está mais estreitamente ligado a Ela pelos laços da delicada fidelidade que a unem à sua vocação, ao seu perfeito cumprimento da vontade divina. Por isso a Igreja recorda‑nos que a Santíssima Virgem “acolheu plenamente as palavras com que o seu Filho – exaltando o Reino por cima das raças e dos vínculos da carne e do sangue – proclamou bem‑aventurados os que ouvem e guardam a palavra de Deus, tal como Ela mesmo o fazia fielmente”8.
A nossa vocação faz‑nos amar humana e sobrenaturalmente os pais, os filhos, os irmãos; Deus dilata e afina o nosso coração. Mas, ao mesmo tempo, pede‑nos a necessária independência e desprendimento de qualquer laço, para levarmos a cabo o que Ele quer de cada um: que sigamos a chamada única e irrepetível que nos dirigiu, ainda que às vezes, por razões compreensíveis, isso possa causar dor àqueles a quem mais queremos na terra. Não podemos esquecer que Maria e José, que há três dias buscavam o Menino perdido no Templo, não compreenderam a explicação que Jesus lhes deu9, apesar de Maria ser a cheia de graça e José justo, plenamente compenetrados com Deus. Puderam entendê‑la mais tarde – Maria num grau mais profundo –, à medida que os acontecimentos do seu Filho se iam desenvolvendo. Não nos deve surpreender, portanto, que às vezes os nossos parentes não nos entendam.
Que alegria pertencer com laços tão fortes à nova família de Jesus! Como devemos amar e ajudar os que nos estão fortemente unidos pelos vínculos da fé e da vocação! Então entendemos as palavras da Escritura: Frater qui adiuvatur a fratre quasi civitas firma10, o irmão, ajudado pelo seu irmão, é como uma cidade amuralhada. Nada pode abalar a caridade e a fraternidade bem vividas. “O poder da caridade! – A vossa mútua fraqueza é também apoio que vos mantém erguidos no cumprimento do dever, se viveis a vossa bendita fraternidade: como mutuamente se sustêm, apoiando‑se, as cartas do baralho”11.

– Maria, Mãe dessa nova família de Jesus que é a Igreja, é também Mãe de cada um de nós.

III. TODO AQUELE QUE FAZ a vontade de meu Pai, que está nos céus, esse é meu irmão e irmã e mãe. Do lugar em que se encontrava, Maria ouviu provavelmente essas palavras, ou talvez alguém lhas tenha repetido a seguir. Ela bem sabia dos laços profundos que a uniam Àquele que queria ver: vínculos resultantes da natureza, e outros, mais profundos ainda, derivados da sua perfeita união com a Santíssima Trindade.
Ela sabia também, de um modo cada vez mais perfeito, que fora chamada desde a eternidade para ser a Mãe dessa nova família que se ia formando em torno de Jesus. Por meio da fé, correspondeu à chamada que Deus lhe dirigia para ser a Mãe do seu Filho, e, “na mesma fé, descobriu e acolheu a outra dimensão da maternidade, revelada por Jesus no decorrer da sua missão messiânica. Pode‑se afirmar – diz o Papa João Paulo II – que esta dimensão da maternidade era possuída por Maria desde o início, isto é, desde o momento da concepção e do nascimento do Filho. Desde então, Ela foi «aquela que acreditou». Mas, à medida que se ia esclarecendo aos seus olhos e no seu espírito a missão do Filho, Ela própria, como Mãe, ia‑se abrindo cada vez mais àquela «novidade» da maternidade que devia constituir o seu «papel» junto do Filho”12.
Mais tarde, no Calvário, descerrou‑se por completo o véu do mistério da sua maternidade espiritual sobre aqueles que ao longo dos séculos haviam de crer em Jesus: Eis aí o teu filho13, disse‑lhe Jesus apontando para João. E nele estávamos representados todos os homens. Essa maternidade estende‑se de modo particular a todos os batizados e aos que estão a caminho da fé, porque Maria é Mãe da Igreja inteira14, da grande família do Senhor que se prolonga através dos tempos.
Existe uma particular correspondência entre o momento da Encarnação do Filho de Deus e o nascimento da Igreja no dia de Pentecostes, e “a pessoa que une esses dois momentos é Maria: Maria em Nazaré e Maria no Cenáculo de Jerusalém. Em ambos os casos, a sua presença discreta, mas essencial, indica o caminho do «nascimento do Espírito». Assim, Aquela que esteve presente no mistério de Cristo como Mãe, tornou‑se – por vontade do Filho e por obra do Espírito Santo – presente no mistério da Igreja”15.
A presença de Maria na Igreja é uma presença materna, e assim como numa família a relação de maternidade e de filiação é única e irrepetível, assim a nossa relação com a Mãe do Céu é única e diferente para cada cristão. E da mesma forma que João a acolheu em sua casa, cada cristão deve entrar “no raio de ação daquela «caridade materna»”16.
Maria ama‑nos a cada um de nós como se fôssemos o seu único filho, e desvela‑se pela nossa santidade e pela nossa salvação como se não tivesse outros filhos na terra. Devemos chamá‑la Mãe muitas vezes! E agora, ao terminarmos este tempo de oração, dizemos‑lhe na intimidade da nossa alma: Minha Mãe, não me abandones! Ajuda‑me a estar sempre junto do teu Filho e a viver muito unido àqueles a quem estou ligado pelos laços da fraternidade sobrenatural, teus filhos também.
(1) Mt 12, 46‑50; (2) Lc 11, 27‑28; (3) Lc 2, 49; (4) João Paulo II, Enc. Redemptoris Mater, 25‑III‑1987, 20; (5) cfr. Sagrada Bíblia, Santos Evangelhos, nota a Mc 4, 31‑35; (6) São Tomás, Comentário sobre o Evangelho de São Mateus, 12, 49‑50; (7) João Paulo II, op. cit.; (8) Conc. Vat. II, Const. Lumen gentium, 58; (9) Lc 2, 50; (10) Prov 18, 19; (11) Josemaría Escrivá, Caminho, n. 462; (12) João Paulo II, op. cit.; (13) Jo 19, 26; (14) cfr. C. Pozo, Maria en la obra de la salvación, BAC, Madrid, 1974, págs. 61‑62; (15) João Paulo II, op. cit., 24; (16) ib.

Fonte: livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal.