TEMPO COMUM. SÉTIMA SEMANA. TERÇA-FEIRA
– O Salmo da realeza e do triunfo de Cristo.
– A não aceitação de Deus no mundo.
– A filiação divina.
I. DURANTE MUITAS GERAÇÕES, os salmos foram um caminho da alma para pedir ajuda a Deus, para agradecer-lhe, louvá-lo, pedir-lhe perdão. O próprio Senhor quis utilizar um salmo para se dirigir ao seu Pai celestial nos últimos momentos da sua vida na terra 1. Esses textos foram as principais orações das famílias hebraicas; a Virgem Maria e São José deviam rezá-los com imensa piedade. Jesus aprendeu-os de seus pais e, ao torná-los próprios, deu-lhes a plenitude do seu significado. A liturgia utiliza-os diariamente na Santa Missa; e eles constituem a parte principal da oração que os sacerdotes elevam cada dia a Deus – a Liturgia das Horas –, em nome de toda a Igreja.
O Salmo II sempre foi contado entre os salmos messiânicos. Os Padres da Igreja e os escritores eclesiásticos comentaram-no muitas vezes 2, e os seus versículos alimentaram a piedade de muitos fiéis. Os primeiros cristãos recorriam a ele para acharem fortaleza e coragem no meio das adversidades.
Os Atos dos Apóstolos deixaram-nos um testemunho dessa oração ao narrarem como Pedro e João foram conduzidos ao Sinédrio e presos por terem curado, no nome de Jesus, um paralítico que pedia esmola à porta do Templo 3. Quando foram milagrosamente libertados – diz o relato –, voltaram para os seus irmãos e contaram-lhes tudo o que acontecera, e todos juntos elevaram a Deus uma oração que teve por eixo este salmo da realeza de Cristo. Rezaram assim: Senhor, foste tu que fizeste o céu e a terra, o mar e tudo o que neles se contém; tu que por boca do nosso pai Davi, teu servo, disseste: “Por que se amotinam as nações e os povos maquinam planos vãos? Sublevam-se os reis da terra e os príncipes coligam-se contra o Senhor e contra o seu Ungido” 4.
As palavras que o salmista dirige a Deus contemplando a situação do seu tempo foram palavras proféticas que se verificaram no tempo dos Apóstolos e ao longo dos séculos de vida da Igreja, e que se verificam nos nossos dias. Também nós podemos repetir com total realismo: Por que se amotinam as nações e os povos maquinam planos vãos?… Por que tanto ódio e tanto mal? Por que tanta rebeldia?
Desde o pecado original, essa luta não cessou um momento sequer: os poderosos do mundo aliam-se contra Deus e contra o que é de Deus. Basta ver como a dignidade da criatura humana é conculcada em tantos lugares, como se multiplicam as calúnias, as difamações, os meios de comunicação a serviço do mal, o aborto de centenas de milhares de criaturas que não puderam optar pela vida humana e pela vida sobrenatural para a qual Deus as havia destinado, tantos ataques contra a Igreja, contra o Sumo Pontífice e contra aqueles que querem ser fiéis à fé…
Mas Deus é mais forte. Ele é a Rocha 5. A Ele recorreram Pedro e João e aqueles que estavam reunidos com eles naquele dia em Jerusalém. E, quando terminou aquela oração – diz-nos São Lucas –, todos se sentiram reconfortados e cheios do Espírito Santo, e anunciavam com toda a liberdade a palavra de Deus 6.
Na meditação do Salmo II, podemos nós encontrar fortaleza para vencer os obstáculos que podem apresentar-se num ambiente afastado de Deus.
II. DIRUMPAMUS VINCULA EORUM… Quebremos, disseram, as suas cadeias, e sacudamos de nós o seu jugo7. É o que parece repetir um clamor geral. “Quebram o jugo suave, sacodem das costas a sua carga, maravilhosa carga de santidade e justiça, de graça, de amor e paz. Enfurecem-se diante do amor, riem-se da bondade inerme de um Deus que renuncia ao uso das suas legiões de anjos para se defender (cfr. Jo 18, 36)” 8.
Mas aquele que habita nos céus ri-se, o Senhor zomba deles. Ele lhes falará então na sua indignação e os encherá de terror com a sua ira 9. O castigo divino não tem lugar somente na vida futura. Apesar dos aparentes triunfos de muitos que se declaram ou comportam como inimigos de Deus, o seu maior fracasso, se não se arrependem, consistirá em não compreenderem nem alcançarem jamais a verdadeira felicidade. As suas satisfações humanas – ou infra-humanas – podem ser o triste prêmio para as migalhas de bem que talvez tenham realizado nesta vida. Nada mais têm a esperar além disso, pois, como afirmam alguns santos, “o caminho do inferno já é um inferno”.
Comentando estes versículos do Salmo, Santo Agostinho salienta que também se pode entender por ira de Deus a cegueira da mente que se apodera daqueles que transgridem a lei divina 10. Não há nenhuma desgraça comparável à de não se conhecer a Deus, de se viver afastado dEle, de se procurar a auto-afirmação no erro e no mal.
O Papa João Paulo II indicava como sinal característico do nosso tempo precisamente essa cegueira, isto é, a recusa da misericórdia divina. Todos temos presente a imagem de tantos homens que se fecham aos sentimentos de misericórdia do Senhor, que consideram a remissão dos seus pecados “não essencial ou sem importância para a sua vida”, e que adquirem uma “impermeabilidade de consciência, um estado de ânimo que se poderia dizer consolidado em função de uma livre escolha: é o que a Sagrada Escritura costuma chamar dureza de coração. Nos nossos tempos, esta atitude da mente e do coração corresponde talvez à perda do sentido do pecado” 11.
Nós, que desejamos seguir a Cristo de perto, temos o dever de desagravar a Deus por essa rejeição violenta que sofre por parte de tantos homens, suplicando-lhe abundância de graça e de misericórdia. Peçamos-lhe que nunca deixe esgotar-se a sua clemência, que é para muitos como o último cabo a que se pode agarrar o náufrago que já havia recusado outros meios de salvação.
III. DIANTE DAS PROFUNDAS interrogações que a liberdade humana, o mistério do mal e a rebelião da criatura suscitam, o Salmo II dá a solução proclamando a realeza de Cristo, para além do mal que existe ou pode existir: Eu, porém, constituí o meu rei sobre Sião, meu monte santo. Promulgarei o decreto do Senhor. O Senhor disse-me: “Tu és meu filho; eu te gerei hoje” 12.
“A misericórdia de Deus Pai deu-nos por Rei o seu Filho. Quando Ele ameaça, ao mesmo tempo se enternece: anuncia-nos a sua ira e entrega-nos o seu amor. Tu és meu filho: dirige-se a Cristo e dirige-se a ti e a mim, se estamos decididos a ser alter Christus, ipse Christus, outro Cristo, o próprio Cristo.
“As palavras não conseguem acompanhar o coração, que se emociona perante a bondade de Deus. Ele nos diz: Tu és meu filho. Não um estranho, não um servo benevolamente tratado, não um amigo, o que já seria muito. Filho!” 13 Este é o nosso refúgio: a filiação divina. Nela encontramos a coragem necessária para enfrentarmos as adversidades: as que procedem de um ambiente às vezes hostil à vida cristã, e as que resultam das tentações que o Senhor permite para que reafirmemos a nossa fé e o nosso amor.
Sempre encontramos a Deus, nosso Pai, muito perto de cada um de nós. A sua presença é “como um aroma penetrante que se espalha por toda a parte, tanto no interior dos corações que o aceitam, como no exterior, na natureza, nas coisas, no meio de uma multidão. Deus está ali, esperando ser descoberto, ser chamado, ser tido em conta […]” 14.
Pede-me, e eu te darei as nações por herança, e em teu domínio as extremidades da terra 15. Deus incita-nos constantemente: Pede-me! Os seus desejos são dar e dar-se a cada um de nós. São João Crisóstomo comenta estas palavras e ensina que já não nos é prometida uma terra de que brotam leite e mel, nem uma vida longa, nem uma multidão de filhos, nem trigo, nem vinho, nem rebanhos, mas o Céu e os bens do Céu: a filiação divina e o Unigênito como irmão, e a participação na sua herança, e a glorificação com Ele 16.
Tu as governarás com vara de ferro, e qual vaso de oleiro as quebrarás. E agora, ó reis, entendei; deixai-vos instruir, vós que governais a terra. Servi o Senhor com temor e louvai-o com tremor 17. Cristo triunfou de uma vez para sempre. Com a sua morte na Cruz, ganhou-nos a vida. Segundo o testemunho dos Padres da Igreja, avara de ferro é a Santa Cruz, “cuja matéria é de madeira, mas cuja força é de ferro” 18. É o sinal do cristão, com o qual venceremos todas as batalhas; os obstáculos se desfarão como vasos de oleiro. A Cruz na nossa inteligência, nos nossos lábios, no nosso coração, em todas as nossas obras: esta é a arma para vencer; uma vida sóbria, mortificada, sem fugir do sacrifício amável que nos une a Cristo.
O Salmo termina com uma chamada para que nos mantenhamos fiéis ao nosso caminho e à confiança no Senhor: Prestai-lhe vassalagem, para que não se indigne e pereçais fora do caminho, quando em breve se acender a sua cólera. Bem-aventurados todos os que nEle confiam 19. Nós pusemos no Senhor toda a nossa confiança.
Pedimos aos Santos Anjos da Guarda, fiéis servidores de Deus, que nos ajudem a perseverar cada dia com maior fidelidade e amor na nossa vocação de cristãos, servindo com todas as forças o reinado de Cristo no lugar em que Ele nos chamou.
(1) Cfr. Mt 27, 46; (2) cfr. I. Dominguez, El Salmo 2, Palabra, Madrid, 1977; (3) At 4, 23-31; (4) cfr. At 4, 23-26; (5) 1 Cor 10, 4; (6) cfr. At 4, 29-31; (7) Sl 2, 3; (8) São Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, n. 185; (9) Sl 2, 4-5; (10) cfr. Santo Agostinho, Comentário aos Salmos, 2, 4; (11) João Paulo II, Enc. Dominum et vivificantem, 18-V-1986, 46-47; (12) Sl 2, 6-7; (13) São Josemaría Escrivá, op. cit.; (14) M. Eguibar, Por qué se amotinan las gentes? (Salmo II), págs. 27-28; (15) Sl 2, 8; (16) cfr. São João Crisóstomo, Homilias sobre São Mateus, 16, 5; (17) Sl 2, 9-11; (18) Santo Atanásio, Comentário aos Salmos, 2, 6; (19) Sl 2, 12.
Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal