TEMPO COMUM. TRIGÉSIMA SEMANA. TERÇA-FEIRA

– O sentido da nossa filiação divina.
– Filhos no Filho.
– Conseqüências da filiação divina.

I. LEMOS NO SALMO II estas palavras que se aplicam em primeiro lugar ao Messias: O Senhor disse-me: “Tu és o meu filho, Eu hoje te gerei” 1. Desde a eternidade, o Pai gera o Filho, e todo o ser da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade consiste na filiação, em ser Filho. O hoje mencionado pelo Salmo significa um sempre contínuo, eterno, pelo qual o Pai dá o ser ao seu Unigênito 2.

Para que exista uma filiação, no sentido preciso da palavra, requere-se igualdade de natureza 3. Por isso, somente Jesus Cristo é o Unigênito do Pai. Em sentido amplo, pode-se dizer que todas as criaturas, especialmente as espirituais, são filhas de Deus, ainda que com uma filiação muito imperfeita, pois a semelhança que têm com o Criador não é, de modo nenhum, identidade de natureza.

No entanto, com o Batismo, produziu-se na nossa alma uma regeneração, um novo nascimento, uma elevação sobrenatural, que nos fez participantes da natureza divina. Esta elevação sobrenatural deu origem a uma filiação divina imensamente superior à filiação humana própria de cada criatura. São João, no prólogo do seu Evangelho, diz-nos que a todos os que o receberam (a Cristo), deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus, àqueles que crêem no seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus4. “O Filho de Deus fez-se homem – explica Santo Atanásio – para que os filhos do homem, os filhos de Adão, se fizessem filhos de Deus […]. Ele é o Filho de Deus por natureza; nós, por graça” 5.

A filiação divina ocupa um lugar central na mensagem de Jesus Cristo e é um ensinamento contínuo na pregação da Boa Nova cristã, como sinal eloqüente do amor de Deus pelos homens. Considerai que amor nos mostrou o Pai – escreve São João – em querer que sejamos chamados filhos de Deus, e que o sejamos na realidade 6. Esta condição de filhos, ainda que deva ter a sua plenitude no Céu, é já nesta vida uma realidade gozosa e cheia de esperança. Como nos diz São Paulo numa das Leituras da Missa de hoje, este mundo criado espera ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus… porque sabemos que todas as criaturas gemem e estão como que com dores de parto até agora. E não só elas, mas também nós mesmos, que temos as primícias do Espírito, também nós gememos no nosso interior, esperando a adoção de filhos de Deus… 7 O Apóstolo refere-se à plenitude dessa adoção, pois já nesta terra fomos constituídos filhos de Deus, que é a nossa maior glória e o maior dos nossos títulos: Portanto, já nenhum de vós é servo, mas filho; e se é filho, também é herdeiro 8.

As palavras que desde a eternidade o Pai aplica ao seu Unigênito, são atribuídas agora a cada um de nós. O Senhor diz-nos: Tu és o meu filho, Eu hoje te gerei. Este hoje é a nossa vida terrena, pois todos os dias o Senhor nos dá esse novo ser. “Diz-nos: Tu és o meu filho. Não um estranho, não um servo benevolamente tratado, não um amigo, o que já seria muito. Filho! Concede-nos livre trânsito para vivermos com Ele a piedade de filhos e também – atrevo-me a afirmar – a desvergonha de filhos de um Pai que é incapaz de lhes negar seja o que for” 9.

II. TU ÉS O MEU FILHO… O Senhor falou constantemente desta realidade aos seus discípulos. Umas vezes diretamente, ensinando-os a dirigir-se diretamente a Deus como Pai10,

apresentando-lhes a santidade como imitação filial do Pai 11…; e também por meio de numerosas parábolas, nas quais Deus é representado pela figura do pai12.

A filiação divina não consiste somente em que Deus nos tenha querido tratar como um pai aos seus filhos e em que nós nos dirijamos a Ele com a confiança dos filhos. Não é um simples grau mais elevado na linha dessas filiações que, num sentido amplo, todas as criaturas têm em relação a Deus, conforme a sua maior ou menor semelhança com o Criador. Isto já seria um dom imenso, mas o amor de Deus foi muito mais longe e fez-nos realmente filhos seus. Enquanto essas outras filiações são na realidade modos de expressão, a nossa filiação divina é filiação em sentido estrito, embora nunca possa ser como a de Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus. Para o homem, não pode haver nada maior, nada mais impensável e mais inalcançável, do que esta relação filial13.

A nossa filiação é uma participação na plena filiação exclusiva e constitutiva da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. “Desta filiação natural – explica São Tomás de Aquino –, deriva para muitos a filiação por certa semelhança e participação” 14. É a partir desta filiação que entramos em intimidade com a Santíssima Trindade: é uma verdadeira participação na vida do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

No que se refere à nossa relação com as divinas Pessoas, pode-se, pois, dizer que somos filhos do Pai no Filho pelo Espírito Santo15. “Mediante a graça recebida no Batismo, o homem participa do eterno nascimento do Filho a partir do Pai, porque é constituído filho adotivo de Deus: filho no Filho”16. “Ao sair das águas da sagrada fonte, todo o cristão ouve de novo aquela voz que um dia se fez ouvir nas margens do rio Jordão: Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus todo o meu enlevo (Lc 3, 22), e compreende ter sido associado ao Filho predileto, tornando-se filho adotivo (cfr. Gál 4, 4-7) e irmão de Cristo” 17.

A filiação divina deve estar presente em todos os momentos do nosso dia, mas deve manifestar-se sobretudo se alguma vez sentimos com mais força a dureza da vida.

“Parece que o mundo desaba sobre a tua cabeça. À tua volta, não se vislumbra uma saída. Impossível, desta vez, superar as dificuldades.

“Mas tornaste a esquecer que Deus é teu Pai? Onipotente, infinitamente sábio, misericordioso. Ele não te pode enviar nada de mau. Isso que te preocupa, é bom para ti, ainda que agora os teus olhos de carne estejam cegos.

Omnia in bonum! Tudo é para bem! Senhor, que outra vez e sempre se cumpra a tua sapientíssima Vontade!” 18

III. A FILIAÇÃO DIVINA não é um aspecto entre muitos da vocação do cristão: de algum modo, abarca todos os outros. Não é propriamente uma virtude que tenha os seus atos particulares, mas uma condição permanente do batizado que vive a sua vocação. A piedade que nasce dessa nova condição do homem que segue os passos de Jesus “é uma atitude profunda da alma, que acaba por informar a existência inteira: está presente em todos os pensamentos, em todos os desejos, em todos os afetos” 19. Se considerarmos atentamente os desígnios de Deus, podemos dizer que todos os dons e graças nos foram dados para nos constituírem como filhos de Deus, como imitadores do Filho até chegarmos a ser alter Christus, ipse Christus 20, outro Cristo, o próprio Cristo.

Cada vez temos de parecer-nos mais com Cristo. A nossa vida deve refletir a sua. Por isso a filiação divina deve ser objeto da nossa oração e das nossas reflexões com muita freqüência.

Assim a nossa alma virá a encher-se de paz no meio das maiores tentações ou contratempos, pois viveremos abandonados nas mãos de Deus. Um abandono que não nos dispensará do empenho por melhorar, nem de empregar todos os meios humanos ao nosso alcance para lutar contra a doença, a penúria econômica, a solidão…, mas que nos dará paz no meio dessa luta. A vida dos santos, mesmo no meio de muitas provas, sempre esteve cheia dessa serenidade, como deve estar a nossa.

A filiação divina é também o fundamento da fraternidade cristã, que está acima do vínculo de solidariedade que existe entre os homens. Nos outros, devemos ver filhos de Deus, irmãos de Jesus Cristo, chamados a um destino sobrenatural. Desta maneira, ser-nos-á fácil prestar-lhes essas pequenas ajudas diárias de que todos necessitamos e, sobretudo, indicar-lhes amavelmente o caminho que leva ao Pai comum.

A nossa Mãe Santa Maria ensinar-nos-á a saborear essas palavras do Salmo II que líamos no começo desta meditação, e a considerá-las como realmente dirigidas a cada um de nós: Tu és o meu filho, Eu hoje te gerei.

(1) Sl 2, 7; (2) cfr. João Paulo II, Audiência geral, 16.10.85; (3) cfr. São Tomás de Aquino, Suma teológica, III, q. 32, a. 3 c; (4) Jo 1, 12-13; (5) Santo Atanásio, De Incarnatione contra arrianos, 8; (6) 1 Jo 3, 1; (7) Rom 8, 19-23; (8) Gál 4, 7; (9) Bem-aventurado Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, n. 185; (10) cfr. Mt 6, 9; (11) cfr. Mt 5, 48; (12) cfr. J. Bauer, Diccionario de teologia biblica, Herder, Barcelona, 1967, verbete Filiación; (13) cfr. M. C. Calzona, Filiación divina y cristiana en el mundo, em La misión del laico en la Iglesia y en el mundo, EUNSA, Pamplona, 1987, pág. 301; (14) São Tomás de Aquino, Comentário ao Evangelho de São João, 1, 8; (15) cfr. Fernando Ocáriz, Hijos de Dios en Cristo, EUNSA, Pamplona, 1972, pág. 98; (16) João Paulo II, Homilia, 23.03.80; (17) João Paulo II, Exortação Apostólica Christifideles laici, 30.12.88, 11; (18) São Josemaría Escrivá, Via Sacra, IXª estação, n. 4; (19) São Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, n. 146; (20) São Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, n. 96.

Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal