TEMPO COMUM. QUARTA SEMANA. SEXTA-FEIRA

– O exemplo dos mártires. O nosso testemunho de cristãos correntes. A virtude da fortaleza.
– Fortaleza para seguirmos o Senhor, para sermos fiéis nos pormenores, para vivermos o desprendimento efetivo dos bens, para sermos pacientes.
– Heroísmo na vida simples e normal do cristão. Exemplaridade.

I. O EVANGELHO DA MISSA de hoje relata-nos o martírio de João Batista1, que foi fiel à missão recebida de Deus, ao ponto de dar a vida por ela. Se tivesse permanecido calado ou à margem dos acontecimentos nos momentos difíceis, não teria morrido degolado no calabouço de Herodes. Mas João não era como uma cana agitada por qualquer vento. Foi coerente até o fim com a sua vocação e com os princípios que davam sentido à sua existência. O sangue que derramou – e depois dele os mártires de todos os tempos – unir-se-ia ao Sangue redentor de Cristo para nos dar um exemplo d e amor e de firmeza na fé, de valentia e de fecundidade.

O martírio é a maior expressão da virtude da fortaleza e o testemunho supremo de uma verdade que se confessa até dar a vida por ela. O exemplo do mártir “traz-nos à memória que se deve à fé um testemunho […] pessoal, preciso e – se chegar o caso – custoso, intrépido; recorda-nos, enfim, que o mártir de Cristo não é um herói estranho, mas é para nós, é nosso”2; ensina-nos que todo o cristão deve estar disposto a renunciar à sua própria vida, se for necessário, em testemunho da sua fé.

Os mártires não são apenas um exemplo incomparável que nos vem do passado; a nossa época atual também é tempo de mártires, de perseguição, mesmo sangrenta. “As perseguições pela fé são hoje muitas vezes semelhantes às que o martirológio da Igreja registrou durante os séculos pretéritos. Elas assumem diversas formas de discriminação dos fiéis e de toda a comunidade da Igreja […].

“Há hoje centenas e centenas de milhares de testemunhas da fé, muito freqüentemente desconhecidas ou esquecidas pela opinião pública, cuja atenção está absorvida por outros fatos; com freqüência só Deus as conhece. Elas suportam privações diárias nas mais diversas regiões de cada um dos continentes.

“Trata-se de fiéis obrigados a reunir-se clandestinamente porque a sua comunidade religiosa é considerada ilegal. Trata-se de bispos, de sacerdotes, de religiosos a quem se proíbe o exercício do santo ministério nas suas igrejas ou em reuniões públicas […].

“Trata-se de jovens generosos, a quem se impede de entrar num seminário ou num local de formação religiosa para realizarem aí a sua própria vocação […]. Trata-se de pais a quem se nega a possibilidade de assegurarem aos seus filhos uma educação inspirada na sua fé.

“Trata-se de homens e mulheres, trabalhadores manuais, intelectuais e de todas as profissões que, pelo simples fato de professarem a sua fé, enfrentam o risco de se verem privados de um futuro brilhante para as suas carreiras ou estudos”3.

Quanto à maioria dos cristãos, o Senhor não lhes pede que derramem o seu sangue em testemunho da fé que professam. Mas exige de todos uma firmeza análoga que os leve a proclamar a verdade com a vida e com a palavra em ambientes que podem ser difíceis e hostis aos ensinamentos de Cristo, e a viver plenamente as virtudes cristãs no meio do mundo, nas circunstâncias em que a vida os colocou. Este é o caminho que deverão percorrer e em que deverão ser igualmente heroicos.

O cristão de hoje necessita particularmente da virtude da fortaleza, que, além de ser humanamente atraente, é imprescindível em face da mentalidade materialista de muitos, do comodismo e do horror por tudo o que supõe mortificação, renúncia ou sacrifício… Qualquer ato de virtude inclui um ato de coragem, de fortaleza; sem ela, não se pode ser fiel a Deus.

São Tomás ensina4 que esta virtude tem duas vertentes; por um lado, leva-nos a acometer o bem sem nos determos perante as dificuldades e perigos que possa ocasionar; por outro, a resistir aos males e dificuldades de modo a não cairmos na tristeza. No primeiro caso, encontram o seu campo próprio de atuação as virtudes da coragem e da audácia; no segundo, a paciência e a perseverança. São virtudes que temos ocasião de praticar todos os dias, em ponto pequeno talvez, mas constantemente. Somos heroicos em aproveitar essas oportunidades?

II. PÔR A META da nossa vida em seguir o Senhor de perto e progredir sempre nesse seguimento já requer fortaleza, porque a imitação de Jesus Cristo nunca foi uma tarefa cômoda; é um ideal alegre, extremamente alegre, mas sacrificado. E depois da primeira decisão, vem a de cada momento, a de cada dia. O cristão deve ser forte para empreender o caminho da santidade e para reempreendê-lo a cada uma das suas etapas, para perseverar sem amolecer, apesar de todos os obstáculos externos e internos que possam apresentar-se.

Necessitamos de fortaleza para ser fiéis nas pequenas coisas de cada dia, que são, em última análise, as que nos aproximam ou nos afastam de Deus. Essa atitude de firmeza manifesta-se no trabalho, na vida familiar, perante a dor e a doença, diante dos possíveis desânimos que tirariam a paz se não houvesse um esforço decidido por superá-los, apoiados sempre na consideração de que Deus é nosso Pai e permanece junto de cada um dos seus filhos.

Precisamos da virtude da fortaleza para evitar que nos extraviemos, para deixar de lado as bugigangas da terra, não permitindo que o coração se apegue a elas. Muitos cristãos parecem ter esquecido que Cristo é verdadeiramente o tesouro escondido, a pérola preciosa5, por cuja posse vale a pena não encher o coração de bens minúsculos e relativos, pois “quem conhece as riquezas de Cristo Nosso Senhor, despreza por elas todas as coisas; para esse homem, as posses, as riquezas e as honras são como lixo. Porque não há nada que se possa comparar àquele supremo tesouro, nem que se possa trazer à sua presença”6. Para estarmos realmente desprendidos dos bens que devemos utilizar e não os convertermos em fins, devemos ser fortes.

A virtude da fortaleza leva-nos também a ser pacientes perante os acontecimentos e notícias desagradáveis e perante os obstáculos que se apresentam todos os dias. Não é próprio de um cristão que vive na presença de seu Pai-Deus, andar com um aspecto azedo, mal-humorado ou triste por causa de uma espera que se prolonga, de uns planos que tem de mudar à última hora, ou de um pequeno (ou grande) fracasso.

A paciência leva-nos a ser compreensivos com os outros, quando parece que não melhoram ou não põem todo o interesse em corrigir-se, e a tratá-los sempre com caridade, com apreço humano e sentido sobrenatural. Quem tem ao seu cuidado a formação de outras pessoas (pais, mestres, superiores…) necessita particularmente desta virtude, porque “governar, muitas vezes, consiste em saber «ir puxando» pelas pessoas, com paciência e carinho”7.

Para fazermos o nosso exame nesta matéria, há de servir-nos de muito este conselho: “Nas relações com os que te cercam, tens de conduzir-te cada dia com muita compreensão, com muito carinho, juntamente – é claro – com toda a energia necessária: de outro modo, a compreensão e o carinho se convertem em cumplicidade e egoísmo”8. A caridade nunca é fraqueza, e a fortaleza, por sua vez, não deve supor uma atitude irritada, áspera e mal-humorada.

III. EM COMPARAÇÃO COM TODOS os fiéis que compõem a Igreja, são poucos aqueles a quem o Senhor pede um testemunho de fé mediante o derramamento de sangue, mas a ninguém deixa Ele de pedir a entrega da vida, pouco a pouco, com um heroísmo escondido, no cumprimento do dever, na luta por uma maior coerência com a fé cristã, exteriorizada mediante um exemplo que arraste e estimule.

Não basta viver interiormente a doutrina de Cristo: seria falsa uma fé que não tivesse manifestações externas. Os cristãos não podem dar a impressão – pela sua passividade ou por não quererem comprometer-se – de que não encaram a sua fé como o valor mais importante da sua vida ou de que não consideram os ensinamentos da Igreja como um elemento vital da sua conduta. “O Senhor necessita de almas fortes e audazes, que não pactuem com a mediocridade e penetrem com passo firme em todos os ambientes”9.

E existem épocas em que pode haver graves razões de caridade para confortarmos com o testemunho da nossa fé os que andam vacilantes: mediante uma confissão decidida e sem complexos como a de João Batista, que arraste e mova.

A honra de Deus está acima das conveniências pessoais. Não podemos permanecer passivos quando se quer colocar Deus entre parêntesis na vida pública, ou quando homens sectários pretendem confiná-lo no fundo das consciências. Não podemos estar calados quando há tantas pessoas ao nosso lado que nos olham à espera de um testemunho coerente com a fé que professamos.

Este testemunho consistirá umas vezes na exemplaridade ao longo das muitas horas de trabalho profissional, na caridade e na compreensão com todos, na alegria que revela aos demais homens uma paz nascida do relacionamento com Deus… Outras, estará na defesa serena e firme do Sumo Pontífice ou da hierarquia da Igreja, na refutação de uma doutrina errônea ou confusa… Sempre com serenidade e sem destemperos – que não fazem bem e não são próprios de um cristão –, mas com firmeza.

A fortaleza de João e a sua vida coerente são para nós um exemplo a ser imitado. Se o seguirmos nos acontecimentos diários, correntes e simples, muitos dos nossos amigos perceberão a têmpera da nossa vida e se deixarão arrastar pelo nosso testemunho sereno, assim como outrora muitos se convertiam ao contemplarem o martírio – o testemunho de fé – dos primeiros cristãos.

(1) Mc 6, 14-29; (2) Paulo VI, Alocução, 3-XI-1965; (3) João Paulo II, Meditação-oração, Lourdes, 14-VIII-1983; (4) São Tomás, Suma Teológica, 2-2, q. 123, a. 6; (5) cfr. Mt 13, 44-46; (6) Catecismo Romano, IV, 11, 15; (7) São Josemaría Escrivá, Sulco, n. 405; (8) ib., n. 803; (9) ib., n. 416.

Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal