TEMPO COMUM. TRIGÉSIMA TERCEIRA SEMANA. TERÇA-FEIRA

– O exemplo de Eleazar.
– Obstáculos à fidelidade.
– Lealdade à palavra dada e aos compromissos adquiridos.

I. NO REINADO DE ANTÍOCO, desencadeou-se uma fortís­sima perseguição contra Israel. O Templo foi profanado e introduziu-se nele o culto aos deuses gregos. Proibiu-se a celebração do sábado, e todos os meses os judeus eram obri­gados a celebrar o aniversário do rei participando dos sa­crifícios que se realizavam e comendo as carnes que se imo­lavam.

Eleazar, um venerável ancião de noventa anos, manteve-se fiel à fé dos seus pais e preferiu morrer a participar des­ses sacrifícios. Antigos amigos quiseram trazer-lhe alimentos permitidos para simular que tinha comido carnes sacrifica­das, conforme a ordem do rei. Fazendo isso – diziam-lhe —, livrar-se-ia da morte. Mas Eleazar manteve-se fiel à vida exemplar que tinha levado desde criança: Não é digno da minha idade – dizia-lhes – usar de uma tal ficção. Dela po­derá resultar que muitos jovens, julgando que Eleazar, aos noventa anos, passou para a vida dos pagãos, venham tam­bém eles a cair em erro por causa desse meu fingimento e para conservar um pequeno resto de uma vida corruptível; com isso atrairia a vergonha e a execração sobre a minha velhice. E ainda que me livrasse presentemente dos suplícios dos homens, não poderia fugir à mão do Todo-Poderoso nem na vida nem depois da morte.

Eleazar foi arrastado ao suplício e, estando a ponto de morrer, exclamou: Senhor, tu que tens a ciência santa, sabes bem que, podendo eu livrar-me da morte, sofro no meu corpo dores acerbas; mas sinto na alma alegria em padecê-las pelo temor que te tenho. O autor sagrado registra a exemplaridade da sua morte não só para os jovens, mas para toda a nação. Este relato 1 recorda-nos a fidelidade sem fissuras aos compromissos contraídos em relação à fé, para que sejamos leais ao Senhor também quando talvez fosse mais fácil en­trarmos em concessões pela pressão de um ambiente pagão hostil ou por alguma circunstância difícil em que nos encon­tremos.

São João Crisóstomo chama a Eleazar “protomártir do Antigo Testamento” 2. A sua atitude gozosa no martírio é co­mo um prelúdio daquela alegria que Jesus preconizou aos que seriam perseguidos por causa do seu nome 3. É o júbilo que o Senhor nos faz experimentar quando, por sermos fiéis à fé e à nossa vocação, temos de enfrentar contrariedades.

II. OS PRIMEIROS CRISTÃOS eram designados freqüentemente como fiéis 4. O termo nasceu em momentos de dificuldades externas, de perseguições, de calúnias e de pressão de um ambiente pagão que procurava impor a sua maneira de pensar e de viver, muito oposta à doutrina do Mestre. Ser fiel era man­ter-se firme ante esses obstáculos externos. Sê fiel até à morte — lê-se no Apocalipse —, e eu te darei a coroa da vida 5. Já antes o Apóstolo advertia: Não temas nada do que terás que sofrer. Eis que o demônio fará encarcerar alguns de vós, a fim de serdes provados; e tereis tribulação duran­te dez dias.

Isso é a vida: dez dias, um pouco de tempo. Como não havemos de permanecer fiéis se sofremos alguma contradi­ção, muitas vezes pequena? Acabaremos por envergonhar-nos da nossa fé, que tem conseqüências práticas no modo de atuar, só porque talvez alguns nos mostrem a sua discor­dância?

“É fácil – recordava São João Paulo II – ser coe­rente por um dia ou por alguns dias. Difícil e importante é ser coerente toda a vida. E fácil ser coerente no momento da exaltação, difícil sê-lo à hora da tribulação. E só pode cha­mar-se fidelidade a uma coerência que dura toda a vida” 6.

Às vezes, os obstáculos não são externos, mas interiores. A soberba é o principal deles, e, com ela, a tibieza, que nos faz perder o impulso e a alegria no seguimento de Cristo. Noutros casos, a escuridão da alma surge como conseqüên­cia da falta de vontade e da ausência de luta, ou porque Deus a permite para nos purificar. Seja qual for a causa des­sas trevas, a fidelidade consistirá muitas vezes na humildade de sermos dóceis aos conselhos recebidos na direção espiri­tual, em mantermos um diálogo vivo com o Senhor, em per­manecermos num relacionamento diário com Ele, ainda que não sintamos nenhuma alegria sensível ao fazê-lo.

“Ficaram muito gravados na minha cabeça de criança — conta São Josemaría Escrivá – aqueles sinais que, nas montanhas da minha terra, se colocavam à borda dos cami­nhos; chamaram-me a atenção uns paus altos, geralmente pintados de vermelho. Explicaram-me então que, quando a neve cai e cobre caminhos, sementeiras e pastos, bosques, penhascos e barrancos, essas estacas sobressaem como ponto de referência seguro, para que toda a gente saiba sempre por onde segue o caminho.

“Na vida interior, passa-se algo parecido. Há primaveras e verões, mas também chegam os invernos, dias sem sol e noites órfãs de lua. Não podemos permitir que a relação com Jesus Cristo dependa do nosso estado de humor, das al­terações do nosso caráter. Essas atitudes delatam egoísmo, comodismo, e evidentemente não se compadecem com o amor.

“Por isso, nos momentos de nevasca e vendaval, umas práticas piedosas sólidas – nada sentimentais -, bem arraiga­das e adaptadas às circunstâncias próprias de cada um, serão como essas estacas pintadas de vermelho, que continuam a marcar-nos o rumo, até que o Senhor decida que o sol brilhe de novo, os gelos se derretam e o coração torne a vibrar, aceso com um fogo que na realidade nunca esteve apagado: foi apenas o rescaldo oculto pela cinza de uns tempos de prova, ou de menos empenho, ou de pouco sacrifício” 7.

III. A LEALDADE DE ELEAZAR à fé dos seus pais serviu, além disso, para que muitas outras pessoas permanecessem firmes nas suas crenças e costumes. A fidelidade de um homem nunca fica isolada. São muitos os que, talvez sem o saberem expressamente, se apoiam nela. Uma das grandes alegrias que o Senhor nos fará experimentar um dia será podermos contemplar todos aqueles que permaneceram firmes na sua fé e na sua vocação por se terem apoiado na nossa sólida coerência.

A virtude humana correspondente à fidelidade é a lealda­de, essencial à convivência entre os homens. Sem um clima de lealdade, as relações e os vínculos humanos degenerariam quando muito numa mera coexistência, com o seu cortejo inexorável de insegurança e desconfiança. A vida propria­mente social não seria possível se não se desse “aquela ob­servância dos pactos sem a qual não é possível uma tranqüila convivência entre os povos” 8, feita de confiança mútua, de honestidade, de sinceridade recíproca.

Não é infeqüente que na sociedade, na empresa, nos ne­gócios…, nem sequer se ouça falar de lealdade. A mentira e a manipulação da verdade são mais uma arma que alguns utilizam com a maior desfaçatez nos meios de opinião públi­ca, na política, nos negócios… Muitas vezes, sente-se a falta de honradez no cumprimento da palavra dada e nos compro­missos livemente adquiridos. Infelizmente, vai-se mais lon­ge: comenta-se a infidelidade conjugai como se os compro­missos adquiridos diante de Deus e diante dos homens não tivessem valor algum. São coisas da vida privada, dizem; portanto, respeitemo-las. Outros, desejando aumentar as suas posses ou satisfazer os seus desejos desordenados de subir na escala social, deixam de cumprir os seus deveres familia­res, sociais ou profissionais, traindo os mais nobres e santos compromissos.

Urge que nós, os cristãos – luz do mundo e sal da terra -, procuremos ser exemplo de fidelidade e de lealdade aos compromissos adquiridos. Santo Agostinho recordava aos cristãos do seu tempo: “O marido deve ser fiel à mulher, a mulher ao marido, e ambos a Deus. E os que prometestes continência, deveis cumprir o prometido, já que não vo-lo seria exigido se não o tivésseis prometido […]. Guardai-vos de fazer trapaças nos vossos negócios. Guardai-vos da men­tira e do perjúrio” 9. São palavras que conservam plena atua­lidade.

Perseverando, com a ajuda do Senhor, nas coisas peque­nas de cada dia, conseguiremos ouvir no fim da nossa vida, com imensa felicidade, aquelas palavras do Senhor: Muito bem, servo bom e fiel, já que foste fiel em poucas coisas, dar-te-ei a intendência de muitas; entra no gozo do teu Se­nhor 10.

(1) Mac 6, 18-31; Primeira leitura da Missa da terça-feira da trigésima terceira semana do Tempo Comum, ano I; (2) São João Crisóstomo, Homília 3 sobre os santos Macabeus; (3) cfr. Mt 5, 12; (4) At 10, 45; 2 Cor 6, 15; Ef 1, 1; (5) Apoc 2, 10; (6) João Paulo II, Homília, 27.01.79; (7) São Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, n. 151; (8) Pio XII, Alocução, 24.12.40, 26; (9) Santo Agostinho, Sermão 260; (10) Mt 25, 21-23.

Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal