TEMPO COMUM. VIGÉSIMA SEGUNDA SEMANA. TERÇA‑FEIRA

– Jesus ensina a sua doutrina com poder e força divinos.
– Ao lermos o Evangelho, é Jesus quem nos fala, ensina e consola.
– Como encontrá‑lo na leitura do Evangelho.

I. OS EVANGELISTAS aludem muitas vezes à surpresa que a doutrina de Jesus e os seus prodígios1 causavam nas pessoas e nos próprios discípulos, os quais sentiam até certo receio de interrogá‑lo…2 Era um temor reverencial suscitado pela majestade de Cristo, bem patente nas suas palavras e obras, e que se apoderava das multidões e as cativava. São Lucas relata‑nos no Evangelho da Missa3 que, depois de Jesus ter curado um endemoninhado, todos ficaram atemorizados e diziam uns aos outros: Que palavra é esta, que manda com autoridade e poder aos espíritos imundos e eles saem? E São Marcos diz em outra ocasião que as pessoas estavam admiradas da sua doutrina, pois ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas4. Através da Humanidade de Cristo, quem falava era a Segunda Pessoa da Trindade, e as multidões, conscientes do seu extraordinário poder, tentavam identificá‑lo recorrendo aos nomes e às hierarquias mais altas que conheciam. Será João Batista, Elias, Jeremias ou algum dos Profetas?5 Ficaram muito aquém.

O povo que escutava Jesus percebeu com clareza a diferença radical que havia entre o modo de ensinar dos escribas e fariseus e a segurança e força com que Jesus declarava a sua doutrina. Jesus não expõe uma mera opinião nem dá mostras da menor insegurança ou dúvida6. Não fala em nome de Deus, como o faziam os Profetas; não é mais um Profeta. Fala em nome próprio: Eu vos digo… Ensina os mistérios de Deus e como devem ser as relações entre os homens, e confirma os seus ensinamentos com milagres; explica a sua doutrina com simplicidade e com poder porque fala daquilo que viu7, e não necessita de longos raciocínios. “Não prova nada, não se justifica, não argumenta. Ensina. Impõe‑se, porque a sabedoria que dEle emana é irresistível. Quando se consegue apreciar essa sabedoria, quando se possui o coração suficientemente puro para avaliá‑la, sabe‑se que não pode existir outra. Não se sente a necessidade de comparar, de estudar. Vê‑se.

“Vê‑se que Ele é o absoluto; vê‑se que diante dEle tudo é pó; vê‑se que Ele é a Vida. Assim como as estrelas se apagam quando surge o sol, assim acontece com todas as sabedorias e todas as escolas. Senhor, a quem iríamos? Tu tens palavras de vida eterna”8.

Jesus continua a falar a cada um de nós, pessoalmente, na intimidade da oração, e de uma maneira palpável quando lemos o Evangelho… Temos que aprender a fazê‑lo projetando os seus ensinamentos e apelos sobre o pano de fundo do nosso viver cotidiano.

“Quando abrires o Santo Evangelho, pensa que não só deves saber, mas viver o que ali se narra: obras e ditos de Cristo. Tudo, cada ponto que se relata, foi registrado, detalhe por detalhe, para que o encares nas circunstâncias concretas da tua existência. – O Senhor chamou‑nos, a nós católicos, para que o seguíssemos de perto; e, nesse Texto Santo, encontras a Vida de Jesus; mas, além disso, deves encontrar a tua própria vida. […] pega no Evangelho diariamente, e lê‑o e vive‑o como norma concreta. – Assim procederam os santos”9.

II. A DOUTRINA DE JESUS tinha tal força e autoridade que alguns dos que o ouviam exclamavam que nunca em Israel se tinha escutado nada de parecido10. Os escribas também ensinavam ao povo o que estava escrito em Moisés e nos Profetas, comenta São Beda; mas Jesus pregava ao povo como Deus e Senhor do próprio Moisés11.

As suas palavras estavam cheias de vida, penetravam até o fundo da alma. Quando João Batista o apontou a dois dos seus discípulos como o Cordeiro de Deus, estes seguiram‑no e permaneceram com Ele naquele dia12. São João, o Evangelista que nos transmitiu os grandes diálogos de Jesus, neste momento do seu relato simplesmente cala‑se. Limita‑se a dizer que o encontraram por volta da hora décima, cerca das quatro da tarde; quando escreveu o seu Evangelho, já velho, quis unicamente deixar assinalado para sempre o momento preciso e inesquecível do seu primeiro encontro com o Mestre. O que o Senhor lhes teria dito? Só sabemos do resultado pelas palavras de André, o outro discípulo que seguiu Jesus: Encontramos o Messias!13, diz ele ao seu irmão Simão. Naquela tarde, Deus penetrou no íntimo do coração daqueles homens. O mesmo aconteceu aos que tinham sido enviados para prendê‑lo e voltaram sem Ele14Por que não o trouxestes preso?, increparam‑nos os fariseus. E eles responderam rotundamente: Nunca homem algum falou como este homem.

As palavras de Jesus encerram uma sabedoria infinita, que é entendida pelo filósofo e por aquele que não tem letras, por jovens, crianças, homens e mulheres…, por todos. Fala das coisas mais sublimes com as palavras mais simples; a sua doutrina – profunda como jamais haverá outra – está ao alcance de todos. Na sua pregação, recorre com freqüência a figuras e imagens conhecidas dos ouvintes, que dão à sua pregação uma atração e beleza incomparáveis. Os pormenores mais corriqueiros servem‑lhe para expressar os traços mais excelsos de uma doutrina nova e profundamente misteriosa e inabarcável.

Toda a vida do Senhor foi um ensinamento contínuo: “O seu silêncio, os seus milagres, os seus gestos, a sua oração, o seu amor pelo ser humano, a sua predileção pelos pequenos e pelos pobres, a aceitação do sacrifício total na Cruz pela salvação do mundo, a sua Ressurreição, são a atuação da sua palavra e o cumprimento da Revelação. Estas considerações […] reafirmam em nós o fervor de que rodeamos Cristo que revela Deus aos homens e o homem a si mesmo: Ele é o Mestre que salva, santifica e guia, que está vivo, que fala, que exige, que comove, que corrige, julga, perdoa e caminha diariamente conosco na História; o Mestre que vem e que virá na glória”15.

No Santo Evangelho, encontramos diariamente o próprio Cristo que nos fala, ensina e consola.

Quando o lemos – uns poucos minutos em seqüência cada dia –, aprendemos a conhecê‑lo cada vez melhor, a imitar a sua vida, a amá‑lo. O Espírito Santo – autor principal da Escritura Santa – ajudar‑nos‑á, se recorrermos a Ele pedindo ajuda, a ser um personagem mais na cena que lemos, a tirar dela um ensinamento, talvez pequeno, mas concreto, para esse dia.

III. “A TUA ORAÇÃO – ensina Santo Agostinho – é como uma conversa com Deus. Quando lês, Deus fala‑te; quando oras, és tu que lhe falas”16. O Senhor fala‑nos de muitas maneiras quando lemos o Santo Evangelho: dá‑nos exemplo com a sua vida, para que o imitemos na nossa; ensina‑nos como devemos comportar‑nos com os nossos irmãos; recorda‑nos que somos filhos de Deus e que nada nos deve tirar a paz. Bate‑nos à porta do coração para que saibamos perdoar essa pequena injúria que recebemos; pede‑nos que sejamos misericordiosos com os defeitos alheios, pois Ele o foi em grau supremo; incita‑nos a santificar o trabalho, realizando‑o com perfeição humana, pois foi a sua única ocupação durante tantos anos da sua vida em Nazaré…

Todos os dias podemos tirar da leitura do Evangelho um propósito, um ensinamento, um pensamento que depois nos venha à cabeça ao longo das horas de trabalho e de descanso. Esta a razão pela qual, sendo possível, é preferível reservar para esses breves minutos de leitura as primeiras horas do dia: assim poderemos “encontrar na Vida de Jesus a nossa própria vida”. Há até quem o leia de pé, recordando o velho costume dos primeiros cristãos, que aliás se mantém quando ouvimos o Evangelho na Missa.

Fará muito bem à nossa alma procurar que a leitura do Evangelho nos dê freqüentemente tema para a oração: umas vezes, porque nos introduziremos na cena como se tivéssemos visto o grupo reunido em torno de Jesus e nos aproximássemos cheios de interesse, ou como se nos detivéssemos junto à porta onde Jesus ensinava, ou nas margens do lago… Talvez só nos tenha chegado aos ouvidos uma parte da parábola ou umas frases isoladas, mas foram suficientes para que algo de muito profundo começasse a mudar na nossa alma.

Em outras ocasiões, atrever‑nos‑emos a dizer ao Senhor alguma coisa: talvez o que aqueles personagens lhe diziam ou gritavam, porque era grande a necessidade por que passavam: Domine, ut videam!17, que eu veja, Senhor; dá luz à minha alma, acende‑me; Ó Deus, tem piedade de mim, que sou um pecador18, suplicaremos, servindo‑nos das palavras do publicano que não se sentia digno de estar na presença do seu Deus; Domine, tu omnia nosti… Senhor, Tu sabes tudo, Tu sabes que eu te amo19…, e as palavras de Pedro ganharão no nosso coração um tom pessoal, e manifestaremos a Jesus os sentimentos e desejos de amor e de purificação que dominam o nosso coração…

Muitas vezes, enfim, contemplaremos a Santíssima Humanidade do Senhor, e vê‑lo perfeito Homem há de animar‑nos a amá‑lo mais, a ter desejos de ser‑lhe mais fiéis.

Vê‑lo‑emos trabalhar em Nazaré, ajudando José, cuidando mais tarde da sua Mãe…, ou cansado porque pregou durante muitas horas nesse dia ou porque a caminhada foi muito longa…

Todos os dias, enquanto lemos o Evangelho, Jesus passa ao nosso lado. Não deixemos de vê‑lo e ouvi‑lo, como aqueles discípulos que se encontraram com Ele no caminho de Emaús. “Fica conosco, porque escureceu… Foi eficaz a oração de Cléofas e do seu companheiro.

“– Que pena se tu e eu não soubéssemos «deter» Jesus que passa! Que dor, se não lhe pedimos que fique!”20

(1) cfr. Mc 9, 6; 6, 51; etc.; (2) cfr. Mc 9, 32; (3) Lc 4, 31‑37; (4) Mc 1, 22; (5) cfr. Mt 16, 14; (6) cfr. Sagrada Bíblia, Santos Evangelhos, EUNSA, Pamplona, 1983, nota a Mt 7, 28‑29; (7) cfr. Jo 3, 11; (8) J. Leclercq, Trinta meditações sobre a vida cristã, págs. 53‑54; (9) Josemaría Escrivá, Forja, n. 754; (10) cfr. Lc 19, 48; Jo 7, 46; (11) São Beda, Comentário ao Evangelho de São Marcos, 1, 21; (12) cfr. Jo 1, 35 e segs.; (13) Jo 1, 41; (14) Jo 7, 46 e segs.; (15) João Paulo II, Exort. Apost. Catechesi tradendae, 16‑X‑1979, 9; (16) Santo Agostinho, Comentário sobre os Salmos, 85, 7; (17) Mt 10, 51; (18) Lc 18, 13; (19) Jo 21, 17; (20) Josemaría Escrivá, Sulco, n. 671.

Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal