TEMPO COMUM. VIGÉSIMA PRIMEIRA SEMANA. SEGUNDA‑FEIRA
– Necessidade de que alguém guie a nossa alma no seu caminhar para Deus.
I. GRAÇA E PAZ vos sejam dadas da parte de Deus nosso Pai, e da do Senhor Jesus Cristo – escreve São Paulo aos cristãos de Tessalônica. É nosso dever e é justo, irmãos, dar sempre graças a Deus por vós, porque a vossa fé cresce vigorosamente e em cada um de vós continua a aumentar a caridade mútua1.
Com a assistência do Espírito Santo à sua Igreja, os primeiros fiéis gozaram do desvelo sacrificado dos seus pastores. Por contraste, os fariseus não souberam guiar o Povo eleito porque por culpa própria ficaram sem luz e lançaram sobre os filhos de Israel um fardo áspero e duro que, além disso, não os levava a Deus. No Evangelho da Missa2, o Senhor chama‑os guias de cegos, incapazes de mostrar aos outros o verdadeiro caminho.
Uma das maiores graças que podemos receber de Deus é a de termos quem nos oriente no caminho da vida interior, pois é um instrumento eficacíssimo na construção do nosso edifício espiritual. Desde os primeiros séculos, a Igreja sempre recomendou a prática da direção espiritual pessoal, como meio de extrema utilidade para progredir na vida cristã.
É muito difícil que alguém possa guiar‑se por si mesmo na vida interior. Quantas vezes a falta de objetividade com que nos vemos, o amor próprio, a tendência a deixar‑nos levar pelo que mais nos agrada ou pelo que nos é mais fácil…, não vão esfumando o caminho que nos leva a Deus (porventura tão claro a princípio!), lançando‑nos no desânimo, na tibieza e no imobilismo! “Aquele que quer ficar sozinho, sem apoio e sem guia, será como a árvore que está só e sem dono no campo, e que, por mais frutos que tenha, nunca chegará a vê‑los amadurecer, porque os transeuntes os colherão […]. A alma que tem virtude, mas está sozinha e sem mestre, é como o carvão aceso que está só; antes se irá esfriando do que inflamando‑se”3.
No conselheiro espiritual devemos ver essa pessoa, colocada pelo Senhor, que conhece bem o caminho, a quem abrimos a alma e que se torna mestre, médico, amigo e bom pastor nas coisas que se referem a Deus. Aponta‑nos os possíveis obstáculos, sugere‑nos metas mais altas na vida interior e pontos concretos para que lutemos com eficácia; anima‑nos sempre, ajuda‑nos a descobrir novos horizontes e desperta em nós a fome e sede de Deus que a tibieza, sempre à espreita, quereria apagar.
Podermos contar com essa pessoa a quem abrir a alma numa confidência cheia de sentido sobrenatural e humano, é uma graça muito especial do Senhor. Que alegria termos a quem comunicar os nossos sentimentos mais profundos, a fim de orientá‑los para o Senhor, alguém que reza por nós e tem uma graça especial para nos ajudar! Na direção espiritual, encontramos o próprio Cristo que, como aos Apóstolos, nos ouve atentamente, nos compreende e nos dá luzes e forças novas para continuarmos a caminhar.
– A quem devemos recorrer. Visão sobrenatural na direção espiritual.
II. A DIREÇÃO ESPIRITUAL deve basear‑se num grande espírito sobrenatural e num profundo sentido humano; por isso, essas confidências de vida interior “não se têm com qualquer pessoa, mas com quem merece confiança pelo que é ou pelo que Deus a faz ser para nós”4. Para São Paulo, a pessoa que Deus escolheu foi Ananias, que o fortaleceu no caminho da sua conversão; para Tobias, o encarregado por Deus de orientá‑lo e aconselhá‑lo na sua longa viagem foi o Arcanjo Rafael, sob figura humana.
Devem‑se ter essas conversas de direção espiritual num clima sobrenatural: o que procuramos através delas é a voz de Deus. Para pedir um conselho ou extravasar uma preocupação exclusivamente humana, sem maior transcendência, basta dirigirmo‑nos a quem possa compreender‑nos e seja discreto e prudente; no que se refere à alma, porém, temos que discernir na oração quem é o bom pastor para nós, “pois corre‑se o perigo, se só nos prendemos a motivos humanos, de que não nos entendam nem compreendam, e então a alegria converte‑se em amargura, e a amargura desemboca na incompreensão que não alivia; e em ambos os casos experimenta‑se desassossego, o íntimo mal‑estar de quem falou em demasia, com quem não devia, daquilo que não devia”5. Não devemos escolher guias cegos que, mais do que ajudar, nos fariam tropeçar e cair.
O sentido sobrenatural com que acudimos à direção espiritual evitará também que andemos procurando um conselheiro que favoreça o nosso egoísmo, que silencie com a sua pretensa autoridade o clamor da nossa própria alma; e evitará até que comecemos a mudar de diretor espiritual até encontrarmos o mais benévolo6. Esta tentação pode assaltar‑nos especialmente quando se trata de assuntos mais delicados que, por exigirem sacrifícios que talvez não estejamos dispostos a fazer, nos levam a tentar amoldar a Vontade de Deus à nossa vontade: por exemplo, quando se trata de seguir uma vocação a que Deus nos chama e que exige uma maior entrega; de cortar com uma amizade ou um namoro inconveniente; de seguir à risca os critérios da ética profissional; de aceitar de braços abertos os filhos que Deus manda, sem que a idéia da “paternidade responsável” sirva de pretexto aos casados para serem irresponsáveis diante de Deus e os leve a lançar mão de métodos temporários – ou definitivos! – contrários à moral cristã. Hoje, infelizmente, é preciso estar de guarda contra eventuais maus pastores.
Peçamos ao Senhor que sejamos pessoas de consciência reta, que procuram a sua Vontade e que não se deixam levar por motivos humanos: que procuram de verdade o modo de agradar ao Senhor, e não uma “falsa tranqüilidade” ou um “querer ficar bem”. O sentido sobrenatural conduz à simplicidade.
– Constância, sinceridade e docilidade.
III. A VIDA INTERIOR necessita de tempo para amadurecer e não se improvisa da noite para o dia. Teremos derrotas, que nos ajudarão a ser mais humildes, e vitórias, que manifestam a eficácia da graça que frutifica em nós; teremos de começar e recomeçar muitas vezes, sem desânimos e sem esperar – ainda que às vezes cheguem – resultados imediatos, que algumas vezes o Senhor não quer que vejamos para nosso maior bem. Por isso, a prática da direção espiritual não pode ser esporádica ou descontínua, uma vez que tem de seguir passo a passo os momentos bons e os menos bons do nosso esforço.
Essa constância torna‑se necessária sempre que haja mais dificuldades externas: por dispormos de menos tempo, por excesso de trabalho, de exames… Deus premia esse esforço com novas luzes e graças. E nas dificuldades internas: preguiça, soberba, desânimo porque as coisas vão mal, porque não se fez nada do que se tinha combinado. É então que mais necessitamos dessa conversa fraterna, ou dessa Confissão, da qual saímos mais esperançosos e alegres, e com um novo impulso para continuar lutando. Um quadro é feito pincelada a pincelada, e um tecido forte é resultado da trama de muitos fios: na continuidade da direção espiritual, semana após semana, quinzena após quinzena, a alma vai‑se forjando; e pouco a pouco, com derrotas e vitórias, o Espírito Santo constrói o edifício da santidade.
Além da constância, é imprescindível a sinceridade: devemos sempre começar por referir o que é mais importante – e que talvez coincida com aquilo que mais nos custa contar –. Muitas vezes, os frutos podem tardar em vir por não termos dado desde o início uma clara imagem do que realmente nos acontece, de como somos na realidade, ou por nos termos detido a relatar coisas puramente acidentais, sem chegar ao fundo. Sinceridade sem dissimulações, sem exageros ou meias verdades: descendo às coisas concretas, chamando pelo nome os nossos erros e equívocos, os nossos defeitos de caráter, sem querer mascará‑los com falsas justificativas. Por quê?, como?, quando?… são circunstâncias que tornam mais pessoal o relato do estado da alma.
Outra condição para que a direção espiritual tenha fruto é a docilidade. Foram dóceis os leprosos que Jesus mandou que se apresentassem aos sacerdotes como se já estivessem curados7, e os Apóstolos quando o Senhor lhes disse que mandassem as pessoas sentar‑se e começassem a dar‑lhes de comer, apesar de já terem feito os cálculos e saberem bem que era ínfima a quantidade de provisões com que contavam8. Pedro é dócil ao lançar as redes apesar de saber que não havia peixes naquele lugar e que a hora não era oportuna9… São Paulo deixar‑se‑á guiar; a sua forte personalidade, manifestada de tantos modos e em tantas ocasiões, serve‑lhe agora para ser dócil. Primeiro, os seus companheiros de viagem levá‑lo‑ão a Damasco, depois Ananias fará com que recobre a vista, e então será um homem útil para empreender as batalhas do Senhor10.
Não pode ser dócil quem se empenha em ser obstinado, incapaz de assimilar uma idéia diferente da que tem ou da que a sua experiência lhe dita. O soberbo é incapaz de ser dócil, porque, para podermos aprender e deixar‑nos ajudar, é necessário que estejamos convencidos da nossa insuficiência em tantos assuntos da alma.
Recorramos a Santa Maria para sermos constantes na direção da nossa alma e para sermos sinceros e dóceis, como o barro nas mãos do oleiro11.
(1) 2 Tess 1, 1‑3; (2) Mt 23, 23‑26; (3) São João da Cruz, Frases de luz e de amor, em Obras Completas; (4) F. Suárez, A Virgem Nossa Senhora, pág. 95; (5) ib., págs. 96‑97; (6) cfr. Josemaría Escrivá, Questões atuais do cristianismo, n. 93; (7) Lc 17, 11‑19; (8) Lc 9, 10‑17; (9) cfr. Lc 5, 1 e segs.; (10) At 9, 17‑19; (11) Jer 18, 1‑7.
Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal