TEMPO COMUM. SEGUNDA SEMANA. TERÇA-FEIRA
– A grandeza e a dignidade da pessoa humana.
– Dignidade da pessoa no trabalho. Princípios de doutrina social da Igreja.
– Uma sociedade justa.
I. JESUS ATRAVESSAVA certa vez um campo, e os discípulos que o acompanhavam iam arrancando espigas para comê-las. Era um dia de sábado, e os fariseus dirigiram-se ao Mestre pedindo-lhe que lhes chamasse a atenção, pois – segundo a sua casuística – não era lícito entregar-se àquele “trabalho” aos sábados. Jesus defendeu os seus discípulos e o próprio descanso sabático recorrendo à Sagrada Escritura: Nunca lestes o que fez Davi quando teve necessidade e sentiu fome, ele e os seus? Como entrou na casa de Deus, sob o pontífice Abiatar, e comeu os pães da proposição, que não é lícito comer senão aos sacerdotes, e os deu igualmente aos seus? E acrescentou: O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado. E a seguir deu-lhes uma razão ainda mais alta: O Filho do homem é senhor também do sábado1. Tudo está ordenado em função de Cristo e do ser humano; mesmo o descanso do sábado.
Os pães da proposição eram doze pães que se colocavam todas as semanas na mesa do santuário em homenagem às doze tribos de Israel2; os que eram retirados do altar ficavam reservados aos sacerdotes que cuidavam do culto.
A atitude de Davi antecipou a doutrina que Cristo ensina nesta passagem. Já no Antigo Testamento, Deus estabelecera uma ordem nos preceitos da Lei, de forma que os de menor importância cediam a vez aos principais. Assim se explica que um preceito cerimonial, como este dos pães, cedesse o lugar a um preceito da lei natural3. O preceito do sábado também não estava acima das necessidades elementares de subsistência.
O Concílio Vaticano II inspirou-se nesta passagem para sublinhar o valor da pessoa humana para além do desenvolvimento econômico e social4. Depois de Deus, o homem é quem vem em primeiro lugar; se não fosse assim, instaurar-se-ia uma verdadeira desordem sobre a face da terra, tal como infelizmente vemos acontecer com freqüência.
A Santíssima Humanidade de Cristo confere-nos uma luz que ilumina o nosso ser e a nossa vida, pois só em Cristo conhecemos realmente o valor incomensurável de um homem. “Quando vocês se perguntarem pelo mistério de si próprios – dizia João Paulo II a uma multidão de jovens –, olhem para Cristo, que é quem dá sentido à vida”5. Somente Ele, e nenhum outro, pode dar sentido à existência humana, e por isso não se pode definir o homem a partir das realidades da criação inferiores, e menos ainda pela produção do seu trabalho, pelo resultado material do seu esforço. A grandeza do ser humano provém da realidade espiritual da alma, da filiação divina, do seu destino eterno recebido de Deus. E isto eleva-o acima de toda a natureza criada.
O título que, em última análise, fundamenta a dignidade humana está em que é a única realidade da criação visível que Deus amou em si mesma, criando-a à sua imagem e semelhança e elevando-a à ordem da graça. Mas, além disso, o homem adquiriu um novo valor depois de o Filho de Deus ter assumido a nossa natureza através da Encarnação e de ter dado a sua vida por todos os homens: propter nos homines et propter nostram salutem descendit de coelis et incarnatus est, por nós homens e para a nossa salvação desceu dos céus e se encarnou. É por isso que todas as almas que nos rodeiam devem despertar o nosso interesse mais profundo; não há nenhuma que esteja excluída do amor de Cristo, nenhuma que possa ser excluída do nosso respeito e consideração.
Olhemos à nossa volta, para as pessoas que vemos e cumprimentamos diariamente, e examinemo-nos na presença de Deus se realmente lhes manifestamos esse apreço e essa veneração.
II. A DIGNIDADE DA CRIATURA HUMANA – imagem de Deus – é o critério adequado para apreciarmos os verdadeiros progressos da sociedade, do trabalho, da ciência…, e não ao contrário6. E a dignidade do homem manifesta-se em toda a sua atuação pessoal e social, particularmente no campo do trabalho, em que se realiza o preceito do seu Criador, que o tirou do nada e o pôs sem pecado numa terra ut operaretur, para que trabalhasse7 e assim desse glória a Deus.
Por isso, a Igreja defende a dignidade da pessoa que trabalha. É uma dignidade que se empobrece quando a pessoa é avaliada somente em função do que produz, quando o trabalho é encarado como mera mercadoria, e se valoriza mais “a obra que o operário”, “o objeto mais do que o sujeito que a realiza”8, como diz expressivamente o Papa João Paulo II.
Não se trata somente de respeitar umas formas externas, de tratar amavelmente os que trabalham a nosso serviço, pois mesmo com umas maneiras cordiais se pode atentar contra a dignidade dos outros, se os subordinamos a fins meramente utilitários, como uma simples peça na engrenagem da produtividade e do lucro, ou se os tratamos com o único propósito de preservar a paz na empresa.
Estaríamos longe de uma visão cristã se mantivéssemos de alguma forma uma visão rebaixada, colada à terra: os indicadores mais fiéis da justiça nas relações sociais não são o volume da riqueza criada nem a sua distribuição… É necessário examinar “se as estruturas, o funcionamento, os ambientes de um sistema econômico não comprometem a dignidade humana daqueles que desenvolvem a sua atividade nele…”9 Devemos ter presente que o critério supremo no uso dos bens materiais deve ser “o de facilitar e promover o aperfeiçoamento espiritual dos seres humanos tanto no âmbito natural como no sobrenatural”10, a começar, como é lógico, por aqueles que os produzem.
A dignidade do trabalho expressa-se num salário justo, base de toda a justiça social. Mesmo no caso em que se trate de um contrato livremente pactuado, ou que o salário estipulado esteja de acordo com a letra da lei, isso não legitima qualquer retribuição que se combine. E se quem contrata (o diretor de uma escola, o construtor, o empresário, a dona de casa…) quisesse aproveitar-se de uma situação em que há excesso de mão de obra, por exemplo, para pagar um salário contrário à dignidade das pessoas, ofenderia essas pessoas e o Criador, pois elas têm um direito natural e irrenunciável aos meios suficientes para o seu sustento e para o das suas famílias, que está por cima do direito à livre contratação11.
III. É PRECISO TER PRESENTE que a principal finalidade do desenvolvimento econômico “não é um mero crescimento da produção, nem o lucro ou o poder, mas o serviço do homem integral, tendo em conta as suas necessidades de ordem material e as exigências da sua vida intelectual, moral, espiritual e religiosa”12.
Isto não significa negar a legítima autonomia da ciência econômica, a autonomia própria da ordem temporal, que levará a estudar as causas dos problemas econômicos, sugerir soluções técnicas e políticas, etc. Mas essas soluções devem submeter-se sempre a um critério superior, de ordem moral, pois não são absolutamente independentes e autônomas. Além disso, não se deve confiar em medidas puramente técnicas quando nos encontramos diante de problemas que têm claramente a sua origem numa desordem moral.
É longo o caminho a percorrer até se chegar a uma sociedade justa em que a dignidade da pessoa, filha de Deus, seja plenamente reconhecida e respeitada. Porém, essa tarefa não é responsabilidade apenas de alguns, mas de todos os homens de boa vontade. Porque “não se ama a justiça, se não se deseja vê-la estendida aos outros. Como também não é lícito encerrar-se numa religiosidade cômoda, esquecendo as necessidades alheias. Quem deseja ser justo aos olhos de Deus esforça-se também por fazer com que se pratique de fato a justiça entre os homens”13.
Devemos viver o respeito pela pessoa com todas as suas conseqüências e nos campos mais variados: defendendo a vida já concebida, uma vez que se trata de um filho de Deus com um direito à vida que lhe foi dado pelo Senhor e que ninguém lhe pode tirar; amparando os anciãos e os mais fracos, que devemos tratar com essa misericórdia que o mundo parece estar perdendo; se formos empregados ou operários, sendo bons trabalhadores e profissionais capacitados; ou, no caso de sermos empresários, conhecendo muito bem a doutrina social da Igreja para levá-la à prática.
Também devemos reconhecer a dignidade da pessoa humana no relacionamento normal da vida: considerando os que estão à nossa volta, independentemente dos seus possíveis defeitos, como filhos de Deus, evitando até a menor murmuração e tudo aquilo que possa fazer-lhes mal. “Acostuma-te a recomendar cada uma das pessoas das tuas relações ao seu Anjo da Guarda, para que a ajude a ser boa e fiel, e alegre”14. Então o relacionamento será mais fácil e aumentarão a cordialidade, a paz e o respeito mútuo.
O Filho do homem é senhor também do sábado. Devemos orientar tudo para Cristo – Sumo Bem – e para a pessoa humana, por quem Ele se imolou no Calvário a fim de salvá-la. Nenhum bem terreno é superior ao homem.
(1) Mc 2, 23-28; (2) cfr. Lev 24, 5-9; (3) cfr. Sagrada Bíblia, Santos Evangelhos, EUNSA, Pamplona, 1983; (4) cfr. Conc. Vat. II, Const. Gaudium et spes, 26; (5) João Paulo II, Alocução no Madison Square Garden, New York, 3-X-1979; (6) cfr. idem, Discurso, 15-VI-1982, 7; (7) Gen 2, 15; (8) João Paulo II, Discurso, 24-XI-1979; (9) João XXIII, Enc. Mater et magistra, 15-V-1961, 83; (10) ib., 246; (11) cfr. Paulo VI, Enc. Populorum progressio, 24-III-1967, 59; (12) Conc. Vat. II, op. cit., 64; (13) São Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, n. 52; (14) Josemaría Escrivá, Forja, n. 1012.
Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal