TEMPO COMUM. VIGÉSIMA SEMANA. SEXTA‑FEIRA

– O principal Mandamento da Lei. Amar com todo o nosso ser
– Amar a Deus também com o coração.
– Manifestações de piedade.

I. AMAR A DEUS não é simplesmente uma coisa muito importante para o homem: é a única que importa absolutamente, aquilo para que foi criado e, portanto, a sua ocupação fundamental aqui na terra e, depois, a sua única ocupação eterna no Céu. Sem isso, a vida do ser humano fica vazia. Como eram inteiramente acertadas as palavras que uma alma que muito amou o Senhor deixou escritas depois de uma vida de inúmeros sofrimentos físicos: “O que frustra uma vida – escreveu numa pequena nota – não é a dor, mas a falta de amor”! Este é o grande fracasso: não termos amado; termos feito talvez muitas coisas na vida, mas não termos levado a bom termo o que realmente importava: o amor a Deus.

Lemos hoje no Evangelho da Missa 1 que, com ânimo de tentá‑lo, de tergiversar as suas palavras, um fariseu aproximou‑se de Cristo e perguntou‑lhe: Mestre, qual é o principal mandamento da Lei? Talvez esperasse ouvir alguma coisa que lhe permitisse acusar Jesus de ir contra a Escritura. Mas Jesus respondeu‑lhe: Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, e com toda a tua alma, e com todo o teu entendimento. Este é o maior e o primeiro mandamento. Deus não pede para si um cantinho no nosso coração, na nossa alma, na nossa mente, ao lado de outros amores: quer a totalidade do amor. Não um pouco de amor, um pouco de vida, mas a totalidade do ser. “Deus é tudo, o Único, o Absoluto, e deve ser amado ex toto corde, absolutamente” 2, sem limites nem medida.

Cristo, Deus feito homem que vem salvar‑nos, ama‑nos com um amor único e pessoal; “é um amante ciumento” que pede todos os nossos afetos. Espera que lhe entreguemos aquilo que temos, seguindo a vocação pessoal a que um dia nos chamou e a que continua a chamar‑nos diariamente no meio dos nossos afazeres.

“Deus tem o direito de nos dizer: – Pensas em Mim? Tens presença de Mim? Procuras‑me como teu apoio? Procuras‑me como Luz da tua vida, como couraça…, como tudo?

“– Portanto, reafirma‑te neste propósito: nas horas que a gente da terra qualifica como boas, clamarei: Senhor! Nas horas que chama de más, repetirei: Senhor!” 3

Todas as circunstâncias devem servir‑nos para amá‑lo com todo o coração, com toda a alma, com todo o espírito…, com toda a nossa existência. Não só quando vamos ao templo para visitá‑lo, para comungar…, mas no meio do trabalho, quando chega a dor, o fracasso, ou uma boa notícia inesperada. Temos que dizer‑lhe muitas vezes na intimidade do nosso coração: “Jesus, eu te amo, aceito esta contradição com paz por Ti, terminarei esta tarefa com perfeição porque sei que Te agrada, que não Te é indiferente que a faça de um modo ou de outro…” Agora, na nossa oração, podemos dizer‑lhe: “Jesus, eu te amo…, mas ensina‑me a amar‑Te”; que eu aprenda a querer‑Te com o coração e com as obras.

II. DÁ‑ME, MEU FILHO, o teu coração, e põe os teus olhos nos meus caminhos 4.

Ao comentar o preceito de amar a Deus com todo o coração, São Tomás ensina que o princípio do amor é duplo, pois pode‑se amar tanto com o sentimento como pelo que a razão nos diz. Com o sentimento, quando o homem não sabe viver sem aquilo que ama. Pelos ditames da razão, quando ama aquilo que o entendimento lhe diz. E nós devemos amar a Deus de ambas as maneiras: também com o nosso coração humano, com o afeto com que queremos às criaturas da terra 5, com o único coração que temos. O coração, a afetividade, é parte integrante do nosso ser. “Sendo homens – comenta São João Crisóstomo contra a seita maniquéia, que considerava os sentimentos humanos essencialmente maus –, não nos é possível carecer por completo de emoções; podemos dominá‑las, mas é impossível viver sem elas. Além disso, a paixão pode ser proveitosa, se soubermos usá‑la quando necessário” 6.

O amor que contemplamos em Jesus Cristo quando lemos o Evangelho é humano e sobrenatural: cheio de calor, de vibração, de ternura…, quando se dirige ao seu Pai celestial e quando está com os homens. Comove‑se ao ver uma mãe viúva que perdeu o seu único filho, chora por um amigo que morreu, sente a falta de gratidão de uns leprosos que tinham sido curados por Ele da sua doença, mostra‑se sempre cordial, aberto a todos, mesmo nos momentos terríveis e sublimes da Paixão… Nós, que desejamos seguir Cristo muito de perto, ser de verdade discípulos seus, temos de recordar que a vida cristã não consiste “em pensar muito, mas em amar muito” 7.

No nosso íntimo, experimentamos muitas vezes a nossa indigência, a necessidade de ajuda, de proteção, de carinho, de felicidade… E esses sentimentos, às vezes muito profundos, podem e devem ser veículo para procurarmos a Deus, para lhe dizer que o amamos, que temos necessidade da sua ajuda, para permanecer junto dEle. Se a nossa conduta fosse somente fruto de escolhas racionais e frias, ou pretendêssemos ignorar a vertente afetiva do nosso ser, não viveríamos integramente como Deus quer, e a longo prazo seria possível que nem sequer o amássemos. Deus nos fez com corpo e alma, e é com todo o nosso ser – coração, alma, forças – que devemos amá‑lo, diz‑nos Jesus Mestre.

Pode acontecer de vez em quando que nos encontremos frios e apáticos, como se o coração tivesse adormecido, pois os sentimentos apresentam‑se e desaparecem de maneira às vezes imprevisível. Não podemos então resignar‑nos a seguir o Senhor de má vontade, como quem cumpre uma obrigação onerosa ou toma um remédio amargo. É necessário empregar os meios para sair desse estado, se, mais do que uma purificação passiva – que o Senhor pode permitir –, se trata simplesmente de tibieza, de falta de amor verdadeiro. Temos de amar a Deus com a vontade firme e, sempre que seja possível, com os sentimentos que o coração encerra; com a ajuda do Senhor, a maior parte das vezes será possível despertar os afetos, acender novamente o coração, ainda que falte uma ressonância interior de complacência.

Em outras ocasiões, Deus trata‑nos como uma mãe carinhosa que, sem que o filho o espere, lhe dá um doce como prêmio ou, simplesmente, quer manifestar‑lhe todo o seu afeto. E esse filho, que sempre amou a sua mãe, fica imensamente feliz e até se oferece voluntariamente para fazer o que seja preciso, no seu desejo de mostrar‑se agradecido. Mas sem dúvida repudiará todo o pensamento que possa induzi‑lo a pensar que a sua mãe não o ama quando não lhe dá guloseimas, ou – se tem um mínimo de senso comum – quando lhe faz uma correção ou quer levá‑lo ao médico. Assim devemos comportar‑nos com o nosso Pai‑Deus, que nos ama muito mais. Nas épocas difíceis, devemos recordar os tempos dos consolos sensíveis, para tirar forças e persistir com mais generosidade na luta diária, sabendo que a essência do amor não está nos sentimentos.

III. O MEU CORAÇÃO tornou‑se como cera, derrete‑se dentro das minhas entranhas8, diz a Escritura.

É preciso cultivar o amor, protegê‑lo, alimentá‑lo. Evitando o sentimentalismo, devemos praticar as manifestações afetivas da piedade – sem reduzir o amor a essas manifestações –, pôr todo o coração ao beijarmos um crucifixo ou ao olharmos uma imagem de Nossa Senhora…, e não querer ir para Deus somente “à força de braços”, pois a longo prazo isso traz fadiga e empobrece o trato com Cristo. Não devemos esquecer que o coração é um precioso auxiliar nas relações com Deus.

“A tua inteligência está obtusa, inativa. Fazes esforços inúteis para coordenar as idéias na presença do Senhor; um verdadeiro entontecimento! – Não te esforces nem te preocupes. – Escuta‑me bem: é a hora do coração” 9. É o momento talvez de dizer ao Senhor umas poucas palavras simples, como quando éramos crianças; de repetir com atenção jaculatórias cheias de piedade, de carinho; porque os que andam pelos caminhos do amor de Deus sabem até que ponto é importante fazer todos os dias as mesmas coisas: palavras, ações, gestos que o amor transfigura diariamente em outros tantos atos por estrear 10.

Para amar a Deus com todo o coração, temos de recorrer com freqüência à Santíssima Humanidade de Jesus – e talvez ler durante uma temporada uma biografia de Cristo: – contemplá‑lo como perfeito Deus e como Homem perfeito, observar o seu comportamento com os que o procuram: a sua compaixão misericordiosa, o seu amor por todos. De modo especial, meditaremos a sua Paixão e Morte na Cruz, a sua generosidade sem limites quando mais sofre. Noutros casos, dirigir‑nos‑emos a Deus com as mesmas palavras com que o amor humano se expressa, e até poderemos converter em verdadeira oração as canções que falam desse amor nobre e limpo.

O amor a Deus – como todo o amor verdadeiro – não é só sentimento; não é sentimentalismo vazio, pois deve conduzir a muitas manifestações operativas; e além disso, deve comandar todos os aspectos da vida do homem. “«Obras é que são amores, não as boas razões». Obras, obras! – Propósito: continuarei a dizer‑Te muitas vezes que Te amo – quantas não Te terei repetido hoje! –; mas, com a tua graça, será sobretudo a minha conduta, serão as bagatelas de cada dia que – com eloqüência muda – hão de clamar diante de Ti, mostrando‑Te o meu amor”11.

(1) Mt 22, 34‑40; (2) F. Ocáriz, Amor a Dios, amor a los hombres, 4ª ed., Palabra, Madrid, 1979, pág. 22; (3) cfr. São Josemaría Escrivá, Forja, n. 506; (4) Prov 23, 26; (5) cfr. São Tomás, Comentário ao Evangelho de São Mateus, 22, 4; (6) São João Crisóstomo, Homilias sobre o Evangelho de São Mateus, 16, 7; (7) cfr. João Paulo II, Homilia, Ávila, 1‑XI‑1982; Santa Teresa de Jesus, Castelo interior, IV, 1, 7; (8) Sl 21, 15; (9) São Josemaría Escrivá, Caminho, n. 102; (10) cfr. J. M. Escartin, Meditación del Rosario, 3ª ed., Palabra, Madrid, 1971, pág. 63; (11) São Josemaría Escrivá, Forja, n. 498.

Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal