TEMPO COMUM. VIGÉSIMO QUARTO DOMINGO. ANO B
– A nossa vida está intimamente relacionada com Cristo.
– Imitá‑lo, viver a sua Vida. Filiação divina.
– Tomar a cruz e segui‑lo.
I. APROXIMAVA‑SE A FESTA de Pentecostes do terceiro ano da vida pública de Jesus. Das vezes anteriores, o Senhor tinha subido a Jerusalém para anunciar a Boa Nova às multidões que acorriam à Cidade Santa nessa festividade. Desta vez – possivelmente para manter os discípulos longe do ambiente hostil que se vinha formando à sua volta –, procurou abrigo nas terras tranqüilas e afastadas de Cesaréia de Filipe. E enquanto caminhava1, depois de ter permanecido em oração, como indica expressamente São Lucas2, perguntou em tom familiar aos discípulos que o acompanhavam: Quem dizem os homens que eu sou? E eles, com simplicidade, contaram‑lhe o que lhes chegava aos ouvidos: Uns dizem que és João Batista; outros, Elias… Então Ele voltou a interrogá-los: E vós, quem dizeis que eu sou?
Na vida, há perguntas que, se ficam por responder, nada acontece. Pouco ou nada nos comprometem: por exemplo, a capital de um país longínquo, a idade de certa pessoa… Mas há questões cujo conhecimento e vivência são muito mais importantes: em que coisas reside a dignidade do ser humano, qual o sentido dos bens terrenos, por que a vida é tão breve… E dentre essas questões, existe uma em cuja resposta não devemos errar, pois nos dá a chave de todas as verdades que nos dizem respeito. É a mesma que Jesus fez aos Apóstolos naquela manhã a caminho de Cesaréia de Filipe: E vós, quem dizeis que eu sou? Então e agora, só existe uma resposta verdadeira: Tu és o Cristo, o Ungido, o Messias, o Filho Unigênito de Deus: a Pessoa de quem depende toda a minha vida, o meu destino, a minha felicidade, o meu triunfo ou a minha desgraça.
A nossa felicidade não está na saúde, no êxito, na realização de todos os nossos desejos… A nossa vida terá valido a pena se tivermos conhecido, servido e amado a Cristo.
Todos os problemas têm solução se estamos com Ele; nenhum tem uma solução definitiva se o Senhor não é o eixo, se não é Ele quem dá sentido ao nosso viver, com êxitos ou com fracassos, na saúde e na doença.
Os Apóstolos, pela boca de Pedro, deram a Jesus a resposta certa depois de dois anos de convivência e trato. Nós, como eles, “temos de percorrer um caminho de escuta atenta, diligente. Temos de ir à escola dos primeiros discípulos, que são as suas testemunhas e os nossos mestres, e ao mesmo tempo temos de receber a experiência e o testemunho nada menos que de vinte séculos de história sulcados pela pergunta do Mestre e enriquecidos pelo imenso coro das respostas dos fiéis de todos os tempos e lugares”3.
Nós, que talvez venhamos seguindo o Mestre há não poucos anos, devemos examinar hoje, na intimidade do nosso coração, o que Cristo significa para nós. Digamos como São Paulo: Tudo isso que para mim era lucro, considero‑o agora por amor de Cristo como perda, por causa do sublime conhecimento de Jesus Cristo, meu Senhor. Por Ele renunciei a todas as coisas e tenho‑as por esterco, a fim de ganhar Cristo4.
II. DEUS MANIFESTOU o seu amor pelos homens enviando ao mundo o seu Filho Unigênito para que vivamos por Ele5. Cristo é o único caminho para ir ao Pai: Ninguém vai ao Pai senão por Mim6, declarará o Senhor aos seus discípulos na última Ceia. Sem Ele, nada podemos7.
A primeira preocupação do cristão deve, pois, consistir em viver a vida de Cristo, em incorporar‑se a Ele, como os ramos à videira. O ramo depende da união com a videira, que lhe envia a seiva vivificante; separado dela, seca e é lançado ao fogo8. A vida do cristão resume‑se em ser pela graça o que Jesus é por natureza: filho de Deus. Esta é a meta fundamental: imitar Jesus, assimilar a sua atitude de filho diante de Deus Pai. O próprio Cristo no‑lo disse: Subo para «meu» Pai e «vosso» Pai, «meu» Deus e «vosso» Deus9.
Neste itinerário, o Senhor interpela‑nos todos os dias sobre a nossa fé e a nossa confiança nEle, sobre o que Ele representa na nossa vida. Ele é o Amigo, o Irmão mais velho, que nos inspira, que nos acompanha, que nos levanta e nos restitui a alegria. Mas não podemos olhar para outro lado, não podemos ter medo de fitá‑lo e dizer‑lhe sem reservas: “Que queres de mim, Senhor?”
Nestes minutos de oração, a sós com Cristo, temos de reconhecer que muitas vezes fugimos dEle, que não chegamos a compreender por que se interessa tanto por cada um de nós, que vamos adiando para amanhã, sempre para amanhã, o nosso compromisso de amor com Ele.
Por isso podemos dizer‑lhe hoje com o soneto do clássico castelhano:
Que tenho eu que a minha amizade procuras?
Que interesse tens, meu Jesus,
que à minha porta, coberto de rocio,
passas as noites do inverno escuras?
Oh como foram as minhas entranhas duras,
pois não te abri! Que estranho desvario
se da minha ingratidão o gelo frio
secou as chagas das tuas plantas puras!
Quantas vezes o anjo me dizia:
Alma, assoma agora à janela,
verás com quanto amor em chamar porfia!
E quantas, formosura soberana,
“Amanhã lhe abriremos”, respondia,
Para o mesmo responder amanhã!10
III. DEPOIS DA CONFISSÃO de Pedro, Jesus declarou aos seus discípulos pela primeira vez que o Filho do homem tinha de padecer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos escribas, e ser morto, e ressuscitar depois de três dias. E falava‑lhes destas coisas abertamente11.
Era uma linguagem estranha para os que tinham visto tantas maravilhas. E Pedro, tomando‑o à parte, começou a repreendê‑lo. Então o Senhor, dirigindo‑se ao Apóstolo, mas com a intenção de que todos o ouvissem, disse‑lhe estas duríssimas palavras: Afasta‑te de mim, Satanás! Foram as mesmas palavras que tinha utilizado para repelir o demônio depois das tentações no deserto12. Este por ódio, aquele por um amor mal entendido, tinham tentado dissuadi‑lo da sua obra redentora na cruz, para a qual se orientava toda a sua vida, e que haveria de trazer‑nos todos os bens e graças necessários para alcançarmos o Céu. Na primeira Leitura da Missa13, Isaías anuncia com vários séculos de antecedência a Paixão que o Servo de Javé haveria de sofrer: Aos que me feriam, ofereci as espáduas […], não desviei o meu rosto dos ultrajes e dos escarros.
Sabemos bem que “perante Jesus, não podemos contentar‑nos com uma simpatia simplesmente humana, por legítima e preciosa que seja, nem é suficiente considerá‑lo somente como um personagem digno de interesse histórico, teológico, espiritual, social, ou como fonte de inspiração artística”14. Jesus Cristo compromete‑nos de modo absoluto. Pede‑nos que, ao segui‑lo, renunciemos à nossa vontade para nos identificarmos com Ele. Por isso, depois de recriminar Pedro, o Senhor chamou todos os outros e disse‑lhes: Quem quiser vir após mim, negue‑se a si mesmo, tome a sua cruz e siga‑me. Pois quem quiser salvar a sua vida perdê‑la‑á, e quem perder a sua vida por mim e pelo Evangelho, esse a salvará15.
A dor e qualquer tipo de sofrimento são condição necessária para chegarmos à intimidade com Cristo. Com a dor – a cruz –, acompanhamo‑lo ao Calvário, não nos separamos dEle nesses momentos em que mais sente a deslealdade, a covardia e a omissão dos homens: identificamo‑nos plenamente com Ele.
Mas, além disso, quando tiramos os olhos dos nossos próprios sofrimentos para os pôr nos sofrimentos inauditos de Cristo, esvaziamos a nossa cruz pessoal de qualquer elemento de tragédia e solidão, e vemos nela um tesouro, uma “carícia divina” que passamos a agradecer do fundo da alma. Obrigado, Senhor!, é o que dizemos diante de quaisquer circunstâncias adversas. O Senhor retira então o que há de mais áspero, incômodo e doloroso nos nossos sofrimentos e eles deixam de pesar e oprimir; pelo contrário, preparam a alma para a oração e dilatam o coração para que seja mais generoso e compreensivo com os outros.
Já o cristão que recusa sistematicamente o sacrifício e não se conforma com as contrariedades e a dor, nunca encontra Cristo no caminho da sua vida, como também não encontra a felicidade. Quantos cristãos não se sentem no final do dia tristes, abatidos e sem impulso vital, por não terem sabido santificar, não já as grandes contradições, mas as pequenas contrariedades que foram surgindo ao longo da jornada!
Vamos dizer a Jesus que queremos segui‑lo em todos os passos da sua vida e da nossa, que nos ajude a levar a cruz de cada dia com garbo. Pedimos‑lhe que nos acolha entre os seus discípulos mais íntimos. “Senhor”, suplicamos‑lhe, “toma‑me como sou, com os meus defeitos, com as minhas debilidades; mas faz‑me chegar a ser como Tu desejas”16, como fizeste com Simão Pedro.
(1) Cfr. Mc 8, 27; (2) cfr. Lc 9, 18; (3) João Paulo II, Audiência geral, 7.01.87; (4) Fil 3, 7‑8; (5) Jo 4, 9; (6) Jo 14, 6; (7) cfr. Jo 15, 5; (8) cfr. Jo 15, 1‑6; (9) Jo 20, 17; (10) Lope de Vega, Soneto a Jesus crucificado; (11) Mc 8, 31‑32; (12) cfr. Mt 4, 10; (13) Is 50, 5‑10; (14) João Paulo II, Audiência geral, 7.01.87; (15) Mc 8, 34‑35; (16) João Paulo II, Alocução, 13‑IX‑1978.
Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal