TEMPO COMUM. NONA SEMANA. TERÇA-FEIRA
– O cristão na vida pública. O cumprimento exemplar dos nossos deveres.
– Unidade de vida.
– A união com Deus, necessária para sermos melhores cristãos.
I. O EVANGELHO DA MISSA 1 conta que uns fariseus se aproximaram de Jesus para surpreendê-lo em alguma palavra e poderem acusá-lo. Por isso perguntam-lhe maliciosamente se é lícito pagar o tributo a César.
Tratava-se do imposto que todos os judeus deviam pagar a Roma, e que lhes recordava a sua dependência de um poder estrangeiro. Não era muito pesado, mas levantava um problema político e moral; os próprios judeus estavam divididos a respeito da sua obrigatoriedade. E querem que Jesus tome partido a favor ou contra essa imposição. Mestre – dizem-lhe –, é-nos lícito pagar o tributo a César?
Se o Senhor dissesse que sim, poderiam acusá-lo de colaborar com o poder romano, que os judeus odiavam por ser o invasor. Se respondesse que não, poderiam acusá-lo de rebelião. Tomar partido a favor ou contra o imposto significava, no fundo, manifestar-se a favor ou contra a legalidade da situação político-social por que passava o povo judeu: colaborar com o poder de ocupação ou fomentar a rebelião latente no seio do povo. Aliás, chegariam mais tarde a acusá-lo com absoluta falsidade diante de Pilatos, a autoridade romana: Encontramos este homem subvertendo o nosso povo; proíbe que se pague o tributo a César 2.
Jesus, conhecendo a malícia da pergunta, diz-lhes: Mostrai-me uma moeda. De quem é esta imagem e a inscrição? Eles responderam: De César. E Jesus deixou-os desconcertados com a profundidade e simplicidade da sua resposta: Pois dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Jesus não foge da questão, mas coloca-a nos seus verdadeiros termos.
Trata-se de que o Estado não se intrometa no plano das coisas divinas, e de que a Igreja não intervenha em questões temporais mutáveis e relativas. Jesus opõe-se, por conseguinte, tanto ao erro difundido entre os fariseus, de um messianismo político, como ao da ingerência do Estado romano – de qualquer Estado – no terreno religioso3. Com a sua resposta, estabelece claramente duas esferas de competência. “Cada uma no seu âmbito próprio – diz o Concílio Vaticano II –, são mutuamente independentes e autônomas. Ambas, no entanto, ainda que por um título distinto, estão a serviço da vocação pessoal e social dos mesmos homens” 4.
A Igreja como tal não tem por missão dar soluções concretas aos assuntos temporais, e desta forma segue o exemplo do Senhor, cujo reino não é deste mundo 5 e que expressamente se negou a intervir como juiz em questões terrenas 6. A missão da Igreja, que continua no tempo a obra redentora de Jesus Cristo, é levar os homens ao seu destino sobrenatural e eterno; a sua justa e devida preocupação pelos problemas da sociedade provém exclusivamente da sua missão espiritual e mantém-se nos limites dessa missão.
Cabe aos cristãos, imersos na entranha da sociedade, dar solução aos problemas temporais, contribuir com os demais cidadãos para formar à sua volta um mundo cada vez mais humano e mais cristão, sendo cidadãos exemplares que exigem os seus direitos e sabem cumprir todos os seus deveres para com a sociedade. Na sua fé, potencializada pela caridade, serão sensíveis aos apelos do bem comum e muitas vezes irão além do mero cumprimento das normas legais. A diferença entre a ordem legal e os critérios morais obriga por vezes a adotar comportamentos mais exigentes que os critérios estritamente jurídicos 7.
Ao assumirem plenamente essa responsabilidade, cada um no âmbito dos seus afazeres e das suas possibilidades, sem se escudarem por trás da autoridade da Igreja e muito menos atuarem em seu nome, os cristãos nunca cairão naquilo que Jesus Cristo evitava cuidadosamente: unir a mensagem evangélica, que é universal, a um sistema, a um César. Evitarão também que todos aqueles que não pertencem ao sistema, ao partido ou ao César, se sintam em compreensíveis dificuldades para aceitar uma mensagem que tem como último fim a vida eterna.
II. DAI A CÉSAR o que é de César… O Senhor distinguiu os deveres relacionados com a sociedade dos deveres que se referem a Deus, mas não quis, de forma alguma, impor aos seus discípulos como que uma dupla existência.
O homem é um só, com um só coração e uma só alma, com virtudes e defeitos que influem em toda a sua atuação, e “tanto na vida pública como na privada, o cristão deve inspirar-se na doutrina e no seguimento de Jesus Cristo”8, que sempre tornarão a sua atuação mais humana e nobre. A Igreja sempre proclamou a justa autonomia das realidades temporais, entendida, evidentemente, no sentido de que “as coisas criadas e também a sociedade gozam de leis e valores próprios […]. Mas se por «autonomia do temporal» se quer dizer que a realidade criada é independente de Deus e que os homens podem usá-la sem referi-la ao Criador, não escapa a nenhum fiel a falsidade envolvida em tais palavras. A criatura sem o Criador desaparece” 9; e a própria sociedade se torna desumana, tal como se tem podido observar.
O cristão escolhe as suas opções políticas, sociais, profissionais, de acordo com as suas convicções mais íntimas. E o que oferece à sociedade em que vive é uma visão reta do homem e da sociedade, porque só a doutrina cristã oferece a verdade completa sobre o homem, sobre a sua dignidade e o destino eterno para o qual foi criado.
São muitos, no entanto, os que quereriam que os cristãos tivessem uma vida dupla: uma nas suas atuações temporais e públicas, outra na sua vida de fé. Afirmam até, com palavras ou fatos sectários e discriminatórios, a incompatibilidade entre os deveres civis e as obrigações que o seguimento de Cristo traz consigo. Nós, cristãos, devemos proclamar, com palavras e com o testemunho de uma vida coerente, que “não é verdade que haja oposição entre ser bom católico e servir fielmente a sociedade civil. Assim como não há razão para que a Igreja e o Estado entrem em choque, no exercício legítimo da sua autoridade respectiva, voltados para a missão que Deus lhes confiou.
“Mentem – isso mesmo: mentem! – os que afirmam o contrário. São os mesmos que, em aras de uma falsa liberdade, quereriam «amavelmente» que nós, católicos, voltássemos às catacumbas” 10, ao silêncio.
O nosso testemunho no meio do mundo deve traduzir-se numa profunda unidade de vida. “Vivei e infundi nas realidades temporais a seiva da fé de Cristo – exortava João Paulo II –, conscientes de que essa fé não destrói nada do que é autenticamente humano, mas, pelo contrário, reforça-o, purifica-o, eleva-o.
“Demonstrai esse espírito na atenção prestada aos problemas cruciais. No âmbito da família, vivendo e defendendo a indissolubilidade e os demais valores do matrimônio, promovendo o respeito a toda a vida desde o momento da concepção. No mundo da cultura, da educação e do ensino, escolhendo para os vossos filhos uma educação em que esteja presente o pão da fé cristã.
“Sede também fortes e generosos à hora de contribuir para que desapareçam as injustiças e as discriminações sociais e econômicas; à hora de participar numa tarefa positiva de incremento e justa distribuição dos bens. Esforçai-vos para que as leis e costumes não se afastem do sentido transcendente do homem, nem dos aspectos morais da vida” 11.
III. E A DEUS o que é de Deus. O Senhor também insiste nisto, ainda que os fariseus não lho tivessem perguntado. “O César busca a sua imagem: dai-lha. Deus busca a sua: devolvei-lha. Não perca o César a sua moeda por vós; não perca Deus a sua em vós” 12, comenta Santo Agostinho. De Deus são toda a nossa vida, os nossos trabalhos, as nossas preocupações, as nossas alegrias… Tudo o que é nosso é dEle, particularmente esses momentos que lhe dedicamos exclusivamente, como este tempo de oração ou uns minutos diários de uma leitura espiritual.
Se formos bons cristãos, isso representará um acicate para sermos bons cidadãos, pois a nossa fé nos move constantemente a ser bons estudantes, mães de família abnegadas que tiram forças da sua fé para levar avante o seu lar, empresários justos, trabalhadores capazes e pontuais, etc.; o exemplo de Cristo leva-nos a todos a ser laboriosos, cordiais, alegres, otimistas, a exceder-nos nas nossas obrigações, a ser leais com a empresa, na vida conjugal, com o partido ou associação a que pertencemos. O amor a Deus, se for verdadeiro, é garantia de amor aos homens, e manifesta-se por meio de atos.
“Promulgou-se um edito de César Augusto, que manda recensear todos os habitantes de Israel. Maria e José caminham para Belém… – Não pensaste que o Senhor se serviu do acatamento pontual de uma lei para que se cumprisse a sua profecia?
“Ama e respeita as normas de uma convivência honrada e não duvides de que a tua submissão leal ao dever será também veículo para que outros descubram a honradez cristã, fruto do amor divino, e encontrem a Deus” 13.
(1) Mc 12, 13-17; (2) Lc 23, 2; (3) cfr. J. M. Casciaro, Jesucristo y la sociedad política, 3ª ed., Palabra, Madrid, 1973; (4) Conc. Vat. II, Const. Gaudium et spes, 76; (5) Jo 19, 36; (6) cfr. Lc 12, 12 e segs.; (7) cfr. Conferência Episcopal Espanhola, Los cristianos en la vida pública, 22-IV-1986, 85; (8) ib.; (9) Conc. Vat. II, op. cit., 36; (10) São Josemaría Escrivá, Sulco, n. 301; (11) João Paulo II, Homilia na Missa celebrada no Nou Camp, Barcelona, 7-XI-1982; (12) Santo Agostinho, Comentário ao Salmo 57, 11; (13) São Josemaría Escrivá, op. cit., n. 322.
Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal