TEMPO COMUM. DÉCIMA SEXTA SEMANA. QUARTA‑FEIRA

– As virtudes humanas compõem o fundamento das sobrenaturais.
– Em Jesus Cristo, todas as virtudes humanas alcançam a sua plenitude.
– Necessidade das virtudes humanas no apostolado.

I. O EVANGELHO DA MISSA 1 mostra‑nos como a semente da graça cai em terrenos muito diversos: entre espinhos, no caminho endurecido pela passagem dos transeuntes, no meio de um terreno pedregoso…, em terra boa.

Deus quer que sejamos essa terra bem preparada que acolhe a semente e dá a seu tempo uma boa colheita. E as virtudes naturais constituem no homem o terreno bem preparado que permitirá às virtudes sobrenaturais arraigarem e crescerem com a ajuda da graça. São muitos os que, talvez por ignorância, vivem afastados de Deus, mas cultivam essas disposições nobres e honradas, e por isso estão bem preparados para receber a graça da fé, porque o comportamento humano reto constitui como que o ponto de apoio do edifício sobrenatural.

A vida da graça no cristão não se justapõe à realidade humana, mas penetra‑a, enriquece‑a e aperfeiçoa‑a. “Deste modo explica‑se que a Igreja exija dos seus santos o exercício heróico não somente das virtudes teologais, mas também das morais e humanas; e que as pessoas verdadeiramente unidas a Deus pelo exercício das virtudes teologais se aperfeiçoem também do ponto de vista humano e se esmerem nas virtudes da convivência; serão leais, afáveis, corteses, generosas, sinceras, precisamente por terem todos os afetos da alma centrados em Deus” 2.

A ordem sobrenatural não prescinde da ordem natural, e muito menos a destrói, antes pelo contrário “levanta‑a e aperfeiçoa‑a, e cada uma das ordens presta à outra o seu auxílio, como um complemento proporcionado à sua própria natureza e dignidade, já que ambas procedem de Deus, e Deus não pode deixar de estar de acordo consigo mesmo” 3.

Ainda que a graça possa transformar por si mesma as pessoas, o normal é que requeira as virtudes humanas, pois como poderia arraigar, por exemplo, a virtude cardeal da fortaleza num cristão que não vencesse os pequenos hábitos de comodismo ou de preguiça, que estivesse excessivamente preocupado com o calor ou o frio, que se deixasse dominar habitualmente pelos estados de ânimo? Como poderia viver habitualmente o otimismo cristão, conseqüência da vida de fé, quem fosse pessimista e mal‑humorado no seu relacionamento familiar ou social?

“Nada se deve mutilar da essência ou das qualidades boas da natureza humana. Despersonalizar‑se naquilo que o homem tem de bom – que é muito – é o que de mais ruinoso pode fazer um cristão. Desenvolve a tua natureza, a tua atividade humana; desenvolve‑a até ao infinito. Tudo o que empequenece, contrai e estreita, tudo o que nos detém pelo medo, não é cristianismo. É preciso empregar outra palavra que não seja despersonalização para designar a total purificação do pecado e das más inclinações que o homem tem de levar a cabo dentro de si, com a ajuda de Deus” 4. O Senhor quer que tenhamos uma personalidade definida, cada um a sua, que seja resultado do apreço que temos por tudo o que Ele nos deu e do empenho em cultivar esses dons humanos.

A terra bem preparada – as virtudes naturais – permite que a semente divina lance raízes, cresça e se desenvolva com facilidade, sob o impulso da graça e da correspondência pessoal. Por sua vez, o terreno melhora quando a planta cresce. A vida cristã aperfeiçoa as condições humanas, pois dá‑lhes uma finalidade mais alta; o homem é tanto mais humano quanto mais cristão.

II. O SENHOR QUER que pratiquemos todas as virtudes naturais: o otimismo, a generosidade, a ordem, a rijeza, a alegria, a cordialidade, a sinceridade, a veracidade… Em primeiro lugar, porque devemos imitá‑lo, e Ele é perfeito Deus e Homem perfeito. Nele, todas as virtudes próprias da pessoa chegam à plenitude porque, sendo Deus, manifestou‑se profundamente humano.

Jesus “vestia‑se conforme o costume da época, tomava os alimentos correntes, comportava‑se segundo os costumes do lugar, raça e época a que pertencia. Impunha as mãos, ordenava, aborrecia‑se, sorria, chorava, discutia, cansava‑se, sentia sono e fadiga, fome e sede, angústia e alegria. E a união, a fusão entre o divino e o humano era tão total, tão perfeita, que todas as suas ações eram ao mesmo tempo divinas e humanas. Era Deus e gostava de chamar‑se Filho do Homem” 5.

O próprio Cristo exigiu de todos a perfeição humana contida na lei natural6, formou os seus discípulos não só nas virtudes sobrenaturais, mas também no comportamento social, na sinceridade, na veracidade, na nobreza7, instou a que fossem homens de juízo ponderado8… Doeu‑se pessoalmente com a ingratidão de uns leprosos que tinha curado9, e com a falta dessas manifestações de cortesia e de urbanidade10 que são próprias das pessoas educadas. Deu tanta importância às virtudes humanas que chegou a dizer aos seus discípulos: Se não entendeis das coisas terrenas, como entendereis das celestiais? 11

Se procurarmos humanamente ser cada vez mais simples, leais, trabalhadores, compreensivos, equilibrados…, estaremos imitando Cristo, e estaremos preparando‑nos para ser a boa terra em que as virtudes sobrenaturais lançam com facilidade as suas raízes. Para isso devemos contemplar muitas vezes a figura do Mestre, as suas palavras, gestos e critérios, e ver nele a plenitude de tudo o que é nobre e reto. Em Jesus temos o ideal humano e divino a que nos devemos parecer.

III. O CRISTÃO que está no meio do mundo é como uma cidade situada no alto de um monte, como a luz sobre o candeeiro. E o seu lado humano é a primeira coisa que os outros vêem; o exemplo das pessoas íntegras, leais, honradas, valentes… é o que arrasta. Por isso, as virtudes próprias da pessoa – todas as condições naturais boas – convertem‑se em instrumento da graça para aproximar os outros de Deus: o prestígio profissional, a amizade, a simplicidade, a cordialidade…, podem preparar convenientemente as almas para ouvirem com atenção a mensagem de Cristo. As virtudes humanas são, pois, necessárias à prática de um apostolado eficaz. Se os nossos amigos não as vêem, dificilmente chegarão a entender as virtudes sobrenaturais. Se um cristão não é veraz nos assuntos correntes, como é que os seus amigos podem confiar nele quando lhes fala de Deus? Como podemos dar a conhecer o verdadeiro rosto de Cristo se falhamos no que é elementar, nas virtudes do caráter e do respeito à palavra dada, na pontualidade, na magnanimidade, na equanimidade, na paciência?

Devemos dar a conhecer que Cristo vive por meio da nossa alegria habitual, da serenidade nas circunstâncias mais difíceis e penosas, do trabalho bem acabado, da sobriedade e da temperança, da pureza no olhar, nas conversas e no trato com pessoas de outro sexo… Uma vocação cristã vivida integralmente deve dar forma a todos os aspectos da existência.

Todos aqueles que de alguma maneira se relacionam conosco devem notar – a maioria das vezes, pelo nosso comportamento – a alegria da graça que palpita no nosso coração. “Temos que conduzir‑nos de tal maneira que, ao ver‑nos, os outros possam dizer: este é cristão porque não odeia, porque sabe compreender, porque não é fanático, porque está acima dos instintos, porque é sacrificado, porque manifesta sentimentos de paz, porque ama” 12, porque é generoso com o seu tempo, porque não se queixa, porque sabe prescindir do supérfluo e do ostentoso…

O mundo que nos rodeia necessita do testemunho de homens e mulheres que, trazendo Cristo nos seus corações, sejam exemplares. Talvez nunca se tenha falado tanto dos direitos humanos e das conquistas humanas; poucas vezes a humanidade foi tão consciente das suas próprias forças. Mas talvez nunca se tenham deixado tão claramente de lado os valores próprios da pessoa, que são aqueles que possuímos enquanto imagem de Deus.

O mundo espera dos cristãos este ensinamento fundamental: que todos fomos chamados a ser filhos de Deus. E para alcançarmos essa meta, temos de viver em primeiro lugar como homens e mulheres íntegros, desenvolvendo todos os valores naturais que o Senhor nos deu. Assim, com simplicidade, mostraremos ao mundo que, para imitar o Senhor, é necessário que sejamos muito humanos; e que, sendo plenamente humanos, estamos a caminho – porque a graça nunca falta – de ser plenamente filhos de Deus.

(1) Mt 13, 1‑9; (2) A. del Portillo, Escritos sobre el sacerdocio, Palabra, Madrid, 1970, pág. 30; (3) Pio XI, Enc. Divini illius Magistri, 31‑XII‑1929; (4) J. Urteaga, O valor divino do humano, Quadrante, São Paulo, 1975, pág. 44; (5) F. Suárez, El sacerdote y su ministério, pág. 131; (6) Mt 5, 21; (7) Mt 5, 37; (8) Jo 9, 1‑3; (9) Lc 17, 17‑18; (10) Lc 7, 44‑46; (11) Jo 3, 12; (12) Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, n. 122.

Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal