Tempo Pascal. Segunda Semana. Quarta-feira
“O Senhor amou-nos primeiro. Amor com amor se paga. Santidade nas tarefas de cada dia. Amor efetivo. A vontade de Deus. Amor e sentimento. Abandono em Deus. Cumprimento dos deveres próprios.”
TANTO AMOU DEUS o mundo que lhe deu o seu Filho Unigênito, para que todo aquele que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna l.
Com estas palavras, o Evangelho da Missa mostra como a Paixão e Morte de Jesus Cristo é a suprema manifestação do amor de Deus pelos homens. Foi Deus quem tomou a iniciativa no amor, entregando-nos Aquele que mais ama, Aquele que é objeto das suas complacências2: o seu próprio Filho. A nossa fé “é uma revelação da bondade, da misericórdia, do amor de Deus por nós. Deus é amor (cf. 1 Jo 4, 16), quer dizer, amor que se difunde e se dá com prodigalidade; e tudo se resume nesta grande verdade que tudo explica e tudo ilumina. É necessário olhar a história de Jesus sob essa luz. Ele me amou, escreve São Paulo, e cada um de nós pode e deve repetir a si próprio: Ele me amou e se entregou por mim (Gal 2, 20)”3.
O amor de Deus por nós culmina no Sacrifício do Calvário. Deus deteve o’ braço de Abraão quando estava prestes a sacrificar o seu único filho, mas não deteve o braço dos que pregaram o seu Filho unigênito na Cruz. Por isso São Paulo exclama cheio de esperança: Aquele que não poupou o seu próprio Filho […], como não nos dará também com Ele todas as coisas? A entrega de Cristo constitui um apelo urgente para que correspondamos a esse amor: amor com amor se paga. O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus5, e Deus é amor6.
Por isso o coração do homem foi feito para amar, e, quanto mais ama, mais se identifica com Deus.
A santificação pessoal não tem, pois, por centro a luta contra o pecado, mas o amor a Cristo, que se nos mostra profundamente humano, conhecedor de tudo o que é nosso. O amor de Deus pelos homens e dos homens por Deus é um amor de mútua amizade. E uma das características próprias da amizade é o trato. Para amar o Senhor, é necessário conhecê-lo, conversar com Ele… Conhecemo-lo quando meditamos a sua vida nos Evangelhos. Conversamos com Ele quando oramos.
A consideração da Santíssima Humanidade do Senhor alimenta continuamente o nosso amor a Deus e é um ensinamento vivo sobre o modo de santificarmos os nossos dias. Na sua vida oculta em Nazaré, Jesus Cristo quis assumir aquilo que há de mais corriqueiro na existência humana: a vida cotidiana de um trabalhador manual que sustenta uma família. E assim, vemo-lo durante quase toda a sua vida trabalhando dia após dia, mantendo em bom estado os instrumentos da pequena oficina, atendendo com simplicidade e cordialidade os vizinhos que vinham encomendar-lhe uma mesa ou uma viga para a nova casa, cuidando com carinho de sua Mãe… Assim cumpriu a vontade de seu Pai-Deus nesses anos da sua existência. Contemplando a sua vida, aprendemos a santificar a nossa: o trabalho, a família, as amizades… Tudo o que é verdadeiramente humano pode ser santo, pode ser veículo do nosso amor a Deus, porque o Senhor, ao assumi-lo, o santificou. Saber que Deus nos ama, com um amor infinito, é a boa nova que alegra e dá sentido à nossa existência. Nós também podemos afirmar que conhecemos e cremos no amor que Deus tem por nós. E, perante esse amor, sentimo-nos incapazes de exprimir o que também o nosso coração não consegue abarcar: “Saber que me amas tanto, meu Deus, e… não enlouqueci!”8
Tudo o que o Senhor fez e faz por nós é um esbanjamento de atenções e graças: a sua Encarnação, a sua Paixão e Morte na Cruz, que pudemos contemplar nos dias passados, o perdão constante das nossas faltas, a sua presença contínua no Sacrário, os auxílios que nos envia diariamente… Considerando o que fez e faz pelos homens, nunca nos deve parecer suficiente a nossa correspondência a tanto amor. A maior prova de correspondência é a fidelidade, a lealdade, a adesão incondicional à Vontade de Deus. É o que Jesus nos ensina quando nos dá a conhecer os seus desejos infinitos de fazer a vontade do Pai e nos diz que o seu alimento é cumprir a vontade dAquele que o enviou9. Eu guardei os mandamentos de meu Pai — diz o Senhor — e permaneço no seu amor10.
A vontade de Deus reside, antes de mais nada, no cumprimento fiel dos Mandamentos e demais preceitos que a Igreja nos propõe. É neles que descobrimos o que Deus quer para nós. E é no seu cumprimento, realizado com nobreza humana e na presença de Deus, que encontramos o amor a Deus, a santidade.
O amor a Deus não consiste em sentimentos sensíveis, ainda que o Senhor os possa dar para nos ajudar a ser mais generosos. Consiste essencialmente na plena identificação do nosso querer com o de Deus.
Por isso devemos perguntar-nos com freqüência: faço neste momento o que devo fazer? “Amor com amor se paga”. Mas há de ser um amor efetivo, que se manifeste em atos concretos, no cumprimento dos nossos deveres para com Deus e para com os outros, ainda que o sentimento esteja ausente e tenhamos que caminhar a contragosto. “É evidente que a suma perfeição não consiste em regalos interiores nem em grandes arroubamentos — escrevia Santa Teresa —, mas em termos a nossa vontade tão conforme com a de Deus, que não haja coisa alguma que entendamos que Ele quer, e não a queiramos nós com toda a nossa vontade” 12.
No serviço a Deus, o cristão deve deixar-se conduzir pela fé, nunca pelos estados de ânimo.“Guiar-se pelo sentimento seria o mesmo que entregar o governo da casa ao criado e depor o dono. O mal não está no sentimento, mas na importância que se lhe concede […]. Há almas para quem as emoções constituem toda a piedade, a tal ponto que se persuadem de tê-la perdido quando o sentimento desaparece […]. Se essas almas soubessem compreender que esse é justamente o momento de começar a tê-la!” 13
O verdadeiro amor, sensível ou não, estende-se a todos os aspectos da nossa existência, numa verdadeira unidade de vida; leva a “pôr Deus em todas as coisas, pois sem Ele se tornariam insípidas. Uma pessoa piedosa, com uma piedade sem beatice, procura cumprir o seu dever: a piedade sincera leva ao trabalho, ao cumprimento prazeroso — ainda que custe — do dever de cada dia… Há uma íntima união entre essa realidade sobrenatural interior e as manifestações externas dos afazeres humanos. O trabalho profissional, as relações humanas de amizade e de convivência, o empenho em promover — lado a lado com os nossos concidadãos — o bem e o progresso da sociedade são frutos naturais, conseqüência lógica, dessa seiva de Cristo que é a vida da nossa alma” 14. A falsa piedade não se reflete na vida ordinária do cristão. Não se traduz numa melhora da conduta, numa ajuda aos outros.
O cumprimento da vontade de Deus nos deveres de cada dia — a maior parte das vezes pequenos — é o caminho mais seguro para o cristão se santificar no meio das realidades terrenas.
Podemos cumprir esses deveres de maneiras muito diferentes: com resignação, como quem não tem outra saída senão executá-los; aceitando-os, o que revela uma adesão mais profunda e meditada; mostrando-nos de acordo, querendo o que Deus quer porque, ainda que não o compreenda nesse momento, o cristão sabe que Deus é nosso Pai e quer o melhor para os seus filhos; ou com pleno abandono, abraçando sempre a vontade do Senhor, sem lhe estabelecer limites de nenhum gênero.
Esta última é a atitude que o Senhor nos pede: que o amemos sem condições, sem ficar à espera de situações mais favoráveis, nas coisas correntes de cada dia e, se Ele assim o quiser, em circunstâncias mais difíceis e extraordinárias. “Quando te abandonares de verdade no Senhor, aprenderás a contentar-te com o que vier, e a não perder a serenidade se as tarefas — apesar de teres posto todo o teu empenho e utilizado os meios oportunos — não correm a teu gosto… Porque terão “corrido” como convém a Deus que corram. Com palavras de uma oração que a Igreja nos propõe para depois da Missa, digamos ao Senhor: Volo quidquid visf volo quia vis, volo quomodo vis, volo quamdiu vis16: quero o que queres, quero porque o queres, quero como o queres, quero enquanto o quiseres. A Santíssima Virgem, que pronunciou e levou à prática aquele faça-se em mim segundo a tua palavra17, ajudar-nos-á a cumprir em tudo a vontade de Deus.
(1) Jo 3, 15; (2) cfr. Mt 3, 17; (3) Paulo VI, Homília na festa do Corpus Christi, 13-VI-1975; (4) Rom 8, 32; (5) cfr. Gen 1, 27; (6) 1 Jo 4, 8; (7) 1 Jo 4, 16; (8) São Josemaría Escrivá, Caminho, n. 425; (9) cfr. Jo 15, 10; (10) Jo 15, 10; (11) cfr. São Josemaría Escrivá, Caminho, n. 772; (12) Santa Teresa, Fundações, 5, 10; (13) J. Tissot, A vida interior, pág. 100; (14) São Josemaría Escrivá, In memoriam, EUNSA, Pamplona, 1976, págs. 51-52; (15) São Josemaría Escrivá, Sulco, n. 860; (16) Missal Romano, Oração do Papa Clemente XI; (17) Lc 1, 38.