TEMPO COMUM. VIGÉSIMA PRIMEIRA SEMANA. QUARTA-FEIRA

– O exemplo de São Paulo.
– A qualidade humana do trabalho.
– Amar a nossa ocupação profissional.

I. O TRABALHO É um dom de Deus, um grande bem para o homem, ainda que seja “o sinal de um bem árduo, confor­me a terminologia de São Tomás […]. E é não somente um bem útil ou para ser usufruído, mas um bem digno, isto é, um bem que corresponde à dignidade do homem, que ex­pressa essa dignidade e a aumenta” 1. Uma vida sem trabalho c0rrompe-se, e, no trabalho, o homem “toma-se mais ho­mem” 2, mais digno e mais nobre, se o realiza como Deus quer.

O trabalho é conseqüência do preceito de dominar a ter­ra 3 dado por Deus à humanidade, que se tomou penoso pelo pecado original 4, mas que constitui o “eixo da nossa santi­dade e o meio sobrenatural e humano apto para levarmos Cristo conosco e fazermos o bem a todos” 5. E como que a coluna vertebral do homem, que dá base de sustentação a toda a sua vida, e o meio através do qual devemos alcançar ti nossa santidade e a dos outros. Um modo errôneo de equacionar o trabalho profissional pode repercutir em toda a vida do homem, mesmo nas suas relações com Deus.

Por isso, compreendemos bem os males que a preguiça, 0 trabalho mal feito, as tarefas realizadas pela metade podem ocasionar… “O ferro que jaz ocioso, consumido pela ferru­gem, torna-se mole e inútil; mas, se é empregado no traba­lho, é muito mais útil e belo, e não fica muito atrás da prata pelo seu brilho. A terra baldia não produz nada de útil, mas mato, cardos, espinhos e árvores infrutíferas; mas a que é cultivada coroa-se de suaves frutos. E, para dizê-lo numa só palavra, todo o ser se corrompe pela ociosidade e se aperfei­çoa pela operação que lhe é própria” 6; o homem, pelo seu trabalho.

São Paulo, como lemos na primeira Leitura da Missa 7, fala aos primeiros cristãos de Tessalônica do modo como se comportou com eles enquanto lhes pregava a Boa Nova de Jesus: Estais lembrados – diz-lhes – dos nossos trabalhos e fadigas; trabalhando noite e dia para não sermos pesados a nenhum de vós…8 E mais tarde, na segunda Epístola: Vós mesmos sabeis como deveis imitar-nos; pois não vivi entre vós sem trabalhar, nem comi de graça o pão de ninguém, mas trabalhei e cansei-me de noite e de dia para não ser pesado a ninguém 9. O Espírito Santo, com este exemplo, inculcava-nos um princípio prático bem claro a seguir: Se al­guém não quiser trabalhar, que não coma.

Hoje, na nossa oração serena e sossegada, temos que ter presente que o Senhor também espera de nós esse mesmo espírito de laboriosidade, de trabalho intenso, que se viveu entre os primeiros cristãos. Um dos escritos cristãos mais antigos – a Didaquê – deixou-nos este admirável testemu­nho: “Todo aquele que chegar a vós em nome do Senhor, seja recebido; depois, examinando-o, vireis a conhecê-lo […]. Se quem chega é um viajante, não permanecerá entre vós mais do que dois dias ou, se for necessário, três. Mas, se quiser estabelecer-se entre vós, tendo um ofício, que tra­balhe e assim se alimente. E se não tiver ofício, provede conforme a vossa prudência, de modo que não viva entre vós nenhum cristão ocioso. Se não quiser fazer assim, é um traficante de Cristo; estai alerta contra esses” 10.

II NOS SEUS ANOS de Nazaré, o Senhor deu-nos um exem­plo admirável da importância do trabalho e da perfeição hu­mana e sobrenatural com que devemos realizar a nossa tare­fa profissional. “Jesus, crescendo e vivendo como um de nós, revela-nos que a existência humana, a vida comum e de cada dia, tem um sentido divino. Por muito que tenhamos considerado estas verdades, devemos encher-nos sempre de admiração ao pensar nos trinta anos de obscuridade que constituem a maior parte da vida de Jesus entre os seus ir­mãos, os homens. Anos de sombra, mas, para nós, claros como a luz do sol” 11.

A sua própria maneira de falar, as parábolas e imagens que emprega na sua pregação revelam um homem que co­nheceu muito de perto o trabalho; fala sempre “para quem se afana, para uma vida ordinária sempre regida pela lei da normalidade, pela aparição previsível dos mesmos problemas para as mesmas pessoas. Este é o ambiente da pregação de Cristo; os seus ensinamentos ficaram graficamente inseridos neste contexto. Não era o “filósofo”, nem o “visionário”, mas o artesão. Alguém que trabalhava, como todos” 12.

Durante a sua vida pública, o Mestre chamou para junto de si pessoas que estavam habituadas ao trabalho: São Pe­dro, pescador de ofício, voltará às suas tarefas de pesca logo que tiver a primeira oportunidade,3; São Mateus é convida­do a seguir o Senhor num momento em que estava ocupado no seu ofício de cobrador de impostos, e o mesmo aconte­ceu com os outros Apóstolos.

Quando São Paulo partiu de Atenas e chegou a Corinto, encontrou um judeu chamado Áquila, originário do Ponto, e sua esposa Priscila. Juntou-se a eles. E como era do mesmo ofício, hospedou-se em casa deles e trabalhava em compa­nhia de Áquila; ambos eram fabricantes de lonas14. Foi du­rante essa estadia de ano e meio em Corinto que São Paulo escreveu as exigentes exortações que dirigiu aos cristãos de Tessalônica, convencido de que muitos dos males que vi­nham afligindo aquela comunidade cristã se deviam à cir­cunstância de que alguns eram mais dados a falar e a andar de casa em casa do que a ocupar-se no seu trabalho.

Devemos examinar com freqüência a qualidade huma­na do nosso trabalho: se o começamos e terminamos no ho­rário previsto, ainda que alguns dos nossos colegas, ou mes­mo todos, não o façam; se o realizamos com ordem, sem deixar para o fim os assuntos mais difíceis ou menos gratos; se trabalhamos intensamente, procurando evitar conversas, chamadas telefônicas inúteis ou menos necessárias; se procu­ramos melhorar constantemente a qualidade desse trabalho com o estudo oportuno, procurando estar atualizados nas no­vas questões que surgem em todas as profissões; se nos excedemos em cumpri-lo, como acontece com tudo o que se ama, mas com prudência e retidão, sem prejudicar o tempo que devemos à família, ao apostolado, à nossa formação es­piritual e religiosa… Numa palavra, contemplemos Jesus na sua oficina de Nazaré, pecamos licença ao Senhor para en­trar ali com os olhos da fé, e então veremos se o nosso tra­balho tem a qualidade e a profundidade que Ele pede aos que o seguem.

III. TEMOS QUE AMAR e cuidar do nosso trabalho porque é um preceito do nosso Pai-Deus. Mediante o trabalho de to­dos os dias, a personalidade desenvolve-se, ganha-se o preci­so para as necessidades da família e para as pessoais, bem como para prestar ajuda às boas obras de formação, de apostolado, etc. Temos que amar o trabalho e convertê-lo ao mesmo tempo em tema e campo de oração, porque, acima de tudo, é caminho de santidade.

Podemos oferecer todos os dias ao Senhor imensas coi­sas que procuramos que estejam bem feitas: o estudante po­derá oferecer-lhe horas de estudo intensas e seguidas; a mãe de família, a solicitude eficaz pelos filhos, pelo marido, o cuidado dos mil detalhes que fazem da sua casa um verda­deiro lar; o médico, a par da competência profissional, o tra­to amável e acolhedor com os pacientes; as enfermeiras, es­sas horas cheias de serviço contínuo, como se cada um dos doentes fosse o próprio Cristo…

É no meio e na execução do próprio trabalho que devem surgir com freqüência os pedidos de ajuda ao Senhor, as ações de graças, os desejos de dar glória a Deus com aquilo que temos entre mãos… Nós, os cristãos correntes, os sim­ples leigos, não nos santificamos apesar do trabalho, mas através do trabalho; encontramos o Senhor nos mais varia­dos incidentes que o compõem, uns agradáveis, outros me­nos, mas todos eles o campo por excelência em que se exer­citam as virtudes humanas e as sobrenaturais.

O amor ao nosso trabalho profissional levar-nos-á fre­qüentemente a permanecer, talvez por muitos anos ou por toda a vida, na mesma tarefa. Isto não significa que não de­vamos aspirar a conseguir uma situação ou um lugar de tra­balho de mais destaque. Mas esse desejo legítimo, que faz parte da boa mentalidade profissional, não deve causar in­tranqüilidade nem desassossego, como se o êxito profissional e financeiro fosse o único motivo que nos leva a trabalhar. Os cristãos não devem medir os seus trabalhos unicamente pelo dinheiro, como se fosse o que em última análise lhes importa. Enquanto não nos chegam essas oportunidades de subir na escala profissional, se fizemos jus a isso, devemos santificar precisamente essas tarefas que nos ocupam, sem uma mentalidade provisória que comprometeria a sua eficá­cia santificadora.

E por fim, lembremo-nos de que São Paulo, no meio da preocupação por sustentar-se e não ser gravoso a ninguém, continuava a ser o Apóstolo das gentes, o eleito de Deus, e servia-se da sua profissão para aproximar os outros de Cris­to. Assim devemos nós fazer, qualquer que seja o nosso ofí­cio e o nosso lugar na sociedade.

(1) João Paulo II, Ene. Laborem exercens, 14-IX-1981, I, 9; (2) ib.; (3) cfr. Gen 1, 28; (4) cfr. Gen 3, 17; (5) São Josemaria Escrivá, Carta, 14-11-1950; (6) São João Crisóstomo, Homília sobre Priscila e Àquila; (7) 1 Tess 2, 9-13; Primeira leitura da Missa da quarta-feira da vigésima pri­meira semana do TC, ano I; (8) 1 Tess 2, 9; (9) 2 Tess 3, 7-8; (10) Didaquê ou Doutrina dos Doze Apóstolos; (11) São Josemaria Escrivá, É Cristo que passa, n. 14; (12) R. Gómez Pérez, La fe y los dias, pág. 20; (13) cfr. Jo 21, 3; (14) cfr. At 18, 1-3.

Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal