TEMPO COMUM. VIGÉSIMO SEGUNDO DOMINGO. ANO B

– A alma limpa.
– A santa pureza no meio do mundo.
– Pedir e empenhar‑se para que o coração nunca fique manchado.

I. SÃO MARCOS, que dirigiu o seu Evangelho aos cristãos procedentes do paganismo, teve que explicar em diversas passagens certos costumes judaicos para que os seus leitores compreendessem melhor os ensinamentos do Senhor. No Evangelho da Missa1, diz‑nos que os judeus, e de modo especial os fariseus, não comem sem se purificarem; e praticam muitas outras observâncias tradicionais como lavar os copos e os jarros, os vasos de cobre e os leitos.

Estas purificações não se faziam por meros motivos de higiene ou de urbanidade, mas por terem um significado religioso: eram símbolo da pureza moral com que é necessário aproximar‑se de Deus. O Salmo 24, que fazia parte da liturgia de entrada no santuário de Jerusalém, diz assim: Quem subirá ao monte do Senhor, ou quem estará no seu lugar santo? O homem de mãos inocentes e de coração puro…2 A pureza de coração era uma condição para as pessoas se aproximarem de Deus, participarem do seu culto e verem o seu rosto. Mas os fariseus retiveram apenas aquilo que era exterior, e aumentaram até os ritos e a sua importância, ao mesmo tempo que descuravam o fundamental: a limpeza de coração, da qual todas as coisas externas eram sinal e símbolo3.

Na cena relatada pelo Evangelho, os fariseus e alguns escribas vindos de Jerusalém estranharam que alguns dos discípulos do Senhor comessem o pão com as mãos impuras, isto é, por lavar; e perguntaram ao Senhor: Por que os teus discípulos não andam segundo a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos? Diante dessa atitude vazia e formalista, o Senhor respondeu‑lhes energicamente: Hipócritas, deixais de lado o mandamento de Deus para vos aferrardes à tradição dos homens. A verdadeira pureza – as mãos inocentesdo Salmo 24 são muito mais do que lavar as mãos – deve começar pelo coraçãopois dele procedem os maus pensamentos, os adultérios, as fornicações, os homicídios, os furtos, as avarezas, as malícias, as fraudes, as desonestidades, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. As ações do homem procedem do coração. E se este está manchado, o homem inteiro fica manchado.

A impureza não se refere apenas à desordem da sensualidade – ainda que esta, quer dizer, a luxúria, deixe uma marca profunda –, mas também ao desejo imoderado de bens materiais, à atitude que leva a ver os outros com maus olhos, com intenção retorcida, à inveja, ao rancor, à inclinação egocêntrica de pensar em si mesmo e esquecer os outros, à apatia interior… As obras externas ficam marcadas pelo que há no coração.

Quantas faltas externas de caridade não têm a sua origem em suscetibilidades ou em rancores depositados no fundo da alma, e que deveriam ser cortados mal aparecessem!

Jesus rejeita a mentalidade que se ocultava por trás daquelas prescrições, desprovidas de conteúdo interior, e ensina‑nos a amar a pureza de coração, que nos permitirá ver a Deus no meio das nossas tarefas. Ele quer – assim no‑lo disse tantas vezes! – reinar nos nossos afetos, acompanhar‑nos nas nossas atividades, dar um sentido novo a tudo o que fazemos. Peçamos‑lhe que nos ajude a ter sempre um coração limpo de todas essas desordens.

II. A PUREZA DE ALMA– castidade e retidão interior nos afetos e sentimentos – tem que ser plenamente amada e procurada com alegria e com empenho, apoiando‑nos sempre na graça de Deus. Só pode ser alcançada mediante uma luta positiva e constante, prolongada ao longo de uma vida que se mantém vigilante pelo exame de consciência diário, para não pactuar com pensamentos e atitudes que afastam de Deus e dos outros; é também fruto de um grande amor à Confissão freqüente bem feita, mediante a qual o Senhor nos purifica e nos “lava” o coração, cumulando‑nos da sua graça.

A pureza interior traz consigo um fortalecimento e um crescimento do amor, e uma elevação do homem à dignidade a que foi chamado, essa dignidade de que o homem tem cada vez maior consciência4, e da qual no entanto parece afastar‑se cada vez mais. “O coração humano continua a sentir hoje os mesmos impulsos que Jesus denunciava como causa e raiz da impureza: o egoísmo em todas as suas formas, as intenções desvirtuadas, as motivações rasteiras que tantas vezes inspiram a conduta dos homens. Mas parece que nestes momentos a vida do mundo denota um aspecto que deve ser avaliado como novo pela sua difusão e gravidade: a degradação do amor humano e uma avalanche de impureza e sensualidade que se abateu sobre a face da terra. É uma forma de rebaixamento do homem que afeta a intimidade radical do seu ser, o que é mais nuclear na sua personalidade e que, pela extensão que alcançou, deve ser considerada como um fenômeno histórico sem precedentes”5.

Com a ajuda da graça, é tarefa de todos os cristãos mostrar, com uma vida limpa e com a palavra, que a castidade é uma virtude essencial a todos – homens e mulheres, jovens e adultos –, e que cada um deve vivê‑la de acordo com as exigências do estado a que o Senhor o chamou; “é exigência de amor. É a dimensão da sua verdade interior no coração do homem”6, e sem ela não seria possível amar nem a Deus nem aos outros.

A lealdade aos nossos compromissos de homens e mulheres que seguem o Senhor, a fortaleza e o indispensável senso comum devem levar‑nos a agir com prudência, a evitar as ocasiões de perigo para a saúde da alma e para a integridade da vida espiritual: a deixar de ouvir ou ver determinados programas de televisão; a guardar os sentidos; a não participar de uma conversa que rebaixa a dignidade dos que estão presentes; a não descuidar os detalhes de pudor e de modéstia na maneira de vestir, no asseio pessoal, no esporte; a manifestar sem complexos a nossa repulsa pelos espetáculos obscenos… Convém lembrar‑se de que a palavra “obsceno” procede do antigo teatro grego e romano, e significava aquilo que, por respeito aos espectadores, não devia representar‑se em cena, por pertencer à intimidade pessoal: mesmo essa civilização pagã – que tinha normas morais tão relaxadas – compreendia que há coisas que não devem ser feitas diante de outras pessoas.

Talvez haja situações em que não nos seja fácil viver como bons cristãos em ambientes que perderam o sentido moral da vida; contudo, o Senhor nunca nos prometeu um caminho cômodo, mas as graças necessárias para vencer.

Deixarmo‑nos arrastar pelos respeitos humanos ou pelo medo de não parecermos naturais, com uma “naturalidade pagã”, revelaria uma personalidade débil, vulgar, e sobretudo, pouco amor ao Mestre.

III. É DO FUNDO DO CORAÇÃO humano que o Espírito Santo quer fazer brotar a fonte de uma vida nova, que penetre pouco a pouco o homem inteiro. Desta maneira, a pureza interior, e a virtude da castidade em particular – pureza, em português e em outras línguas, identifica‑se com a virtude da castidade, ainda que em si mesma abarque um campo mais amplo7 –, é uma das condições necessárias e um dos frutos da vida interior8.

Essa pureza cristã, a castidade, sempre constituiu uma das glórias da Igreja e uma das manifestações mais claras da sua santidade. Hoje, como nos tempos dos primeiros cristãos, muitos homens e mulheres procuram viver a virgindade e o celibato no meio do mundo – sem serem mundanos –, por amor do Reino dos céus9. E uma grande multidão de esposos cristãos – pais e mães de família – vivem santamente a castidade segundo o seu estado matrimonial. Uns e outros são testemunhas do amor cristão, que se ajusta à vocação de cada um, pois, como ensina a Igreja, “tanto o matrimônio como a virgindade e o celibato são dois modos de expressar e de viver o único mistério da Aliança de Deus com o seu povo”10.

Nós, cada um no estado em que foi chamado – solteiro, casado, viúvo, sacerdote –, pedimos hoje ao Senhor que nos conceda um coração bom, limpo, capaz de compreender todas as criaturas e de aproximá‑las de Deus; capaz de uma bondade sem limites para com os que nos procuram, talvez destruídos por dentro, pedindo e às vezes mendigando um pouco de luz e de alimento para se reerguerem. Talvez nos possa servir agora, e em muitas ocasiões, como jaculatória, a prece que a liturgia dirige ao Espírito Santo na festa de Pentecostes:

“Limpa na minha alma o que está sujo, rega o que se tornou árido, sem fruto, cura o que está doente, dobra o que é rígido, aquece o que está frio, dirige o que se extraviou…”11

E juntamente com a oração, um desejo eficaz de lutar com empenho para que o coração não fique nunca manchado: não só pelos pensamentos e desejos impuros, como por qualquer sentimento ou atitude de cólera, de inveja, de rancor, de ressentimento ou rebeldia…, que são coisas que mancham e deixam a alma mergulhada em tristeza e em trevas. Amemos o sacramento da Confissão, em que o coração se purifica cada vez mais e se dilata para lançar‑se às boas obras.

A nossa Mãe Santa Maria, que desde o momento da sua conceição esteve cheia de graça, há de ensinar‑nos a ser fortes se em algum momento nos custa um pouco mais manter o coração limpo e cheio de amor pelo seu Filho.

(1) Mc 7, 1‑8; (2) cfr. Sl 24, 3‑4; (3) cfr. João Paulo II, Audiência geral, 10‑XII‑1980; (4) cfr. Conc. Vat. II, Decl. Dignitatis humanae, 1; (5) J. Orlandis, As oito bem‑aventuranças, págs. 114‑115; (6) João Paulo II, Audiência geral, 3‑XII‑1980; (7) idem, Audiência geral, 10‑XII‑1980; (8) cfr. S. Pinckaers, En busca de la felicidad, págs. 141‑142; (9) Mt 19,12; (10) João Paulo II, Exort. Apost. Familiaris consortio, 16; (11) cfr. Missal Romano, Seqüência, Missa do dia de Pentecostes.