TEMPO COMUM. SEGUNDA SEMANA. SÁBADO
— Tem o seu fundamento na filiação divina.
— Cruz e alegria. Causas da tristeza. Remédios.
— O apostolado da alegria.
I. QUANDO O MUNDO saiu das mãos de Deus, tudo transbordava de bondade; de uma bondade que teve o seu ponto culminante na criação do homem1. Mas com o pecado chegou o mal ao mundo e, qual erva daninha, arraigou-se na natureza humana e injetou nela pessimismo e tristeza.
A alegria verdadeira, unida sempre ao bem, veio plenamente à terra no dia em que Nossa Senhora deu o seu consentimento ao plano divino e o Filho de Deus se encarnou no seu seio. Na Virgem Maria já reinava uma profunda alegria, porque fora concebida sem o pecado original e a sua união com Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo era total. Com a sua resposta amorosa aos desígnios divinos, converteu-se em causa – no sentido pleno da palavra – da nova alegria do mundo, porque nEla veio a nós Jesus Cristo, que é o júbilo total do Pai, dos anjos e de todos os homens. Aquele em quem Deus Pai pôs todas as suas complacências2. E a missão de Santa Maria, tanto naquela ocasião como agora, é dar-nos Jesus, o seu Filho. Por isso chamamos a Nossa Senhora Causa da nossa alegria.
Há poucas semanas, contemplávamos o anúncio do Anjo aos pastores: Não temais, pois anuncio-vos uma grande alegria, que é para todo o povo: nasceu-vos hoje na cidade de Davi…3 A alegria verdadeira, aquela que perdura apesar das contradições e da dor, tal como a vemos no Evangelho, é a dos que se encontraram com Deus nas mais diversas circunstâncias e souberam segui-lo: é a alegria exultante do velho Simeão por ter o Menino Jesus nos seus braços4; ou a imensa felicidade dos Magos – sentiram grandíssima alegria5 – ao verem de novo a estrela que os conduzia a Jesus Maria e José; e a de todos aqueles que num dia inesperado descobriram Cristo; e a de Pedro no Tabor: Senhor, é bom estarmos aqui6; ou o júbilo que os dois discípulos que caminhavam desalentados para Emaús recuperaram ao reconhecerem Jesus7; e o alvoroço dos Apóstolos cada vez que Cristo ressuscitado lhes aparece…8 E, acima de todas, a alegria de Maria: A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito exulta de alegria em Deus, meu salvador9. Ela possui Jesus plenamente e a sua alegria é a maior que um coração humano pode conter.
A alegria é a conseqüência imediata de certa plenitude de vida. E esta plenitude de vida consiste, antes de mais nada, na sabedoria e no amor10. Deus, na sua infinita misericórdia, fez-nos em Jesus Cristo partícipes da sua natureza, que é precisamente plenitude de Vida, Sabedoria infinita, Amor incomensurável. Não podemos alcançar maior alegria do que aquela que mergulha as suas raízes no fato de sermos filhos de Deus pela graça, e que é uma alegria capaz de subsistir na doença e no fracasso: Eu vos darei uma alegria – havia prometido o Senhor na Última Ceia – que ninguém vos poderá tirar11. Quanto mais perto estivermos de Deus, tanto maior será a nossa participação no seu Amor e na sua Vida; quanto mais crescermos na consciência da nossa filiação divina, tanto maior e mais tangível será a nossa alegria.
II. COMO É DIFERENTE esta felicidade daquela que depende do bem-estar material, da saúde – tão frágil! -, dos estados de ânimo – tão variáveis! -, da ausência de dificuldades, do não passar por nenhuma necessidade!… Somos filhos de Deus e coisa alguma nos deve perturbar.
São Paulo recordava aos primeiros cristãos de Filipos: Alegrai-vos sempre no Senhor; eu vo-lo repito, alegrai-vos. E indicava-lhes imediatamente a razão: O Senhor está perto. Naquele ambiente difícil, às vezes duro e agressivo, em que se moviam, o Apóstolo indica-lhes o melhor remédio: Alegrai-vos. E essa indicação é admirável, pois estava preso quando escreveu a Epístola em que a fez. E escreverá ainda em outra ocasião, numas circunstâncias extraordinariamente difíceis: Transbordo de alegria em todas as minhas tribulações 13.
As circunstâncias que nos rodeiam nunca são determinantes nem definitivas para a verdadeira alegria, porque a verdadeira alegria resulta da fidelidade a Deus, do cumprimento do dever, da aceitação da Cruz. “Como é possível estarmos alegres diante da doença e atingidos pela doença, diante da injustiça e atingidos pela injustiça? Não será essa alegria uma falsa ilusão ou um subterfúgio irresponsável? Não! É Cristo quem nos dá a resposta: somente Cristo! Só nEle se encontra o verdadeiro sentido da vida pessoal e a chave da história humana. Só nEle – na sua doutrina, na sua Cruz Redentora, cuja força de salvação se faz presente nos Sacramentos da Igreja – encontramos sempre a energia para melhorar o mundo, para torná-lo mais digno do homem -imagem de Deus -, para torná-lo mais alegre.
“Cristo na Cruz: esta é a única chave verdadeira. Ele aceita o sofrimento na Cruz para nos fazer felizes; e nos ensina que, unidos a Ele, podemos também nós dar um valor de salvação ao nosso sofrimento, que se transforma então em alegria: na alegria profunda do sacrifício pelo bem dos outros e na alegria da penitência pelos pecados pessoais e pelos pecados do mundo.
“A luz da Cruz de Cristo, portanto, não há motivo para termos medo à dor, porque entendemos que é na dor que se manifesta o amor: a verdade do amor, do nosso amor a Deus e a todos os homens” 14.
Já no Antigo Testamento o Senhor tinha dito por intermédio de Neemias: Não vos entristeçais, porque a alegria do Senhor é a vossa fortaleza 15. Só perdemos este grande bem quando nos afastamos de Deus pelo pecado, pelo egoísmo de pensarmos em nós mesmos, ou quando não aceitamos a Cruz que nos chega sob formas muito diversas: dor, fracassos, contrariedades, mudança de planos, humilhações…
A tristeza provoca muito mal em nós e à nossa volta. É uma erva daninha que devemos arrancar logo que aparece: Anima-te e alegra o teu coração, e afasta para longe de ti a tristeza; pois a tristeza já matou a muitos. E não há nela utilidade alguma 16.
Podemos recuperar a alegria, em qualquer circunstância que tenda a abater-nos, se soubermos recorrer à oração ou abeirar-nos contritamente do sacramento da Confissão, sobretudo quando a perdemos por causa do pecado ou por descuidos culpáveis no relacionamento com Deus.
O esquecimento próprio, que nos impede de andar excessivamente preocupados com as coisas pessoais – a humildade, em última análise -, é outra condição imprescindível para nos abrirmos a Deus como bons filhos e alcançarmos a verdadeira alegria. Se sairmos de nós mesmos e falarmos com Deus numa oração confiante, surgirá a aceitação de uma contrariedade (talvez a causa oculta desse estado de tristeza), ou a decisão de abrirmos a alma na direção espiritual para contar aquilo que nos preocupa, ou de sermos generosos naquilo que Deus nos pede e que talvez nos custe dar-lhe.
III. O APOSTOLADO QUE O SENHOR nos pede é, em boa medida, superabundância da alegria sobrenatural e humana que acompanha todo aquele que está perto de Deus. Quando ela “se derrama sobre os demais homens, gera esperança, otimismo, impulsos de generosidade no meio da fadiga cotidiana, contagiando toda a sociedade. Meus filhos – dizia o Papa João Paulo II -, só se tiverdes a graça divina, que é alegria e paz, é que podereis construir algo de válido para os homens” 17
Um campo importante em que devemos semear alegria a mãos cheias é a família. A tônica dominante no lar deve ser a do sorriso habitual, mesmo que estejamos cansados ou haja assuntos que nos preocupem. Este estilo otimista, cordial e afável de nos comportarmos é também “a pedra caída no lago”18, que provoca uma onda mais ampla, e esta outra, e mais outra, criando um clima grato em que é possível conviver e em que se desenvolve com naturalidade um apostolado fecundo com os filhos, com os pais, com os irmãos… Pelo contrário, um gesto severo, intolerante, pessimista, reiterativo…, afasta os outros tanto da pessoa que assim se descontrola como de Deus; cria novas tensões e leva facilmente a faltas contra a caridade. São Tomás diz que ninguém pode suportar por um dia sequer uma pessoa triste e desagradável e que, portanto, todos os homens estão obrigados, por um certo dever de honestidade, a conviver amavelmente com os outros 19. Vencer os estados de ânimo, as preocupações pessoais, o cansaço, sempre deve ser encarado como um dever, cujo cumprimento é muito grato a Deus.
Devemos estender este espírito alegre, otimista, sorridente, que tem o seu fundamento último na filiação divina, ao trabalho, aos amigos, aos vizinhos, a essas pessoas com as quais talvez tenhamos somente um breve encontro na vida: o vendedor que não se voltará a ver, o paciente que, uma vez curado, não quererá mais saber do médico, essa pessoa que nos perguntou onde ficava tal rua… Receberão de nós um gesto cordial e uma oração ao seu Anjo da Guarda… E muitos encontrarão na alegria do cristão o caminho que conduz a Deus, um caminho que talvez de outra forma não encontrassem.
“Como seria o olhar alegre de Jesus! O mesmo que brilharia nos olhos de sua Mãe, que não pode conter a alegria – «Magnifícat anima mea Dominum!» – e a sua alma glorifica o Senhor desde que o traz dentro de si e a seu lado. – Oh Mãe! Que a nossa alegria, como a tua, seja a alegria de estar com Ele e de o ter”20. Junto dEla, fazemos hoje um “propósito sincero: tornar amável e fácil o caminho aos outros, que já bastantes amarguras traz a vida consigo”21.
(1) Cfr. Prov 8, 30-31; (2) cfr. Mt 3, 17; (3) Lc 2, 10; (4) cfr. Lc 2, 29-30; (5) cfr. Mt 2, 10; (6) Mc 9, 5; (7) cfr. Lc 24, 13-35; (8) cfr. Jo 16, 22; (9) Lc 1, 46-47; (10) cfr. São Tomás, Suma Teológica, 2-2, q. 28, a. 4 e segs.; (11) Jo 16, 22; (12) Fil 4, 4; (13) 2 Cor 7, 4; (14) A. dei Portillo, Homília na Missa para os participantes no Jubileu da juventude, 12-IV-1984; (15) Ne 8, 10; (16) Eclo 30, 24-25; (17) João Paulo II, Discurso, 10-IV-1979; (18) cfr. São Josemaría Escrivá, Caminho, n. 831; (19) São Tomás, op. cit, 2-2, q. 114, a. 2, ad. 2; (20) São Josemaría Escrivá, Sulco, n. 95; (21) ib., n. 63.
Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal