TEMPO DO NATAL. 29 DE DEZEMBRO

– Cabe aos cristãos contribuir para criar uma ordem mais justa, mais humana.
– Algumas conseqüências do compromisso pessoal dos cristãos.
– A justiça por si só não resolve os problemas dos homens. Justiça e misericórdia.

I. TANTO AMOU DEUS o mundo que lhe deu o seu próprio Filho: quem nEle crê não perece, mas possui a vida eterna, diz-nos São João no começo da Missa de hoje1.

O Menino que contemplamos durante estes dias no presépio é o Redentor do mundo e de cada homem. Vem, em primeiro lugar, para nos dar a vida eterna, de forma incoada na nossa existência terrena e em posse plena depois da morte. Faz-se homem para chamar os pecadores2, para salvar o que estava perdido3, para comunicar a todos a vida divina4.

Durante os seus anos de vida pública, o Senhor pouco nos disse da situação política e social do seu povo, apesar da opressão que este sofria por parte dos romanos. Manifesta em diversas ocasiões que não quer ser um Messias político ou um libertador do jugo romano. Vem dar-nos a liberdade dos filhos de Deus: liberdade do pecado, do pecado em que caímos e que nos reduziu à condição de escravos; liberdade da morte eterna, dessa morte que é também conseqüência do pecado; liberdade do jugo do demônio, pois o homem já pode vencer o pecado com o auxílio da graça; liberdade da vida segundo a carne, da carne que se opõe à vida sobrenatural: “A liberdade trazida por Cristo no Espírito Santo restituiu-nos a capacidade – de que o pecado nos tinha privado – de amar a Deus acima de tudo e de permanecer em comunhão com Ele”5.

Com a sua atitude, o Senhor marcou também o caminho para a sua Igreja, continuadora da sua obra aqui na terra até o fim dos tempos. A solicitude da Igreja pelos problemas sociais deriva da sua missão espiritual e mantém-se nos limites dessa missão. Enquanto tal, a Igreja não tem como missão os assuntos temporais6; é desse modo que segue os passos de Cristo, que afirmou que o seu Reino não era deste mundo7 e se negou expressamente a ser juiz ou promotor da justiça humana8.

Cabe fundamentalmente aos cristãos – sem comprometerem com a sua atuação a Igreja como tal9 – o dever de contribuir para a criação de uma ordem mais justa, mais humana, devendo mobilizar todos os meios ao seu alcance para resolver os grandes problemas sociais que afetam hoje a humanidade. “Convém que cada um se examine – pedia Paulo VI – para ver o que fez até agora e o que deve ainda fazer. Não basta recordar princípios gerais, manifestar propósitos, condenar as injustiças graves, proferir denúncias com certa audácia profética; tudo isso não terá peso real se não se fizer acompanhar em cada homem de uma tomada de consciência mais viva da sua própria responsabilidade e de uma ação efetiva. É demasiado fácil lançar sobre os outros a responsabilidade das injustiças presentes, se ao mesmo tempo não se percebe que todos somos igualmente responsáveis, e que, portanto, a primeira das exigências é a conversão pessoal”10.

Podemos perguntar-nos hoje na nossa oração se pomos em prática esses meios, se temos verdadeiro interesse em conhecer bem os ensinamentos sociais da Igreja, se os observamos pessoalmente, se procuramos – na medida em que nos for possível – que as leis e costumes reflitam esses ensinamentos no que diz respeito à família, à educação, aos salários, ao direito ao trabalho, etc. O Senhor, que nos contempla da gruta de Belém, estará contente conosco se realmente nos vir empenhados em tornar o mundo mais justo na cidade, grande ou pequena, em que vivemos, no bairro, na empresa em que trabalhamos.

II. A SOLUÇÃO ÚLTIMA para instaurar a justiça e a paz no mundo reside no coração humano, porque, quando este se afasta de Deus, converte-se em fonte de uma escravidão radical do homem e das opressões a que submete os seus semelhantes11. Por isso não podemos esquecer em momento algum que, quando procuramos tornar mais cristão o mundo que nos rodeia, mediante o apostolado pessoal, estamos convertendo-o ao mesmo tempo num mundo mais humano. E, paralelamente, quando procuramos que o ambiente em que vivemos – social, familiar, profissional – seja mais justo e mais humano, estamos criando as condições para que Cristo seja mais facilmente conhecido e amado.

A decisão de viver a virtude da justiça, sem reduções, há de levar-nos a pedir diariamente pelos responsáveis pelo bem comum – governantes, empresários, dirigentes sindicais, etc. –, pois deles depende em grande medida a solução dos grandes problemas sociais e humanos. E há de levar-nos também a viver até às suas últimas conseqüências o nosso compromisso pessoal com a prática da justiça, sem nos deixarmos arrastar por inibições nem delegar em outros a responsabilidade a que a Igreja nos urge: pagando o devido às pessoas que nos servem; fazendo o possível por melhorar as condições de vida dos mais necessitados; comportando-nos exemplarmente, com competência e dedicação profissional, no nosso trabalho; exercendo com responsabilidade e iniciativa os nossos direitos e deveres de cidadãos; participando das diversas associações a que possamos comunicar, juntamente com outras pessoas de boa vontade, um sentido mais humano e mais cristão. E isto ainda que tenhamos que despender um tempo de que normalmente não dispomos; se nos esforçarmos, o Senhor aumentará as horas do nosso dia.

O programa de vida que o Senhor nos deixou traz consigo a maior mudança que se pode dar na humanidade. Diz-nos esse programa que todos somos filhos de Deus e, portanto, irmãos; é uma mudança profunda nas relações entre os homens. As vitórias que a doutrina de Cristo conseguiu ao longo dos séculos – a abolição da escravatura, o reconhecimento da dignidade da mulher, a proteção dos órfãos e das viúvas, o atendimento de enfermos e marginalizados… – são conseqüências do sentido de fraternidade que a fé cristã semeia por toda a parte. Pode-se dizer de nós que, com as nossas palavras e os nossos atos, estamos verdadeiramente contribuindo para um mundo mais justo, mais humano, no nosso ambiente profissional e social?

Com palavras de São Josemaría Escrivá, recordamos: “Talvez pensemos em tantas injustiças que não se remedeiam, em abusos que não se corrigem, em situações de discriminação que se transmitem de geração em geração sem que se comece a pôr em prática uma solução de fundo. […]

Um homem e uma sociedade que não reajam perante as tribulações ou as injustiças, e não se esforcem por aliviá-las, não são nem homem nem sociedade à medida do amor do Coração de Cristo. Os cristãos – conservando sempre a mais ampla liberdade à hora de estudar e de aplicar as diversas soluções, e, portanto, com um lógico pluralismo – devem identificar-se no mesmo empenho em servir a humanidade. De outro modo, o seu cristianismo não será a Palavra e a Vida de Jesus: será um disfarce, um logro perante Deus e perante os homens”12.De tal maneira amou Deus o mundo que lhe entregou o seu Filho Unigênito…

III. SOMENTE COM A JUSTIÇA não poderemos resolver os problemas dos homens: “Embora se consiga atingir uma razoável distribuição dos bens e uma harmoniosa organização da sociedade, jamais desaparecerá a dor da doença, da incompreensão ou da solidão, da morte das pessoas que amamos, da experiência das nossas limitações”13.

A justiça vê-se enriquecida e complementada pela misericórdia. Mais ainda, a estrita justiça “pode conduzir à negação e ao aniquilamento de si mesma, se não se permite que essa forma mais profunda, que é o amor, plasme a vida humana”14; semelhante justiça pode terminar “num sistema de opressão dos mais fracos pelos mais fortes, ou numa arena de luta permanente de uns contra outros”15.

A justiça e a misericórdia apóiam-se e se fortalecem mutuamente. “Só com a justiça não resolvereis nunca os grandes problemas da humanidade. Quando se faz justiça a seco, não vos admireis de que a gente se sinta magoada: pede muito mais a dignidade do homem, que é filho de Deus”16.

Por sua vez, a caridade sem justiça não seria verdadeira caridade, mas uma simples tentativa de tranqüilizar a consciência. Há pessoas que se chamam a si próprias “cristãs”, mas “prescindem da justiça e limitam-se a um pouco de beneficência, que qualificam como caridade, sem perceber que isso é apenas uma pequena parte do que estão obrigadas a fazer. A caridade – que é como que um generoso exorbitar-se da justiça – exige primeiro o cumprimento do dever. Começa-se pelo que é justo, continua-se pelo que é mais eqüitativo… Mas, para amar, requer-se muita finura, muita delicadeza, muito respeito, muita afabilidade”17.

A melhor maneira de um cristão promover a justiça e a paz no mundo é o empenho em viver como verdadeiro filho de Deus. Se se decide a levar as exigências do Evangelho à sua vida pessoal, à família, ao trabalho, ao mundo em que se move diariamente e do qual participa, contribuirá para mudar a sociedade e torná-la mais justa e mais humana. O Senhor, da gruta de Belém, anima-nos a fazê-lo. Nunca deve ser motivo de desânimo o fato de nos parecer que é muito pouco o que está ao nosso alcance. Foi assim que os primeiros cristãos transformaram o mundo: com um esforço diário, concreto e aparentemente pequeno.

(1) Jo 3, 16; Antífona de entrada da Missa do dia 29 de dezembro; (2) Lc 5, 32; (3) Lc 19, 10; (4) Mc 10, 45; (5) Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução Sobre a liberdade cristã e a libertação, 22-III-1986, 53; (6) cfr. Paulo VI, Encíclica Populorum progressio, 26-III-1967, 8; (7) Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução Sobre a liberdade cristã e a libertação, 80; (8) Jo 19, 36; (9) cfr. Lc 12, 13 e segs.; (10) Paulo VI, Carta Octogesima adveniens, 14-V-1971, 48; (11) Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Sobre a liberdade cristã e a libertação, 39; (12) Bem-aventurado Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, n. 167; (13)ibid., n. 168; (14) João Paulo II, Encíclica Dives in misericordia, 12; (15) ibid., 14; (16) Bem-aventurado Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, n. 172; (17) ibid., ns. 172-173.

Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal