TEMPO COMUM. DÉCIMA SEMANA. QUINTA-FEIRA
– Extirpar o que estorva. Renúncia ao próprio eu. Corredenção.
I. JESUS CONVOCOU A MULTIDÃO e os seus discípulos e disse-lhes: Quem quiser vir após mim negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á, e quem perder a vida por mim e pelo Evangelho, esse a salvará1.
O Senhor já havia ensinado que, para sermos seus discípulos, era preciso que nos desprendêssemos dos bens materiais2; agora pede um desprendimento mais profundo: a renúncia ao que se é, ao próprio eu, ao que a pessoa tem de mais íntimo. Mas, no discípulo de Cristo, esse ato de entrega traz consigo uma afirmação: deixar de viver para si mesmo a fim de que Cristo viva em mim3.
A “vida em Cristo”, por quem tudo sacrifiquei…4, escreve São Paulo aos cristãos de Filipos, é uma realidade da graça. Toda a existência cristã é uma afirmação: de vida, de amor, de amizade. Eu vim – diz-nos Jesus – para que tenham vida e a tenham em abundância5. Oferece-nos a filiação divina, a participação na vida íntima da Santíssima Trindade. E o que estorva esta admirável promessa é o apegamento ao eu, à comodidade, ao bem-estar, ao êxito pessoal…
Por isso é necessária a mortificação, que não é algo negativo, mas desprendimento do eu para que Jesus esteja em nós. Daí o paradoxo: “para Viver é preciso morrer”6: morrer para nós mesmos, para ter vida sobrenatural. Se viverdes segundo a carne, morrereis; se, porém, com o espírito mortificardes as obras da carne, vivereis7.
“para Viver é preciso morrer”
Se alguém quiser vir após mim… Para correspondermos ao convite de Jesus que passa ao nosso lado, devemos “morrer cada dia um pouco”, negar-nos: negar ao homem velho que trazemos dentro de nós8 as obras que nos separam de Deus ou dificultam o crescimento da amizade com Ele; submeter as inclinações desordenadas, as paixões, que após o pecado original e os pecados pessoais já não estão devidamente sujeitas à vontade; ser donos de nós mesmos e orientar os nossos passos numa determinada direção: “Somos como um homem que leva um asno; ou ele conduz o asno ou o asno o conduz a ele. Ou governamos as paixões ou elas nos governarão”9. Quando não há mortificação, “é como se o «espírito» se fosse reduzindo, encolhendo, até converter-se num pontinho… E o corpo aumenta, agiganta-se, até dominar. – Foi para ti que São Paulo escreveu: «Castigo o meu corpo e o reduzo à escravidão, não seja que, tendo pregado aos outros, venha eu a ser reprovado»”10.
Ou governamos as paixões ou elas nos governarão”
É o mesmo São Paulo que nos indica outro motivo para a penitência: Eu agora alegro-me nos sofrimentos que padeço por vós, e completo na minha carne o que falta à paixão de Jesus Cristo pelo seu corpo que é a Igreja11. Por acaso a Paixão de Cristo não foi suficiente por si só para nos salvar?, pergunta-se Santo Afonso Maria de Ligório. Não há dúvida de que não faltou nada do seu valor e foi plenamente suficiente para salvar todos os homens. Contudo, para que os méritos da Paixão nos sejam aplicados, devemos cooperar da nossa parte, aceitando com paciência os trabalhos e tribulações que Deus nos mande, para nos assemelharmos a Jesus12.
Quando seguimos o Senhor com uma mortificação generosa, nós somos os primeiros a beneficiar-nos dessa participação nos sofrimentos de Cristo13. Mas, além disso, a eficácia sobrenatural da penitência estende-se à nossa família, aos amigos, aos colegas, a essas pessoas que queremos aproximar de Deus, a toda a Igreja e ao mundo inteiro.
– Convite da Igreja à penitência. A sua influência na oração. Sentido penitencial das sextas-feiras.
II. “A IGREJA, AO MESMO TEMPO que reafirma a primazia dos valores religiosos e sobrenaturais da penitência (valores capazes como nenhum outro de devolver hoje ao mundo o sentido de Deus e da sua soberania sobre o homem, e o sentido de Cristo e da sua salvação), convida todos os homens a acompanhar a conversão interior do espírito com o exercício voluntário de obras externas de penitência”14. A dor, a doença, qualquer tipo de sofrimento físico ou moral, oferecidos a Deus com espírito penitente, ao invés de serem algo inútil e prejudicial, ganham para o homem um sentido redentor “para a salvação dos seus irmãos e irmãs. Portanto, o sofrimento não só é útil aos outros, como realiza até um serviço insubstituível. Mais do que qualquer outra coisa, torna presente na história da humanidade a força da Redenção”15.
A Igreja recorda-nos freqüentemente a necessidade da mortificação. E quis de modo particular que, num dia da semana – a sexta-feira, em lembrança do dia da Paixão do Senhor e de tudo o que sofreu por nós –, considerássemos a necessidade e os frutos da negação de nós mesmos e nos propuséssemos alguma mortificação especial: abstinência de carne ou alguma coisa que nos custe um pouco (trabalho mais bem feito, um gesto de maior dedicação no seio da família…), ou uma prática piedosa (uma leitura espiritual, o terço, a Visita ao Santíssimo, o exercício piedoso da Via-Sacra…), ou alguma obra de misericórdia (fazer companhia a um doente, uma esmola…). Mas não devemos contentar-nos apenas com esta manifestação semanal de penitência; o Senhor espera que saibamos negar-nos diariamente em pequenas coisas, que vivificarão a alma e tornarão fecundo o apostolado.
– Alguns campos de mortificação. Condições.
III. DEVEMOS TER PRESENTES em primeiro lugar as chamadas mortificações passivas: oferecer com amor um contratempo inesperado ou uma incomodidade que não depende da nossa vontade: calor, frio, dor, uma espera que se prolonga mais do que havíamos previsto, uma resposta brusca que nos desconcerta…
Juntamente com as mortificações passivas, devemos praticar aquelas que tendem a facilitar a convivência: esforço por sermos pontuais, escutar os outros com verdadeiro interesse, falar quando se produz um silêncio incômodo, vencer os estados de ânimo para sermos sempre afáveis, viver com delicadeza as normas habituais da cortesia, tais como agradecer, pedir desculpas… E as mortificações no trabalho, que é também outro bom campo para o espírito de sacrifício: intensidade, ordem, perfeito acabamento de cada tarefa, a ajuda discreta aos outros…
E ainda a mortificação da inteligência (evitar atitudes críticas, domínio da curiosidade, juízos ponderados) e da vontade (a luta denodada contra o amor-próprio e contra os caprichos, o cumprimento do dever hoje e agora, sem nunca deixar a tarefa por terminar…). E a mortificação ativa dos sentidos: da vista, do paladar, do ouvido… E a mortificação da sensibilidade, da ânsia de viver confortavelmente, de “passar bem” como primeiro objetivo da vida… E a mortificação interior, dos movimentos de ira, de desagrado, de queixa, de tristeza, dos pensamentos inúteis, particularmente quando se apresentam na oração, na Santa Missa, no trabalho…
A nossa mortificação e penitência deve ter uma série de qualidades. Em primeiro lugar, deve ser alegre. “Às vezes – comentava aquele doente consumido de zelo pelas almas –, o corpo reclama um pouco, queixa-se. Mas procuro também transformar «esses queixumes» em sorrisos, porque se mostram muito eficazes”16. Se formos mortificados, hão de brotar no nosso semblante muitos sorrisos e gestos amáveis, não só no meio da dor e da doença, como a cada pequeno ato de renúncia.
Deve ser contínua, que nos leve à presença de Deus onde quer que nos encontremos, façamos o que fizermos. Não se trata de cumprirmos um ritual de pequenas mortificações isoladas, mas de aproveitarmos todas as ocasiões que se nos deparem, com espírito positivo, de tal maneira que possamos dizer que a mortificação é para nós como o bater do coração.
Deve ser discreta, amável, cheia de naturalidade, que se note com simplicidade pelos seus efeitos na vida ordinária, mais do que por umas manifestações aparatosas e pouco normais num cristão normal.
Por último, deve ser humilde e cheia de amor, porque o que nos move à penitência é a contemplação de Cristo na Cruz, a quem desejamos unir-nos com todo o nosso ser; não queremos nada, se não nos leva a Ele.
Na mortificação, tal como no Calvário, encontramos Maria. Ponhamos nas suas mãos os propósitos concretos deste tempo de oração. Peçamos-lhe que nos ensine a compreender verdadeiramente a necessidade de uma vida mortificada.
(1) Mc 8, 34-39; (2) cfr. Lc 14, 33; (3) Gal 2, 20; (4) Fil 3, 8; (5) Jo 10, 10; (6) cfr. Josemaría Escrivá, Caminho, n. 187; (7) Rom 8, 13; (8) Ef 4, 21; (9) E. Boylan, Amor supremo, pág. 113; (10) Josemaría Escrivá, Sulco, n. 841; (11) Col 1, 24; (12) cfr. Santo Afonso Maria de Ligório, Reflexões sobre a Paixão, 10; (13) cfr. Paulo VI, Const. Apost. Paenitemini, 17-II-1966, II; (14) ib.; (15) João Paulo II, Carta Apost. Salvifici doloris, 11-II-1984, 27; (16) Josemaría Escrivá, Sulco, n. 253.
Fonte: livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal.