TEMPO COMUM. TRIGÉSIMA SEGUNDA SEMANA. SEXTA-FEIRA

– Não podemos viver de costas para esse momento supremo. Preparamo-nos dia a dia.
– A morte adquire um novo sentido com a Morte e Ressurreição de Cristo.
– Lições que a morte nos dá para a vida.

I. O EVANGELHO DA MISSA1 fala-nos da segunda vinda de Cristo à terra, que será inesperada. Assim como o relâmpago brilha de um extremo ao outro do céu, assim será o dia do Filho do homem. Neste discurso do Senhor, interpõem-se diversos planos de acontecimentos, e em todos eles se faz finca-pé na súbita chegada de Jesus glorioso no fim dos tempos.

Os discípulos, levados por uma curiosidade natural, perguntam onde e como terão lugar esses acontecimentos que acabam de ouvir. O Senhor responde-lhes com um provérbio certamente conhecido por eles: Onde quer que esteja o corpo, aí se juntarão as águias. Jesus quer dizer que, com a mesma rapidez com que as aves de rapina se dirigem para a presa, assim será o encontro do Filho de Deus com o mundo no fim dos tempos e com cada homem no fim dos seus dias. Porque sabeis muito bem – escreve São Paulo aos primeiros cristãos de Tessalônica – que o dia do Senhor virá como um ladrão durante a noite2. É mais um apelo à vigilância, a fim de que não vivamos de costas para esse dia definitivo – o dia do Senhor – em que finalmente veremos Deus face a face. Santo Agostinho, comentando esta passagem do Evangelho, ensina que estas coisas permanecem ocultas para que estejamos sempre preparados3.

Em alguns ambientes, não é fácil falar da morte; parece um assunto desagradável, até de mau gosto. No entanto, é o acontecimento que ilumina toda a vida, e a Igreja convida-nos a meditá-lo: precisamente para que esse momento supremo não nos encontre desprevenidos. O modo pagão de pensar e de viver de muitas pessoas – mesmo de algumas que se dizem cristãs – leva-as a tentar apagar os sinais indicadores de que caminhamos a passos largos para um fim.

E tomam essa atitude porque ignoram o verdadeiro sentido da morte. Ao invés de considerá-la como uma “amiga” ou mesmo como uma “irmã”4, encaram-na como uma catástrofe, a grande catástrofe que um dia deitará por terra os planos e aspirações em que concentraram todo o sentido da vida; portanto – pensam –, é preciso ignorá-la, como se não nos afetasse pessoalmente. Ao invés de vê-la como na realidade é – a chave da felicidade plena –, consideram-na como o fim do bem-estar que tanto custa conseguir aqui em baixo. Na sua falta de fé operativa e prática, ignoram que o homem continuará a existir, ainda que tenha de “mudar de casa”5. Como a liturgia nos recorda freqüentemente, a vida não é tirada, mas transformada6.

Para o cristão, a morte é o fim de uma curta peregrinação e a chegada à meta definitiva, para a qual se preparou dia a dia7, pondo toda a alma nas tarefas cotidianas mediante as quais e através das quais conquistará o Céu. Por isso, esse momento não chegará para ele como o ladrão na noite, porque conta serenamente com esse encontro definitivo com o seu Senhor. Sabe bem que a morte “é uma passagem e uma mudança para a eternidade, depois de percorrer este caminho temporal”8.

Contudo, “se alguma vez te intranqüilizas com o pensamento da nossa irmã a morte – porque te vês tão pouca coisa! –, anima-te e considera: que será esse Céu que nos espera, quando toda a formosura e grandeza, toda a felicidade e Amor infinitos de Deus se derramarem sobre o pobre vaso de barro que é a criatura humana, e a saciarem eternamente, sempre com a novidade de uma ventura nova?”9

II. A SAGRADA ESCRITURA ensina expressamente que Deus não fez a morte nem se alegra com a perdição dos vivos10. Antes do pecado original, não existia a morte, tal e como hoje a conhecemos, com esse sentido doloroso e difícil com que tantas vezes a temos visto, talvez de perto. A rebelião do primeiro homem trouxe consigo a perda dos dons extraordinários que Deus lhe tinha concedido ao criá-lo. E assim, agora, para chegarmos à casa do Pai, nossa morada definitiva, temos que atravessar essa porta: é a passagem deste mundo para o Pai11. A desobediência de Adão acarretou, junto com a perda da amizade com Deus, a perda do dom gratuito da imortalidade.

Mas Jesus Cristo destruiu a morte e iluminou a vida12, tirou-lhe a sua maldade essencial, o aguilhão, o veneno; e graças a Ele, adquire um novo sentido; converte-se na passagem para uma Vida nova. A vitória do Senhor transmite-se a todos os que crêem nEle e participam da sua Vida. Eu sou – afirmou o Mestre – a ressurreição e a vida; o que crê em mim, ainda que esteja morto, viverá; e todo o que vive e crê em mim, não morrerá eternamente13. Ainda que a morte seja inimiga do homem na sua vida natural, em Cristo converte-se em “amiga” e “irmã”. Ainda que o homem seja derrotado por esse inimigo, acaba por ser vencedor, porque mediante a morte adquire a plenitude da Vida.

Entende-se bem que, para uma sociedade que tem como fim quase exclusivo, ou exclusivo, os bens materiais, a morte continue a ser o fracasso total, o último inimigo que acaba de um só golpe com tudo o que deu sentido ao seu viver: prazer, glória humana, ânsia desordenada de bem-estar material… Os que têm espírito pagão continuam a viver como se Cristo não tivesse realizado a Redenção, transformando completamente o sentido da dor, do fracasso e da morte.

A morte dos pecadores é péssima14, afirma a Sagrada Escritura; mas aos olhos do Senhor, a morte dos seus santos é preciosa15. Neste mesmo sentido, a Igreja já nos primeiros tempos celebrava o dia da morte dos mártires e dos santos como um dia de alegria; era o dies natalis, o dia do nascimento para uma nova Vida, para uma felicidade sem fim, o dia em que passavam a contemplar radiantes o rosto de Jesus. Bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor, recorda-nos o Apocalipse. De hoje em diante, diz o Espírito, que descansem dos seus trabalhos, porque as suas obras os acompanham16.

Não só eles próprios serão premiados pela sua fidelidade a Cristo, mesmo nas coisas mais pequenas – até um copo de água dado por Cristo receberá a sua recompensa17 –, mas também, como ensina a Igreja, com eles permanecerão de algum modo “os valores da dignidade humana, da comunidade fraterna e da liberdade, todos esses bons frutos da natureza e do nosso trabalho […], limpos contudo de toda a impureza, iluminados e transfigurados, quando Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal”18. Todas as outras coisas se perderão: voltarão à terra e ao esquecimento… As suas boas obras os acompanham.

III. A MORTE DÁ LIÇÕES para a vida. Ensina-nos a viver com o necessário, desprendidos dos bens que usamos, mas que dentro de um tempo teremos que deixar; levaremos conosco, para sempre, o mérito das nossas boas obras.

Ensina-nos também a aproveitar bem cada dia. Carpe diem19, goza do presente, diziam os antigos; e nós, com sentido cristão, podemos dar a essas palavras uma nova orientação: aproveitemos gozosamente cada dia como se fosse o único, sabendo que nunca mais se repetirá. Hoje, no momento do exame de consciência, teremos uma grande alegria ao pensarmos nas jaculatórias, nos atos de amor ao Senhor, no trato com o Anjo da Guarda, nos favores aos outros, nos pequenos serviços, nas vitórias no cumprimento do dever, talvez na paciência…, que fomos acumulando ao longo das horas e que o Senhor converteu em jóias preciosas para a eternidade. Não deixemos escapar estes dias, numerados e contados, que nos faltam para chegarmos ao fim do caminho.

A incerteza do momento do nosso encontro definitivo com Deus anima-nos a estar vigilantes, como quem aguarda a chegada do seu Senhor20, cuidando com esmero do exame de consciência, com contrição verdadeira pelas fraquezas desse dia; aproveitando bem a Confissão freqüente para limpar a alma mesmo dos pecados veniais e das faltas de amor. A lembrança da morte ajuda-nos a trabalhar com mais empenho na tarefa da santificação pessoal, vivendo com prudência; não como insensatos, mas como circunspectos, redimindo o tempo21, recuperando tantos dias e tantas oportunidades perdidas. Às vezes, pode acontecer-nos o que escreveu o clássico: “Não é que tenhamos pouco tempo, é que temo-lo perdido muito”22. Aproveitemos o que nos resta.

Devemos desejar viver muito tempo, para prestar maiores serviços a Deus, para nos apresentarmos diante do Senhor com as mãos mais cheias…, e porque amamos a vida, que é um presente de Deus. E quando chegar o nosso encontro com o Senhor, até esses últimos instantes nos deverão servir para purificarmos a nossa vida e para nos oferecermos a Deus Pai com um ato de amor. Para esse transe, Santo Inácio escreveu: “Como em toda a vida, assim também na morte, e muito mais, deve cada um […] esforçar-se e procurar que Deus Nosso Senhor seja nela glorificado e servido e os próximos edificados, ao menos com o exemplo da sua paciência e fortaleza, com fé viva, esperança e amor dos bens eternos…”23 O último instante aqui na terra deve ser também para a glória de Deus.

Que alegria experimentaremos então por todo o esforço que tivermos posto em dar a vida pelo Senhor!: o trabalho oferecido, as pessoas que fomos procurando aproximar do sacramento da Confissão, os mil pequenos pormenores de serviço prestados aos que trabalhavam conosco, a alegria que transmitimos à família…

Depois de termos deixado aqui frutos que perduram até à vida eterna, partiremos. E poderemos dizer com o poeta:

O meu amor deixou a margem
e na corrente canta.
Não voltou à ribeira,
pois o seu amor era a água24.

A água viva que é Jesus Cristo.

(1) Lc 17, 26-37; (2) 1 Tess 5, 2; (3) cfr. Santo Agostinho, Comentário ao Salmo 120, 3; (4) cfr. São Josemaría Escrivá, Caminho, ns. 735 e 739; (5) cfr. ibid., n. 744; (6) Missal Romano, Prefácio de defuntos; (7) cfr. Candido Pozo, Teología del más allá, BAC, Madrid, 1980, págs. 468 e segs.; (8) São Cipriano, Tratado sobre a mortalidade, 22; (9) São Josemaría Escrivá, Sulco, n. 891; (10) Sab 1, 13; (11) Jo 13, 1; (12) 2 Tim 1, 10; (13) Jo 11, 25; (14) Sl 33, 22; (15) Sl 115, 15; (16) Apoc 14, 13; (17) Mt 10, 42; (18) Concílio Vaticano II, Constituição Gaudium et spes, n. 39; (19) Horácio, Odes, 1, 11, 7; (20) cfr. Lc 12, 35-42; (21) Ef 5, 15-16; (22) Sêneca, De brevitate vitae, 1, 3; (23) Santo Inácio de Loyola, Constituições S. I., c. 4, n. 1; (24) B. Llorens, Secreta fuente, Rialp, Madrid, 1948, pág. 86.

Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal