TEMPO COMUM. DÉCIMA SEMANA. SEGUNDA-FEIRA

– A misericórdia de Deus é infinita, eterna e universal.
– A misericórdia implica termos cumprido previamente os ditames da justiça, e ultrapassa as exigências dessa virtude.
– Frutos da misericórdia.

I. SÃO PAULO CHAMA A DEUS Pai das misericórdias 1, sublinhando assim a sua infinita compaixão pelos homens, que ama muito intimamente. Talvez poucas verdades se repitam nos textos sagrados tão insistentemente como esta: Deus é infinitamente misericordioso e compadece-se dos homens, sobretudo daqueles que sofrem a miséria mais profunda que é o pecado. Para que o aprendamos bem, a Sagrada Escritura ensina-nos com uma grande variedade de termos e de imagens que a misericórdia de Deus é eterna, isto é, sem limites no tempo 2; imensa, sem limites de lugar nem de espaço; e universal, pois não se limita a um povo ou a uma raça, e é tão extensa e ampla quanto as necessidades do homem.

A encarnação do Verbo, do Filho de Deus, é prova desta misericórdia divina. Ele veio perdoar, veio reconciliar os homens entre si e com o seu Criador. Manso e humilde de coração, oferece alimento e descanso a todos os atribulados 3. O Apóstolo São Tiago chama ao Senhor piedoso e compassivo 4. Segundo a Epístola aos Hebreus, Cristo é o Pontífice misericordioso 5; e esta atitude divina para com o homem é a razão de ser da ação salvadora de Deus 6, que não se cansa de perdoar e de impelir os homens para a Pátria definitiva, ajudando-os a superar as fraquezas, a dor e as deficiências desta vida. “Revelada em Cristo, a verdade a respeito de Deus, Pai das misericórdias, permite-nos «vê-lo» particularmente próximo do homem, sobretudo quando este sofre, quando é ameaçado no próprio núcleo da sua existência e da sua dignidade”7. Por isso a súplica constante dos leprosos, cegos, coxos… a Jesus é: Senhor, tem misericórdia de mim 8.

A bondade de Jesus para com os homens, para com todos nós, excede as medidas humanas.

“Àquele homem que caiu nas mãos dos ladrões, que foi por eles desnudado, espancado, abandonado meio morto, Ele o reconfortou, curando-lhe as feridas, derramando nelas o seu azeite e vinho, fazendo-o montar a sua própria cavalgadura e instalando-o na pousada para que cuidassem dele, dando para isso uma quantia de dinheiro e prometendo ao hospedeiro que na volta pagaria o que gastasse a mais” 9.

O Senhor teve esses cuidados com cada homem em particular. Muitas vezes recolheu-nos feridos à beira da estrada da vida, derramou bálsamo sobre as nossas feridas, vendou-as… e não uma, mas inúmeras vezes. Na sua misericórdia está a nossa salvação. Tal como os doentes, cegos e aleijados do Evangelho, também nós devemos pôr-nos diante do Sacrário e dizer humilde e confiadamente ao Senhor: Jesus, tem misericórdia de mim…

II. BEM-AVENTURADOS os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia 10, lemos no Evangelho da Missa. Há uma especial urgência por parte de Deus em que os seus filhos tenham essa atitude para com os seus irmãos; Ele nos diz que a sua misericórdia para conosco se dará na proporção da que nós mesmos praticarmos: com a medida com que medirdes sereis medidos 11.

Haverá proporção, não igualdade, porque a bondade de Deus supera todas as nossas medidas. A um grão de trigo corresponderá um grão de ouro; à nossa medida de trigo, uma medida de ouro; aos cinqüenta denários que perdoarmos, os dez mil talentos (uma fortuna incalculável) que devemos a Deus.

Mas se o nosso coração se endurecer diante das misérias e fraquezas alheias, a porta para entrarmos no Céu será terrivelmente mais estreita. “Quem quiser alcançar misericórdia no Céu deve praticá-la neste mundo. E por isso, já que todos desejamos misericórdia, atuemos de modo a que ela chegue a ser o nosso advogado neste mundo, para que nos livre depois no futuro. No Céu há uma misericórdia a que se chega pela misericórdia terrena”12.

Às vezes, pretende-se opor a misericórdia à justiça, como se aquela pusesse de lado as exigências desta. Trata-se de uma visão errônea, pois considera-se a misericórdia como um pretexto para acobertar a injustiça, quando, na realidade, é a plenitude da justiça. São Tomás de Aquino ensina 13 que, quando Deus atua com misericórdia, ultrapassa a justiça, o que pressupõe – quando nós o imitamos – que se começou por respeitá-la de forma plena. É como se uma pessoa desse duzentos denários a quem só lhe devesse cem; não só não vai contra a justiça, mas, além de satisfazer o que é justo, porta-se com liberalidade e misericórdia.

Esta atitude para com o próximo é, pois, a cabal realização de toda a justiça. Mais ainda, sem misericórdia, acaba-se por chegar a “um sistema de opressão dos mais fracos pelos mais fortes” ou a “uma arena de luta permanente de uns contra outros”, como adverte João Paulo II 14.

É óbvio que, se não se começa por viver a justiça, não se pode praticar a misericórdia que o Senhor nos pede. Mas, depois de darmos a cada um o que por justiça lhe pertence, a atitude misericordiosa leva-nos muito mais longe: por exemplo, a saber perdoar com prontidão as ofensas, sem esperar por uma reparação ou por um pedido de desculpas; a atualizar os ordenados dos que dependem de nós acima do estrito aumento do custo de vida; a ultrapassar os limites da cortesia no atendimento a um desconhecido que nos procura; a ajudar um filho que se esforçou pouco por tirar boas notas… São pequenos gestos sem os quais – permanecendo apenas no âmbito estreito da justiça – se tornaria impossível a vida familiar, a convivência nos locais de trabalho e o variado relacionamento social.

III. POR MUITO JUSTAS que cheguem algum dia a ser as relações entre os homens, sempre será necessário o exercício cotidiano da misericórdia.

A misericórdia é, como diz a sua etimologia, uma disposição do coração que nos leva a compadecer-nos – como se fossem próprias – das misérias que encontramos a cada passo e que nunca desaparecerão, por mais justas e bem resolvidas que possam parecer as relações entre os homens. Por isso, devemos exercê-la antes de mais nada pela compreensão com os defeitos alheios, mantendo uma atitude positiva, benevolente, que nos inclina a pensar bem dos outros, a aceitá-los com as suas particularidades, a desculpar-lhes de bom grado as falhas e os erros, sem deixar de ajudá-los da forma mais oportuna. É uma atitude que parte do respeito pela igualdade radical de todos os homens, pois todos somos filhos de Deus, apesar das diferenças e peculiaridades de cada um.

O Senhor fez desta bem-aventurança o caminho mais direto para alcançarmos a felicidade nesta vida e na outra. “É como um fio de água fresca que brota da misericórdia de Deus e que nos faz participar da sua própria felicidade. Ensina-nos – muito melhor que os livros – que a verdadeira felicidade não consiste em tomar e possuir, em julgar e ter razão, em impor a justiça segundo uma visão pessoal, mas em deixar-se tomar e agarrar por Deus, em submeter-se ao seu juízo e à sua justiça generosa, em aprender dEle a prática cotidiana da misericórdia” 15.

Compreenderemos então que é mais alegre dar do que receber 16, como nos diz o Senhor na única frase que nos chegou por intermédio de São Paulo, e não dos Evangelhos. Um coração compassivo e misericordioso transborda de paz e de alegria. Desse modo, alcançamos também essa misericórdia de que tanto precisamos; e deveremos isso àqueles que nos deram a oportunidade de fazer alguma coisa por eles mesmos e pelo Senhor. Santo Agostinho diz que a misericórdia é o polimento da alma, que a faz brilhar e ter uma aparência boa e formosa 17.

Terminando este tempo de oração, recorremos à nossa Mãe Santa Maria, pois Ela “é quem conhece mais a fundo o mistério da misericórdia divina. Sabe o seu preço e sabe como é alto. Neste sentido, chamamo-la também Mãe de misericórdia” 18.

Ainda que já tenhamos provas abundantes do seu amor maternal por cada um de nós, podemos dizer-lhe: Monstra te esse matrem! 19, mostra que és Mãe, e ajuda-nos a mostrar-nos como bons filhos teus e irmãos de todos os homens: misericordiosos e compassivos, como o teu Filho.

(1) 2 Cor 1, 1-7; Primeira leitura da Missa da segunda-feira da décima semana do TC, ano ímpar; (2) Sl 100; (3) Mt 11, 28; (4) Ti 5, 11; (5) Hebr 2, 17; (6) Tit 2, 11; 1 Pe 1, 3; (7) João Paulo II, Enc. Dives in misericordia, 30-XI-1980; (8) Mt 9, 27; 15, 22; 20, 30; Mc 10, 47; Lc 17, 13; (9) São Máximo de Turim, Carta 11; (10) Mt 5, 7; (11) Mt 7, 2; (12) São Cesário de Arles, Sermão 25; (13) São Tomás, Suma Teológica, I, q. 21, a. 3, ad. 2; (14) João Paulo II, op. cit., 14; (15) S. Pinckaers, En busca de la felicidad, Palabra, Madrid, 1981, págs. 126-127; (16) cfr. At 20, 35; (17) cfr. Santo Agostinho, Catena Aurea, vol. I, pág. 48; (18) João Paulo II, op. cit., 9; (19) Liturgia das Horas, Segundas vésperas do Comum da Virgem Maria, Hino Ave, maris stella.

Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal.