TEMPO COMUM. TERCEIRA SEMANA. SÁBADO

– O dever da correção fraterna. A sua eficácia sobrenatural.
– A correção fraterna era praticada com freqüência entre os primeiros cristãos. Falsas desculpas para não fazê-la. Ajuda que prestamos.
– Virtudes que se devem viver ao fazer a correção fraterna. Modo de recebê-la.

I. JÁ NO ANTIGO TESTAMENTO a Sagrada Escritura nos mostra como Deus se serve freqüentemente de homens cheios de fortaleza e de caridade para fazer notar a outros o seu afastamento do caminho que conduz ao Senhor. O Livro de Samuel apresenta-nos o profeta Natã, enviado por Deus ao rei Davi1 para falar-lhe dos pecados gravíssimos que este havia cometido. Apesar da evidência desses pecados tão graves (adultério com a mulher do seu fiel servidor, cuja morte provocou) e de que o rei fosse um bom conhecedor da Lei, “o desejo havia-se apoderado de todos os seus pensamentos e a sua alma estava completamente adormecida, como que num torpor. Necessitou da luz e das palavras do profeta para tomar consciência do que tinha feito” 2. Naquelas semanas, Davi vivia com a consciência adormecida pelo pecado.

Para fazê-lo perceber a gravidade do seu delito, Natã expôs-lhe uma parábola: Havia numa cidade dois homens; um rico e outro pobre. O rico tinha muitos rebanhos de ovelhas e de bois; o pobre só tinha uma ovelhinha que havia comprado; ia criando-a e ela crescia com ele e com os seus filhos, comendo do seu pão e bebendo da sua taça, dormindo nos seus braços: era para ele como uma filha. Certo dia, chegou uma visita à casa do rico e este, não querendo perder uma ovelha ou um boi para dar de comer ao seu hóspede, subtraiu a ovelha do pobre e preparou-a para o seu hóspede. Davi pôs-se furioso contra aquele homem e disse a Natã: Pela vida de Deus! Aquele que fez isso é réu de morte!

Natã respondeu então ao rei: Tu és esse homem. E Davi tomou consciência dos seus pecados, arrependeu-se e desafogou a sua dor num salmo que a Igreja nos propõe como modelo de contrição. Começa assim: Tem piedade de mim, ó Deus, segundo a tua bondade; e conforme a imensidão da tua misericórdia, apaga a minha iniqüidade… 3 Davi fez penitência e foi grato a Deus. Tudo graças a uma advertência oportuna e cheia de fortaleza.

Um dos maiores bens que podemos prestar àqueles a quem mais queremos e a todos, é a ajuda, muitas vezes heróica, da correção fraterna. No convívio diário, observamos que os nossos familiares, amigos ou conhecidos – como, aliás, nós mesmos – podem chegar a formar hábitos que destoam de um bom cristão e que os afastam de Deus. Podem ser faltas de laboriosidade habituais, impontualidades, modos de falar que beiram a murmuração ou a difamação, brusquidões, impaciências… Podem ser também faltas de justiça nas relações de trabalho, atitudes pouco exemplares no modo de viver a sobriedade ou a temperança, gula, embriaguez, gastos de pura ostentação, desperdícios de dinheiro no jogo ou nas loterias, amizades ou familiaridades que põem em perigo a fidelidade conjugal ou a castidade… É fácil compreender que uma correção fraterna feita a tempo, oportuna, cheia de caridade e de compreensão, a sós com o interessado, pode evitar muitos males: um escândalo, um dano irreparável à família…; ou, simplesmente, pode ser um estímulo eficaz para que a pessoa em questão corrija um defeito e se aproxime mais de Deus.

Esta ajuda espiritual nasce da caridade e é uma das suas principais manifestações. Por vezes, é também uma exigência da virtude da justiça, quando existe para com a pessoa que deve ser corrigida uma especial obrigação de prestar-lhe essa ajuda.

Devemos pensar com freqüência se não nos omitimos nesta matéria. “Por que não te decides a fazer uma correção fraterna? – Sofre-se ao recebê-la, porque custa humilhar-se, pelo menos no começo. Mas, fazê-la, custa sempre. Bem o sabem todos. – O exercício da correção fraterna é a melhor maneira de ajudar, depois da oração e do bom exemplo” 4.

II. A CORREÇÃO FRATERNA tem sabor evangélico; os primeiros cristãos praticavam-na freqüentemente, tal como o Senhor a tinha estabelecido – Vai e corrige-o a sós 5 –, e ocupava um lugar muito importante nas suas vidas6, pois conheciam a sua eficácia. São Paulo escreve aos fiéis de Tessalônica: Se alguém não obedecer ao que dizemos nesta carta…, não o olheis como inimigo, antes corrigi-o como a um irmão 7. Na Epístola aos Gálatas, o Apóstolo diz que a correção fraterna deve ser feitacom espírito de mansidão 8.

O Apóstolo São Tiago incentiva da mesma forma os primeiros cristãos a praticá-la, recordando-lhes a recompensa que o Senhor lhes dará: Se algum de vós se desviar da verdade e um outro conseguir reconduzi-lo, saiba que quem converte um pecador do seu extravio salvará a alma dele da morte e cobrirá a multidão dos seus próprios pecados 9. Não é uma recompensa pequena. Não podemos desculpar-nos e repetir as palavras de Caim: Por acaso sou eu o guardião do meu irmão? 10

Entre as desculpas que podemos dar no nosso coração para não fazer ou para adiar a correção fraterna, está antes de mais nada o medo de entristecer aquele que a deve receber. É paradoxal que o médico não deixe de dizer ao paciente que, se quer ser curado, deve sofrer uma dolorosa operação, e nós, cristãos, relutemos às vezes em dizer àqueles que nos rodeiam que está em jogo a saúde da sua alma. “É grande o número dos que, para não desagradarem ou para não impressionarem uma pessoa que tenha entrado nos últimos dias e nos momentos extremos da sua existência terrena, lhe silenciam o seu estado real, causando-lhe desse modo um mal de dimensões incalculáveis. Mas é mais elevado o número daqueles que vêem os seus amigos no erro ou no pecado, ou prestes a cair num ou noutro, e permanecem mudos, e não mexem um dedo para lhes evitar esses males. Poderíamos considerar amigo a quem se comportasse conosco desse modo? Certamente que não. E, no entanto, as pessoas à nossa volta adotam freqüentemente essa atitude para não nos magoarem” 11.

Com a prática da correção fraterna, cumpre-se verdadeiramente o que nos diz a Sagrada Escritura:O irmão ajudado pelo seu irmão é como uma cidade amuralhada 12. Nada nem ninguém pode derrotar uma caridade bem vivida. Com essa demonstração de amor cristão, não são só as pessoas que melhoram, mas toda a sociedade. Evitam-se ao mesmo tempo críticas e murmurações que tiram a paz da alma e conturbam as relações entre os homens. A amizade, se for verdadeira, torna-se mais profunda e autêntica com a correção fraterna; e cresce também a amizade com Cristo.

III. QUANDO SE PRATICA a correção fraterna, deve-se viver uma série de virtudes sem as quais não estaríamos diante de uma autêntica manifestação de caridade. “Quando tiveres de corrigir, faze-o com caridade, no momento oportuno, sem humilhar… e com ânimo de aprender e de melhorares tu mesmo naquilo que corriges” 13, tal como Cristo a praticaria se estivesse no nosso lugar, com a mesma delicadeza, com a mesma firmeza.

Às vezes, uma certa irritabilidade e falta de paz interior pode levar-nos a ver nos outros defeitos que na realidade são nossos. “Devemos corrigir, pois, por amor; não com o desejo de ferir, mas com a intenção carinhosa de conseguir que a pessoa se emende […]. Por que a corriges? Porque te irrita teres sido ofendido por ela? Queira Deus que não. Se o fazes por amor-próprio, nada fazes. Se é o amor que te move, atuas bem” 14.

humildade ensina-nos, mais talvez do que qualquer outra virtude, a encontrar as palavras certas e o modo de falar que não ofende, ao recordar-nos que nós também precisamos de muitas ajudas semelhantes. A prudência leva-nos a fazer a advertência com prontidão e no momento mais adequado; esta virtude é-nos necessária para levarmos em conta o modo de ser da pessoa e as circunstâncias por que está passando: “como os bons médicos, que não curam de uma só maneira” 15, não dão a mesma receita a todos os pacientes.

Depois de corrigirmos alguém, não devemos deixar-nos impressionar se parece que não reage, antes é preciso ajudá-lo ainda um pouco mais com o exemplo, com a oração e a mortificação por ele, e com uma maior compreensão.

Quando somos nós que recebemos uma correção, devemos aceitá-la com humildade e em silêncio, sem nos desculparmos, reconhecendo a mão do Senhor nesse bom amigo, que o é pelo menos a partir daquele momento; com um sentimento de gratidão viva, porque alguém se interessou de verdade por nós; com a alegria de pensar que não estamos sós no esforço por dirigir sempre os nossos passos para Deus.

“Depois de teres recebido com provas de carinho e de reconhecimento as advertências que te fazem, procura segui-las como um dever, não só pelo benefício que representa corrigir-se, mas também para fazeres ver à pessoa que te advertiu que não foram em vão os seus esforços e que tens muito em conta a sua benevolência. O soberbo, ainda que se corrija, não quer aparentar que seguiu os conselhos que lhe deram, porque os despreza; quem é verdadeiramente humilde tem por ponto de honra submeter-se a todos por amor a Deus, e vive os sábios conselhos que recebe como vindos do próprio Deus, seja qual for o instrumento de que Ele se tenha servido” 16.

Ao terminarmos a nossa oração, recorramos à Santíssima Virgem, Mater boni consilii, Mãe do bom conselho, para que nos ajude a viver sempre que for necessário essa prova de amizade verdadeira, de apreço sincero por aqueles com quem temos um contacto mais freqüente, que é a correção fraterna.

(1) Cfr. 2 Sam 12, 1-17; (2) São João Crisóstomo, Homilias sobre São Mateus, 60, 1; (3) Sl 50; (4) São Josemaría Escrivá, Forja, n. 641; (5) cfr. Mt 18, 15; (6) cfr. Didaqué, 15, 13; (7) 2 Tess 3, 14-15; (8) Gál 6, 1; (9) Ti 5, 19-20; (10) Gên 4, 9; (11) S. Canals, Reflexões espirituais, pág. 133; (12) Prov 18, 19; (13) São Josemaría Escrivá, Forja, n. 455; (14) Santo Agostinho, op. cit.; (15) São João Crisóstomo, op. cit., 29; (16) Leão XIII, Prática da humildade, 41.

Fonte: Livro “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal.